Na última cena de Miss Julie (2014), John aperta o laço da sua gravata de mordomo, antes de subir as escadas em cumprimento do dever, isto é, das suas obrigações serviçais. Deixadas, estranhamente, para trás as atribulações de uma noite de solstício – qual Hora do Lobo –, resolvidos os abismos de classes e os martírios do espírito, John aperta o laço mas, reparamos, não fica devidamente apertado: há uma folga, uma frouxidão, um vácuo de nó mal dado. Assim podemos ver Miss Julie, através do vácuo desse “laço lasso”, ou melhor, assim se apresenta Miss Julie – como um nó mal apertado.
Familiarizados que estamos com o cinema de Ingmar Bergman, de onde vimos outrora emergir uma mulher de olhar triste e sorriso meigo, Liv Ullmann admite ainda hoje: “I am Ingmar. Because I think that we understood each other.” Tanto é que concorda implicitamente com o facto de outros verem, aqui e ali, semelhanças com alguns traços dos seus filmes (“we don’t know what’s on the back of our minds”). Eu precisava de começar por aqui, porque não sou capaz de descolar o ADN bergmaniano de alguém que esteve tão próximo dele, a ponto de dizer (usando o primeiro nome, que é sempre mais íntimo) “I am Ingmar”. Sim, vemos Viskningar och rop (Lágrimas e Suspiros, 1972) nas paredes vermelhas, no eco do casarão de Miss Julie, e na figura de Kathleen, a cozinheira, incontestavelmente sugestiva da imagem de Anna, a criada no outro filme; e vemos também um ar de Höstsonaten (Sonata de Outono, 1978), na claustrofobia de uma discussão que, não sendo entre mãe e filha, é um vulcão expelindo quanta lava pode, entre jogos de sedução e luta de classes. Não sei se “vemos”, mas eu vi estes filmes visitados em Miss Julie. Contudo, falar dos seus filmes não significa dizer que o cinema de Bergman habita o cinema de Ullmann, porque isso já é outra camada da atmosfera. Os sintomas existem, mas a doença não permanece, daí que Miss Julie seja esse laço mal concretizado, uma folga que Bergman nunca permitiria que ficasse.
Deixo agora Ingmar Bergman em paz.
Miss Julie é uma peça de teatro já levada ao cinema por diversas vezes – de entre as quais apenas a versão de Alf Sjöberg (1951) deixou marcas para a posteridade – e que não seria muito óbvia nos interesses cinematográficos de Ullmann, mais ligada ao teatro de Ibsen. O caminho para esta escolha iniciou-se aquando a encenação de Um Eléctrico Chamado Desejo, de Tennessee Williams, em que Ullmann se aproximou dos autores que inspiravam o dramaturgo americano, descobrindo August Strindberg e a sua queda para as matérias mais profundas do ser humano (em contraste com as situações cénicas de Ibsen). Acerca disto, Ullmann diz que a beleza não é aquilo que Strindberg procura em primeira instância, embora esta se traduza nas personagens, “because if you don’t see beauty in these people, it’s impossible to follow them.” Seguimos então Miss Julie (Jessica Chastain), John (Colin Farrell) e Kathleen (Samatha Morton) na beleza das suas imperfeições, numa noite de solstício de Verão – 1890 – que concentra as brilhantes performances dos três numa cozinha que parece ficar cada vez mais pequena à medida que o filme avança. E para onde avança? Um túnel, que se vê através da janela desta cozinha quase subterrânea, é o horizonte mais imediato.
Com muito poucas alterações no texto original, Ullmann, ainda assim, adequou-o ao seu olhar feminino (ao que se diz, Strindberg odiava as mulheres), passando a acção para a Irlanda Vitoriana e incluindo alguns pormenores narrativos, como o sangue após o acto sexual (que não tem necessariamente de significar a perda da virgindade, pelo menos em sentido literal); o prefácio fílmico, com uma imagem simbólica da infância da protagonista, numa espécie de instalação, a priori, do trauma; e o próprio espaço confinado em que decorre a acção, abstraída do mundo (mesmo do mundo irlandês). Liv Ullmann chamou a esta última circunstância – o espaço confinado, por questões orçamentais – a sua quarta personagem. E percebemos bem porquê, percebemos como o molde do “teatro de operações” define a nossa própria experiência do filme.
Apesar de não conseguir “apertar o laço” como Bergman (e volto a ele pela última vez), Miss Julie, de Liv Ullmann, preserva uma dignidade que me impele a aconselhá-lo ao espectador, nem que seja para ver John beijar a bota da patroa (à la fetiche buñueliano; vá, um bocadinho) ou vê-la aparecer – Miss Julie – pela primeira vez em cena, vinda de uma sombra que lhe define os contornos da face como se desenhasse uma caveira.
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