Há neste título algo do cachimbo de Magritte na sua natureza de pequena filosofia da linguagem transido de vulgar psicologia invertida. Isto é, da mesma maneira que no seu chico-espertismo o “ceci n’est pas une pipe” tanto é capaz de perceber que um signo (imagem) não é o real mas apenas a sua representação indexial, é também incapaz de perceber que tal afirmação só existe através da significação da linguagem (palavra) que também ela não é o real, apenas um identificação humana dele. Assim sendo quando você, caro leitor, leu “Não pense na lagosta” certamente não terá (não) pensado na palavra lagosta mas sim no seu representante natural, o crustáceo decápode marinho. Portanto, a ordem que este título impõe é a sua própria impossibilidade. E é talvez aqui que eu queria chegar: há uma impossibilidade na proposta de cobrir (a décima edição d)a série de ciclos de cinema Harvard na Gulbenkian porque a proposta não é exactamente cobrir o evento (algo que as câmaras de filmar fazem com tão melhor correcção – de cor), mas sim cobrir o pós-evento, aquilo que nos dizem ser a pérola dos ciclos – a avelã do Ferrero Rocher, a cereja do Mon Chéri –: os jantares que pós-cedem os filmes e os debates. Momento para comer, beber e falar de cinema onde os convidados conversam sem o peso da exposição pública de forma galhofeira e descontraída. Mas como refere Zizek, não é o presente do ovo Kinder Surpresa que nos faz desejar o chocolate (o elusive surplus), é exactamente o oposto, é a prenda antecipada – a qual desejamos pelo seu mistério – que nos permite desfrutar do que está em seu redor. Ou seja, nesta metáfora gastronómico-cinéfila os jantares serão a prenda pechisbeque made in china que me permitiu deleitar com aquilo que é realmente importante, o chocolate… ah perdão, o cinema.
Mas antes ainda há outro aspecto que quero esclarecer. Ao principiar com “Não pense na lagosta” estou também a afirmar que a lagosta não deve ganhar preponderância sobre o resto, ou de outra forma, do confronto entre comida e cinema o segundo sai para mim sempre vitorioso – sinal de que talvez ponha a vida em segundo plano ou simplesmente que me agrade mais a comidinha do meu pai. De qualquer forma, a proposta é matreira, já que jantar sapateira e santola (pronto, apanharam-me, não foi lagosta… o título era só uma piscadela ao Foster Wallace) no Ramiro talvez compense qualquer desgosto, mas exactamente por isso serve também para obscurecer a própria natureza do evento: desde o seu propósito jactante ao seu sobredimensionamento despesista. De qualquer forma, isso não é o que me traz aqui e sobre isso pouco mais quero acrescentar.
Assim sendo, se o exercício é esse de nos lançarmos ao núcleo simbólico dos jantares para podermos verdadeiramente usufruir da sua superfície, então temos que partir deles para chegar a algum lado. Só que aqui entra em cena mais uma variável para se juntar à já incompreensível inequação que estou tentando desenlear: há em mim uma característica que sendo defeito é também feitio, a timidez, e naturalmente na tarefa de comunicar com desconhecidos esta impõe-se fortemente sobre a língua e sobre os gestos (os jantares foram com efeito uma coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer). Não a pude ultrapassar e portanto talvez não tenha conseguido fazer proveito desses momentos de descontraída galhofa como o meu colega Luís Mendonça. No entanto, o que se segue é a possibilidade nessa impossibilidade latente.
Começo então finalmente e não poderia fazê-lo sem antes primeiro descrever os personagens desse fim-de-semana que me ocupou os dias 12, 13 e 14 do passado mês de Dezembro. Em grande plano os convidados de honra: Tsai Ming-liang sempre vestido de preto, sempre sem meias e sem cabelo e sempre com olhar cansado e triste, João Pedro Rodrigues em cores e padrões pop (as riscas vermelhas e brancas, a figura de Popeye estampada numa malha) com umas entradas profundas e um olhar entre o mistério e o malandreco e João Rui Guerra da Mata sempre elegantérrimo com as meias a condizer com a camisola, cabelo puxado atrás para tapar a calvície e um olhar provocador e seguro. Em plano médio os convidantes, curadores e anfitriões: Haden Guest sempre vestido no mais irrepreensível tweed numa combinação de cores primaveril nada óbvia mas estranhamente harmoniosa com um torneado capilar inadjectivável e um olhar de criança adulta e Joaquim Sapinho sempre sóbrio nas suas skinny jeans com a mais farta de todas as cabeleiras masculinas presentes e um sorriso matreiro. Em plano americano, os críticos de cinema e programadores de festivais (fauna rara…): Tony Rayns um senhor inglês de avantajada protuberância abdominal e enorme sabedoria sobre cinema da Ásia oriental, vestimentas clássicas e esquecíveis (não consigo retirar da ideia o fio de um relógio de bolso percorrendo o seu lado, mas acho improvável que lá tenha estado) e uma auréola de Santo António interrompida na fronte, Adam Cook o jovem critico da Mubi muito disciplinado, comedido no falar e no vestir (tanto que as meias foram inalcançáveis aos olhos deste vosso escritor) e com olhar sabedor mas talvez inseguro e em último plano Agnès Wildenstein programadora durante anos no festival de Locarno e agora no DocLisboa, dona de um vasto emaranhado cinza no topo da cabeça, botas de cano alto e de um típico olhar de desdém francês. E já me esquecia, em plano geral, a convidada penetra Ana Cristina de Oliveira, protagonista de Odete (2005) que se juntou ao primeiro dos três dias de folia, de uma beleza cativante, um à-vontade desarmante e uma alegria contagiante, um cabelo de cadelinha e meias aos losangos roxos.
A origem à mesa.
Feitas as apresentações deste evento bem estrelado, talvez já seja altura de me dedicar a botar faladura sobre essa coisa que a todos (?) nos convocou: o cinema. E talvez não haja melhor filme para abrir apetites que Alvorada Vermelha (Red Dawn, 2011) do casal de Joões. Para quem não viu o filme as poucas palavras que Agnès Wildenstein laçou sobre este filme foram mais que certeiras: “It is about a market, it is at dawn and it is very very red”. Logo, filme de curta-metragem sobre o mercado vermelho de Macau pertencente à série de filmes asiáticos do duo que pela sua força sanguinolenta se independentizou de A Última Vez que Vi Macau (2013) e que juntamente a China China (2007), Mahjong (2013) e Iec Long (2014) [estreado mundialmente um dia antes desse primeiro dia de ciclo no Porto/Post/Doc] formam um pêntuplo fílmico oriental realizado a quatro mãos. Alvorada Vermelha é pois um filme de peixes mortos-vivos que já sem partes de si se contorcem ainda nos últimos resquícios de vida que lhes restam e também como os mortos-vivos de origem humana teimam em atormentar os que ainda conservam a luz do sentir (ai que poético). Há pois uma componente de choque no filme de João Rui e João Pedro que não se deve descurar, o interessante é que aqui não estamos no subtexto político de Le sang des bêtes (1949) do Georges Franju nem tão pouco um subtexto ambiental ou pela protecção dos animais – esse choque é de outra natureza, mas já lá vamos… Antes transcrevo o mais fielmente possível a história que Guerra da Mata contou ao jantar sobre o encarnado filme: no dia da estreia nacional do filme, no âmbito do Indie Lisboa na Culturgest, depois da sessão João Rui Guerra da Mata dirigiu-se ao exterior para fumar um cigarro, lá, em paz e sossego com o mundo, apercebeu-se de um homem calmeirão e de ar ameaçador que se dirigia a ele com olhar acusatório e indicador em riste. Naturalmente ficou apreensivo, o homem chegou-se e sem introitos afirmou: “Tu és vegetariano, não és?” e Guerra da Mata terá respondido calmamente, de cigarro entre os dedos e sorriso torto, “Não…”. O homem ficou espantado, eu nem tanto já que a conversa se fizera sobre um prato que para qualquer vegetariano causaria arrepios. Portanto todos nós, depois da chacina na tela passámos para a chacina na mesa, eu comi um linguado que podia muito bem ainda dar uns safanões como os do filme, outros comeram raia e todos comemos peixinhos da horta – para expiação dos nossos pecados carnívoros.
Mas regressando ao choque em Alvorada Vermelha , não há nele qualquer ideia de denúncia, há sim, pelo contrário, um certo maravilhamento entre o exótico e a fascinação infantil pela morte e pelo horror (o filme começou com um odor – assim como todas as degustações -, um odor que ficou para sempre gravado na memória de infância Guerra da Mata quando vivia em Macau). Este mergulho no esquartejamento de peixes e aves é também um filme sobre o ofício – veja-se a habilidade com que aqueles homens e mulheres tratam a sua matéria, a mecanização dos seus gestos, a forma como já nada daquilo é reflectido, como tudo se faz sem pensar – e ao mesmo tempo é um filme sobre o confronto de universos: o cinema queer de João Pedro Rodrigues de fronte de um mundo onde o glamour fica a milhas (não é por acaso que um salto alto é esmigalhado por um carro em fuga num dos primeiros planos do filme – aqui não há espaço para louboutins do chinês – e no entanto temos sereias e Jane Russell). É pois um filme carinhoso sobre o desejo de encontrar beleza no inferno. E é aqui que a presença de Tsai Ming-liang se torna pela primeira vez audível. Quando lhe perguntam o que achou dos filmes [a curta-metragem foi sucedida por Odete] ele confessa que não leu as legendas, sabe pouco de inglês, estava demasiado cansado e sente que percebeu bastante bem os filme ainda assim. No entanto, quando todo o painel discutia as questões do corpo e da sua transfiguração, Ming-liang faz aquele que é verdadeiramente “O” comentário sobre Alvorada Vermelha: “este é um special dish para os chineses. É o inferno budista!”. Ou seja, é o loop de onde ninguém que creia na reencarnação quer entrar, porque é renascer para logo depois morrer da forma mais cruel e de novo repetir tudo outra vez. Esse horror nenhum dos ocidentais fora capaz de apreender antes e esse, sim, é o verdadeiro holocausto animal que perpetuamos quando comemos um lingadinho com arroz de grelos. Se é assim… Viva o tofu!
Seguindo a nossa ementa, depois de sabermos de onde vem o nosso jantar talvez possamos agora analisar o menu e escolher o que não tarda nos passará pelo goto. Essa escolha em que percorremos a lista com a panóplia de pratos (quero um 36 e um 72 se faz favor) e quiçá nos levantamos para sermos nós mesmos a escolher o bicho que vamos em breve deglutir sofregamente (um peixe, um crustáceo, sendo que para isso basta apontar o dedo torto e rebarbado para o alvo e esperar sentado entre carnes fumadas e queijos semi-curados pela delícia fumegante) é algo não muito diferente de um casting para cinema… Citando de novo Guerra da Mata, num casting, as pessoas estão a pensar no que vão “levar para casa e papar”. Aqui esconde-se outra questão mais profunda: a da apropriação dos corpos dos actores pelos seus realizadores – e essa é provavelmente uma das ligações mais fortes entre o cinema de João Pedro Rodrigues e Tsai Ming-liang. Ainda que no caso de João Pedro Rodrigues a fidelidade ao corpo não seja uma constante, no caso da relação entre Ming-liang e Lee Kang-Sheng a fidelidade é ponto de partida.
Note-se a forma como a câmara trata os actores no cinema de Rodrigues para sentirmos a predação de um pelo outro, para sentirmos que ali há um necessidade de apropriação de um corpo que não é o seu – Ricardo Meneses, Nuno Gil, entre tantos. Sintomático disso mesmo é o facto de Parabéns! (1997), a primeira curta do realizador, ter como protagonista o próprio Guerra da Mata, e a primeira realização em nome próprio de João Rui, O que Arde Cura (2012), ter como protagonista o companheiro. Aí o jogo dos corpos é evidente e a apropriação não é nunca um acto de aniquilação destrutiva, mas sim de partilha encenada. Quando inquirido sobre essa questão do corpo e da relação dele – realizador – com o corpo – do seu actor – o homem que nos deu Bu san (Adeus, Dragon Inn, 2003) disse: “se não estás doente não te lembras do corpo”. Tsai Ming-liang sofre de uma condição que lhe provoca fortes dores nas costas, durante o último debate explicou que só de estar ali sentado com os outros convidados estava em grande sofrimento, e por isso mesmo não esteve presente na maioria dos jantares preferindo o conforto do seu quarto com room service. Logo, falar do corpo com Ming-liang é não apenas uma questão abstracta ou estética mas uma realidade concreta e sensível. Mas não só Tsai sofre com o seu invólucro perecível (ai a poesia outra vez…) também o seu Lee Kang-Sheng (talvez dai a duração da sua relação de trabalho). Depois de filmar Qing shao nian nuo zha (Os rebeldes do Deus Neon, 1992) Lee contraiu uma doença que o terá deixado muito mal e desde aí a sua doença passou a ser também parte do seu corpo e, portanto, parte dos seus personagens nos filmes de Tsai, “No He liu (O Rio, 1997) ele interpreta a sua doença”, disse o realizador, acrescentando: “Os meus planos lutam com a doença dele, não se pode fazer close ups com o Lee Kang-Sheng. É por ele que me interessa tanto o corpo”.
Regressando a João Pedro Rodrigues e ao seu Odete percebemos que aí o corpo marca pela sua ausência. Em poucos planos Pedro morre deixando Rui só e Odete, por motivos difíceis de explicar mas fáceis de entender, começa a acreditar que não só conheceu quem não conheceu como dele está grávida. Esta gravidez não é apenas histérica como é um processo de transformação de dentro para fora: Odete finge conhecer tão completamente que chega a ser Pedro, o Pedro que apenas sente. Ela está grávida de Pedro e não grávida com um filho de Pedro, isto é, aquela criança ausente é uma memória a germinar, memória que infecta o hospedeiro como um vírus e o toma como seu. Sobre tudo isto, Ana Margarida de Oliveira quando questionada sobre todas estas nuances acrescentou: “A gravidez começa com o ‘acção’, eu estava muito mais preocupada em andar bem de patins…”. Ou seja, no cinema de Rodrigues (e depois também no com Guerra da Mata, ainda que a níveis diferentes) o corpo nunca está, apenas acontece no “acção” e termina no “corta” e, por isso mesmo, por só existir o seu fingimento, talvez o seu efeito seja mais forte, mais impressivo. Cito Rodrigues: “tinha medo que o filme caísse num buraco onde se acabasse por desfazer, talvez seja o que acontece…” E depois acrescenta: “queria que a emoção fosse e ficasse à porta do piroso”. É isso mesmo que é o seu cinema: sempre à beira da vertigem do ridículo e, por isso mesmo, sempre se agarrando aos que o vêem com medo de cair – e o amor pelos seus filmes é, pois, proporcional à nossa vontade de os segurar.
E como parece que sempre se encontram ligações quando por elas se procura, então olhe-se para o que o jantar desse dia e faça-se luz: a sobremesa que encerrou o meu jantar (e de outros também) foi, nem mais nem menos, barrigas-de-freira. Como se sabe da história da cristandade portuguesa a grossa maioria das moças que seguiam a vida de abnegação conventual ou o faziam por rebelião parental (num sentido ou no outro) ou porque lá podiam ter seus adorados filhos ilegítimos concebidos fora da protecção divina e por isso paridos em casa santa. Ora bem, mãe de criança alimenta-se bem e tão bem se alimenta que até infere o crime de canibalismo ao comer a carne das próprias irmãs de clausura. As barrigas-de-freira são um doce dulcíssimo composto de apenas três ingrediente, ovo, açúcar e miolo de pão – é então uma bomba para grávidas, histéricas ou nem por isso. E para mim também. Se Odete houvera comido mais docinhos desses não haveria filme (ou a gravidez seria apenas inchaço). A história do cinema vem nos mostrando que quase sempre parece só existir acção quando há desgostos – e a arreliação tira o apetite. Mas sobre estas tristezas da alma falarei já de seguida, vou só ali estender a roupa, comer um biscoito, beber um leite morno e volto já.
Posso-me levantaaaar?
Depois do jantar num restaurante onde se podia fumar apesar de não haver qualquer tipo de sistema de extracção de fumo – e entenda-se como literal a afirmação de que para Rayns o cigarro é uma constante e para Guerra da Mara uma intermitente – acordei no dia seguinte e apercebi-me que a minha roupa havia ficado impregnada de fumos e aromáticos manjares [se também Manhã de Santo António (2012) tivesse partido de um odor seria este possivelmente]. Deitei-me tarde e acordei cedo, não foi uma boa combinação.
Retomando a deixa anterior sobre a narrativa propulsionada a tristezas, caímos sem dúvidas em Tian bian yi duo yun (O Sabor da Melancia, 2005) e naquilo que Tsai Ming-liang sobre ele disse: ” estou muito distante deste filme”. E chega mesmo a comentar: “o que estava eu a pensar?”. Esta posição de distanciamento de um autor com a sua própria obra só pode revelar duas coisas: (1) o autor tem uma grande produção e faz cinema a um ritmo muito alto e, portanto, tem tendência a esquecer-se facilmente dos filmes, dada a velocidade de trabalho; (2) o autor mudou enquanto pessoa entre a feitura do filme e a sua situação actual, por isso, olha para trás e não se reconhece, porque de facto já não é o mesmo. Embora a produção do realizador não seja propriamente esparsa estou em crer que a segunda explicação é a mais correcta, ainda para mais quando é o próprio que nos diz o quão triste e deprimido estava nessa altura. E sim, Tian bian yi duo yun é um filme profundamente desesperançado e triste, o que pode parecer estranho dado o título original que em inglês se traduzir por The Wayward Cloud que é algo como A Nuvem Errante. Ora, um filme sobre a rodagem de um porno entremeado de cenas musicais e um romance em zonas urbanas de passagem ter um título como esse é no mínimo invulgar (o título português, à imagem do francês, faz muito mais sentido… sentido directo). Tsai explica: “as nuvens não são livres porque precisam do vento para se moverem, só por acaso são capazes de encontra outra nuvem”. Com efeito, o casal composto por Lee Kang-sheng e Chen Shiang-chyi (outra das recorrência do cinema de Ming-liang) é um acidente de percurso, um acaso que demorará pouco, o tempo de uma núvem a passar. Sim: “Love exists!”, como afirmou o realizador, mas não por muito tempo – pelo menos em 2005.
Mas a questão que devia colocar não é se o amor existe, mas sim, “onde existe o amor?”. A esse respeito a relação de Liang e Rodrigues com o espaço urbano e a forma como nele se pode ou não desenvolver uma relação é outro dos pontos de contacto dos seus cinemas. Aliás, Rodrigues – que não (re)vê os seus filmes mas sabe cada plano de cor – depois da sessão de Tian bian yi duo yun referiu-se a um momento, a um espaço, do filme que lhe pareceu particularmente simbólico (e a mim também), uma rede onde um dos personagens dorme. Essa rede está colocada num vão de escadas e o personagem escolhe-a porque de facto é um local fresco para dormir (todo o filme se passa num extasiante calor, daí as melancias…), só que a existência dessa rede serve para prevenir os suicídios nos edifícios de Taiwan. A rede funciona simultaneamente como ninho de vida e como teia de morte. Nessa dupla significação oposta encontra-se o núcleo do filme de Ming-liang: um filme aparentemente alegre sobre o desespero – como aquelas pessoas que depois de já terem escolhido a forma como se vão matar ganham uma estranha e renovada força anímica, ele estava tão melhorzinho…
De maneira completamente distinta mas talvez preservando uma qualquer ideia de base em comum está a concepção arquitectónica e urbana de Rodrigues em O Fantasma (2000). Quem conhece Alvalade saberá que muitos dos raccords do filme não batem certo com o emaranhado de ruas daquela zona lisboeta. No entanto, o realizador explicou que aquela é uma “arquitectura da memória”, um espaço cinematográfico que cruza o real com a mnésica construção infantil de uma zona onde se cresceu e sempre se viveu. Logo também Rodrigues olha para o espaço como criança apesar de a história “começar com um rapaz muito carnal e terminar com um que já não tem corpo, que já mudou de corpo, que mudou de pele como uma cobra” e assim também o seu Fantasma viva nessa natureza contraditória entre intenção e construção. É exactamente sobre esse choque entre o real sensível e a ficção imaginada que trata Mahjong – um filme de gata borralheira onde se procura a dona de um sapato perdido, ou virando o bico ao prego which one of you is cinderella? A curta produzida pelo projecto Estaleiro é uma delícia carpenteriana nacional [com as melhores perseguições de carro do cinema português – o Christine (Christine: O Carro Assassino, 1983)] – e a melhor apropriação de um espaço pelo universo pessoal dos realizadores na série asiática. A Varziela transforma-se num labirinto de ruas escuras e assustadoras através do poder mágico de uma banda sonora e de uma máquina de fumo e o cinema emerge da noite num thriler neo-noir com um inspector de chapéu e um mulher desaparecida, a mesma de A Última Vez Que Vi Macau. Chamando aqui as palavras de Tsai sobre Hei yan quan (Não Quero Dormir Sozinho, 2006) – a obra-prima deste ciclo sobre a qual pouco mais acrescento, filme profundamente sensível e incomunicável – “é a location que decide o fado dos meus filmes, se eu não tivesse encontrado aquele edifício [o edifício em ruínas alagado que o próprio encarou como o salão nobre da Opera] o filme teria sido completamente diferente”. O espaço como realizador, a arquitectura como co-autor de cinema.
Tomando as palavras de Tony Rayns – que no último debate só pôde dar graça de sua voz por uma apropriação in extremis do microfone que provocou, nas palavras de Joaquim Sapinho, uma cisão temporal que nos levou para um tempo paralelo onde todo o debate poderia recomeçar e onde Agnès Wildenstein poderia finalmente dizer uma palavrinha que fosse – encontramos uma ligação (melhor) entre as obras dos três cinemas convocados: em Odete dada a impossibilidade do amor pela morte de Pedro subsiste-se pela possibilidade do sexo (é essa a promessa de Odete e é isso que ela acaba por alcançar) ao passo que em Tian bian yi duo yun já estamos no território da impossibilidade do amor e do esvaziamento do sexo (e a melancia é a metáfora vegetal ideal para a manifestação desse sexo oco) e, por fim, em Trouble Every Day (Noites Sem Dormir, 2001) de Claire Denis – a outra convidada que não pôde estar presente e quem vai ao ar perde o lugar (à mesa) – temos a impossibilidade do amor mas também do sexo num mundo onde a interacção humana é já só coisa de ficção científica pós-apocalíptica (sente-se que o regresso da importância do toque é algo que só se conseguirá com um retrocesso civilizacional, como se já só se pudesse amar e foder na idade da pedra). E exactamente por isso os finais de Odete e Hei yan quan só revelam esse despedaçar da relação biunívoca com a composição em tríptico amoroso, como se o outro já não bastasse nos nossos dias, é sempre preciso mais um (mesmo se esse mais um é um fantasma, e estará o fantasma contente?).
Mas de novo temos a refeição a fazer-se impor ao cinema e a comezaina a distrair os dedos do que realmente importa. É que Tian bian yi duo yun é um filme sobre a sucção – deixem-me refrasear – é também um filme sobre vampiros e vampirismos. Se dúvidas restassem bastava ver a forma como os câmaras filmam competentemente o sexo do filme dentro do filme e de como nada as perturba, nem mesmo quando esse sexo passa a necrofilia. Essa natureza absorta (tanto que absorveu, que engoliu, como que se alheou) da pornografia é idêntica à figura do vampiro que também vive sem emoções e também se basta com o sugar aquilo que nos outros lhes dá essência (a poesia hoje não te larga…). Mas não era isso também que acontecia em Odete? Uma mulher que sugava a memória de um morto para com ele poder roubar a vida dos que lhe sobraram – ao ponto de só entrar em casa do falecido quando convidada… E não é também isso que acontece em Trouble Every Day onde a realizadora brinca com o exercício de género para, de forma infinitesimal, deixar a pistas de um filme de terror típico sobre uma experiência de laboratório que dá para o torto e produz ninfomaníacos canibais em série (sim, leram bem, neste filme Denis é a filha ilegítima do que o coito entre Jess Franco e David Fincher pudesse ter originado). E continuando a linha argumentativa, também de vampiros trata O Fantasma com um morcego de latex calcorreando um mundo de lixo nauseabundo e violando o objecto do seu desejo. E, por fim, também em Hei yan quan uma das personagens de Lee Kang-Sheng, a do homem comatoso, também vive de absorver os outros (de uma forma mais lata como aliás o é o próprio filme – e por falar em lata, é também em Hei yan quan que uma lata de leite em pó da Nestlé vira arma branca, e voltamos à cinematográfica mesa de jantar e à ficção científica distópica…).
Continuando a nossa senda canina, é sabido da mitologia popular que o vampiro é uma criatura que se combate com crucifixos, alhos e estacas espetadas no coração. Quanto ao primeiro não sei bem o que posso adiantar, mas sobre o segundo e o terceiro sistemas de protecção anti-bicharada sorvedoura tenho duas ideias. Uma passa pela questão do coração da criatura malévola, façam-se artistas e sigam as pisadas do Caravaggio que para obter o verdadeiro vermelho encarnado arranjava corações na morgue, secava-os e moía-os para obter a cor desejada (pelo menos foi o que ouvi entre as conversas entornadas do primeiro jantar). Assim podem arvorar-se de criadores destemidos e combater o bicho apenas por razões estéticas, o Adorno proteger-vos-á. Se isso não resultar sigam a minha segunda ideia que passa pela questão dos alhos: façam-se de críticos de cinema como eu, arranjem uma parceira com o Harvard na Gulbenkian e tentem a vossa sorte, pode ser que vos levem ao Ramiro, esse local que só conhecia dos filmes turísticos que sobre Lisboa se vêm fazendo, e lá peçam “as únicas Gambas à la Aguilho“. Garanto-vos que terão que baste para se protegerem das maleitas dentadas.
Sobre este aspecto da fartura, e dirigindo-me ao fim desta alegoria gastrofílmica, há um momento que me tem permanecido na memória há semanas e que teima em não desaparecer. No final da refeição no Ramiro, depois de sapateira ter voada do martelinho de Rayns para o rosto de Guerra da Mata e depois de os vizinhos Benetton chinfrineiros terem abalado e depois de eu próprio ter virado sanguessuga chupando os últimos resquícios de miolo branco de crustáceo e até acompanhando isso com cerveja – coisa impensável! -, e depois da risota em redor do conceito de baba de camelo, enfim, depois de mariscos vários e tudo do melhor ter enchido a mesa e os nossos estômagos ouvi Haden Guest comentar alegremente: “this time we asked just the right amount”. Essa frase funcionou para mim como um súmula simbólica do que é o Harvard na Gulbenkian, é que além de haver o “this time” que indica a frequência das visitas (tal que os funcionários já reconheciam as caras dos organizadores e lhe sorriam desejosos), também entendemos que de outras vezes o “amount” não foi o “right”, ou seja, que de outras vezes aquilo que me pareceu luxo asiático foi (vastamente?) ultrapassado. Mas como se diz, a repetição faz o artista e a prática o mestre; pois bem que o treino continue na arte de mandar vir e que venha o próximo Harvard na Gulbenkian e que o próximo walshiano tenha tanta sorte como eu. A todos os outros, não pensem na lagosta que vos faz úlceras no estômago.