Esta série de textos, em que se visitarão as cabines de vários cinemas de Lisboa, organiza-se como uma sucessão de retratos de projeccionistas e dos seus locais de trabalho — retratos que também serão literais graças às fotografias de Mariana Castro. Falando dos equipamentos, mas também das pessoas que os usam todos os dias, estes textos mostrarão não só as rupturas, mas também as continuidades impostas pela chegada da projecção digital aos cinemas. E darão a conhecer um pouco melhor aqueles espaços de sombra, longe do público, onde trabalham as pessoas e as máquinas que iluminam os nossos ecrãs.
Fernando Vidal, 40 anos, casaco de cabedal preto e o capacete da mota ainda debaixo do braço, espera-me à porta do Cinema Ideal. É o director técnico de uma das salas de cinema mais antigas de Lisboa, mas também da mais recente, reaberta há poucos meses após uma renovação integral. Tal como muitos dos seus colegas, recusa descrever-se como projeccionista, profissão que considera já não existir. De facto, longe vão os tempos em que só podia trabalhar como projeccionista quem tivesse carteira profissional, obtida depois de um exame rigoroso. A profissão estava estratificada em várias categorias, de ajudantes a projeccionistas (a projecção não era necessariamente um trabalho solitário), e a progressão na carreira não saltava etapas.
Hoje, são vários os percursos através dos quais se chega à projecção de cinema. O de Fernando Vidal, que estudou Economia, começou na distribuição, na Atalanta Filmes, onde trabalhou durante sete anos. Foi depois gerente de sala no Cinema City do Campo Pequeno e entrou na Midas Filmes em 2014, dedicando-se exclusivamente ao Ideal desde a sua abertura, em Agosto. Nunca projectou película, mas guarda a memória do trabalho das revisoras de cópias de 35mm da Atalanta. Sabe muito bem, por isso, todo o trabalho que a projecção digital lhe poupa.
Acompanhou todo o projecto de construção e a instalação técnica do Ideal e, para além da gestão quotidiana dos equipamentos, planeia as pequenas intervenções que poderão melhorar a qualidade da projecção (como, por exemplo, o aumento da inclinação do ecrã para compensar o ângulo de projecção devido ao balcão). A formação de Fernando resulta do que aprendeu sozinho, com os representantes das marcas dos equipamentos instalados, mas também com outros colegas. Como faz questão de salientar, existe entre alguns deles uma disponibilidade para a entreajuda que, acrescento eu, funciona como uma escola e como uma rede de apoio. Entusiasma-se quando começamos a conversar sobre o projector. Pode enjeitar a palavra, mas o orgulho com que me falará da “sua” máquina faz-me pensar em todos os projeccionistas do tempo da película que já conheci.
Subimos então à cabine, cujo acesso se faz pelo balcão. O espaço é mais ou menos o mesmo desde 1904, mas tal como o resto do cinema foi totalmente remodelado pelo arquitecto José Neves. As cabines mais antigas foram acumulando equipamentos e cablagens ao longo do tempo até estes cobrirem todas as paredes e o chão. São espaços sem luz natural, com uma planta irregular e tectos esconsos. Aqui, pelo contrário, o bloco do projector está isolado numa sala nova, ampla e praticamente vazia. À esquerda, uma fiada de janelas, normalmente fechadas, dá para a Rua da Horta Seca. As cores escuras do chão, das paredes e do tecto, a penumbra, o espaço livre e a centralidade do projector lembram mais uma galeria de arte do que uma cabine de cinema.
Para além da lâmpada, do modulador de luz e da objectiva, um projector de cinema digital inclui ainda um servidor, onde se se armazenam e processam os filmes em ficheiros DCP (Digital Cinema Package) e um sistema de gestão das sessões. As gerações mais recentes de projectores já trazem os servidores integrados na sua própria estrutura. É o que acontece na cabine do Ideal, equipada com um projector 2K Christie CP2220 (semelhante aos que são usados nos ecrãs médios de um multiplex), um servidor integrado de 3TB e um conversor SKA-3D, o “canivete suíço dos processadores de cinema digital”, como se lê numa brochura da Christie, capaz de converter sinais vídeo em sinal 2K projectável. O sistema de som é também da Christie, o Vive Audio com Dolby Atmos 5.1, o primeiro instalado no país, garante-me Fernando Vidal.
Um projector de película exige várias tarefas que se sucedem como uma coreografia de gestos precisos, feitos nos momentos certos e sempre na mesma ordem pré-determinada. Os trailers, anúncios e cópias têm que ser montados e carregados; têm que ser escolhidas as janelas de projecção e as objectivas correctas para cada filme ser mostrado no formato correcto; os formatos de som e imagem correctos também têm que ser definidos e alterados se houver diferenças entre os trailers e o filme; as luzes da sala, a música ambiente e a máscara do ecrã têm que ser ligados e desligados na altura certa. E depois é preciso voltar a preparar tudo para a sessão seguinte. Se os multiplexes já incorporavam mecanismos que automatizavam estas tarefas, isso tornou-se ainda mais fácil com os novos projectores digitais. Usando um pequeno ecrã táctil instalado no topo do projector, Fernando define de uma só vez todas as operações que, antes, teria que executar presencialmente antes, durante e depois de todas as projecções.
As idas à cabine têm lugar, por isso, sobretudo fora das sessões. Nessas alturas, Fernando debruça-se sobre o ecrã táctil, de caneta em punho —como faz agora para eu ver— para carregar os DCPs no servidor (a operação de ingest, feita ligando um cabo ao disco de transporte) e para definir uma show play list para cada sessão, isto é, a ordem e os formatos de som e imagem de cada trailer e do filme, mas também para fixar os momentos em que as luzes da sala diminuem, se apagam e voltam a acender, e, claro, os horários das sessões. Depois, obediente e pontualmente, o projector ligar-se-á sempre um quarto de hora antes para aquecer a lâmpada e fará o seu trabalho. Quase se pode dizer que, na maior parte das sessões, o projeccionista é o próprio projector. Mas claro que se houver uma sessão apresentada pelo realizador (o que acontece frequentemente no Ideal) e o horário programado tiver que ser alterado, podemos ter a certeza de encontrar Fernando na cabine, atento ao momento de fazer arrancar o projector.
A visita chega ao fim. Fernando guarda a caneta, o ecrã táctil apaga-se e deixamos a cabine. Está a acabar uma sessão de The Kid (O Garoto de Charlot, 1921). Já estamos na soleira do Ideal quando o filme termina e as luzes se acendem. Ao passar por nós, o último espectador cumprimenta (saberá ele?) o director técnico do Ideal, que retorna e agradece. Obrigado eu, Fernando.
Agradecimentos: Pedro Borges, Fernando Vidal, Maria João Madeira, António Medeiros.