Num dos melhores filmes estreados em Portugal no ano passado, L’image manquante (A imagem que falta, 2013), o seu autor Rithy Panh propôs-se criar imagens animadas para o massacre cambodjano levado a cabo pelo regime de Pol Pot ante o facto de imagens do real não existirem a partir do qual se pudesse contar a sua “história”. Com Claude Lanzmann o dilema parece ser um pouco o inverso: não há história contável com as imagens do Holocausto que sobrevivem (as “found footage”) que possam resistir à tensão entre a “estética negativa do inimaginável” do grande trauma e a mistificação do que não se pode ver ou dizer. Perante isto, Lanzmann, um homem de acção, propôs-se investigar, ouvir, montar, “matar com a câmara” os protagonistas das atrocidades e suas vítimas erigindo um “monumento cinematográfico” que rejeita qualquer espécie de espectador ou olhar sagrado e que, ao erguer-se, tem muito mais a força de uma resposta bélica ao espírito do que não podia ter ocorrido mas ocorreu. Shoah (1985), a catástrofe, era isso e produziu na vida do cineasta uma missão como arborescência do qual até hoje não se conseguiu livrar. Le dernier des injustes (O Último dos Injustos, 2013), daí decorre, dessa proliferação de imagens e testemunhos, cada uma com uma ideia de justiça pessoal pronta a tornar-se filme.
Desse ponto de vista Benjamin Murmelstein é um herói a quem o francês dá o braço no final do filme. Um judeu austríaco, último “decano dos judeus” sobrevivente encarregue da gestão de Theresienstadt (Terezin), uma maqueta, “modelo de gueto”, Disneylândia da deportação, a 60 quilómetros de Praga, a cidade “oferecida” por Hitler aos judeus. Filmado por Lanzmann em 1975 aquando do seu exílio em Roma, portanto dez anos antes de Shoah, Murmelstein permaneceu aos seus olhos como alguém que valia a pena redimir. Quase 40 anos depois, Le dernier des injustes, recuperando essas imagens, é nesse sentido muito menos um filme hitchockiano sobre a apuração de responsabilidades morais ou a natureza do imperativo categórico de mais um dos Pôncio Pilatos produzidos pelo nazismo e mais um diálogo filosófico entre um cineasta com uma missão e um “tigre” que jogou o jogo da propaganda. Alguém que, como Xerazade, foi contando histórias ao regime para ir distraindo da sua actividade de exportação de judeus e de manutenção do próprio gueto ante a alternativa que se via a Leste, essa ainda mais mortífera: Auschwitz.
Contudo, essa redenção não vem sem obstáculo. Não raras vezes os pequeninos olhos de Murmelstein se agitam e enervam ante as provocações do realizador como quando este lhe sugere que havia nele um certo desejo de poder (o decano teve a oportunidade de escapar com um visto da Cruz Vermelha ao jugo nazi mas recusou pois era um “homem de aventura” e sentia que tinha um dever a cumprir) ou quando Lanzmann lhe diz que ele parecia tão preocupado com os seus afazeres organizativos de Theresienstadt que dava a sensação que ali não estava instalada a barbárie. De certa forma, no filme põe-se à prova essa mesma “banalidade do mal” que Hannah Arendt entreviu em Adolf Otto Eichmann , “banal klein mann” e um dos arquitectos da “solução final”. Murmelstein que até se considera o “último dos injustos” (com base no romance de André Schwarz-Bart “O Último dos Justos”) ou dinossauro no meio da estrada entre o colaboracionismo e a marioneta que movia as suas próprias cordas, é o primeiro a contrariar a tese da Arendt expondo a monstruosidade de Eichmann (com o qual privou durante alguns anos) e salientando que a “ética do trabalho” era mais importante para a sobrevivência do seu gueto do que o choro sobre os enforcamentos e demais atrocidades. Tudo menos banal, instintivo, ideológico, sádico, parece justificar-se.
Deste diálogo faz também parte a imponente figura do próprio Lanzmann, quase com noventa anos, que se filma no presente em alguns dos locais do filme como Terezin ou Nisko na Polónia, lendo passagens do romance “Terezin, il ghetto modello di Eichmann” que Murmelstein escrevera em 61. Ao contrário do uso da “exterminação como décor“ [aquilo que Lanzmann acusou Spielberg de fazer com Schindler’s List (A Lista de Schindler, 1993)], trata-se dos espaços da exterminação como evocação de uma experiência pessoal, não objectiva, de não historiador que testemunham, nas “breves” três horas e meia do filme, a dimensão da sua missão que aparece hoje, como nunca, com uma dimensão interminável, de passado com o qual nunca se chega a um ponto final de reconciliação ou redenção. Sobre esse poder de evocação de um filme acerca de uma “cidade ficcional” habitada por mártires e pelo seu manager na organização do terror, expert em mitologia, combatente até ao dia da sua morte da acusação de judeu traidor pelo seu povo, há uma outra cidade que as palavras de Lanzmann desenterram. Essa cidade, já se vê, por detrás das imagens do filme de propaganda nazi que Lanzmann mostra em Le dernier des injustes. Estas serviram a venda de Theresienstadt como um sítio idílico pleno de trabalho, lazer, jogos de futebol, mas mostram, dizia, por detrás delas – na forma como a mise en scène nazi escolhia os planos de conjunto com muita gente a trabalhar (antecipando a compressão dos corpos), na simbologia do rasgar dos tecidos nas oficinas de trabalho, na possibilidade vista como qualidade mas hoje prenunciador da vida nua que eram os banhos municipais a que os seus habitantes teriam “direito” – uma outra realidade além da ficção.
Esses desenterrares, como escombros que a imagem nos deixa, são a visibilidade possível daquilo que o olhar rejeita. Desta feita, neste filme, como em todo o cinema de Lanzmann, tão incomensurável e duro como o que mostra, com toda a imóvel crueldade irrepresentável que exala dos espaços do holocausto e da História, apetece sempre fechar os olhos. Que os olhos se abram e re-abram a custo é tanto algo da nossa condição de herdeiros de um fazer sem medida, como é dever de condição humana aquém e além do religioso.
Le dernier des injustes será exibido a partir de hoje juntamente com Night Will Fall (A Noite Cairá, 1945) de André Singer e Der Anständige (O Homem Decente, 2014) de Vanessa Lapa no Cinema Ideal num programa em torno da memória da 2ª Guerra Mundial. (Basta seguir algumas das últimas propostas que por lá têm passado para perceber que daí têm vindo sistematicamente novos e interessantes olhares sobre a programação de cinema. Que assim se mantenha é o que desejo.)