Muito se falou, a propósito da estreia de Pasolini (2014, Abel Ferrara), do “novo fascismo” que o realizador e intelectual italiano teorizou nos anos 70, última década dos chamados “30 gloriosos” do capitalismo do pós-guerra. Pasolini referia-se ao consumismo maciço, brutal, sufocante, próprio de uma ideologia (o capitalismo) que, a seu ver, pela sua pulsão uniformizadora, homogeneizante e devoradora (epítetos que, desde há uns anos, vêm sido substituídos pelo eufemismo “globalização”), anulava a liberdade dos homens, sublinhava as desigualdades (porque nem todos podem consumir da mesma forma) e, tão ou mais importante, desligava o homem da cultura, do espírito crítico, enfim, do humanismo (se podemos não subscrever a primeira parte da conclusão, não duvidamos da veracidade da última).
Começámos por Pasolini e pelo mundo que este, à época, dissecava para chegar a Todd Haynes e ao mundo sobre o qual Safe (1995) reflecte (e parodia?). Se, como já se escreveu e muito bem, Safe é um filme de terror, é porque, em bom rigor, o mundo (o “ambiente”, já que é também isso que está em causa) nele retratado é, ele próprio, de certo modo, lugar de alguns “terrores”, outra forma de falar dos comportamentos e paranóias instituídas que o habitam – e é aqui que o cruzamento com Pasolini ganha luz. Antes, porém, de iluminarmos esse cruzamento, devemos esclarecer um ponto para nós capital: ao contrário de Pasolini, mas à semelhança de George Orwell (aqui e ali), somos dos que pensam que a constante e incriteriosa adjectivação de qualquer movimento ou tendência como “fascista”, banalizando e relativizando o que, de facto, ele é, só contribui para o seu esvaziamento e, pior, para o seu esquecimento (se tudo é fascismo, nada é fascismo ou, então, é, apenas, e nas palavras do próprio Orwell, “something not desirable”), com isto só se favorecendo, está bom de ver, o alvo que se combate. Preferimos, por isso, separar o trigo do joio – e, já agora, não cair em exageros, típicos de iconoclastas como Pasolini – e falar, antes, em movimentos (num sentido lato que abrange as “modas” comportamentais) tendencialmente totalizantes (e estupidificantes), mas nos quais, na grande maioria dos casos – e esta é a pedra de toque na distinção –, o Estado ou outros poderes corporativos não estão aos comandos (alguns quererão ver ingenuidade ou simplismo neste raciocínio, mas devolvemos o mimo: o mundo é muito mais complexo do que a “luta de classes” e do que conspirações para entreter que, em última linha, só alimentam e reproduzem a ignorância).
Safe é um update da tese de Pasolini, no sentido em que o “novo fascismo” – descontando, insista-se, a inadequação do termo – personificado pelo consumismo tem o seu correspetivo, na pós-modernidade em que se ambienta o filme de Haynes, nas mais diversas, chamemos-lhe assim, “ditaduras da existência” (exacerbação da arte da existência, do “cuidado de si”, de que falava Foucault), sejam as da higienização (temos todos que lavar as mãos depois de mudarmos o óleo do carro ou de dizermos uma piada); da saúde (temos todos que fazer check-ups disto e daquilo a toda a hora; não fumar, não beber, etc.) e, dentro desta, autonoma e muito orgulhosamente, a sub-ditadura da alimentação saudável (light, gourmet, “verdes”, vitaminas e afins); do desporto (temos todos que ir ao ginásio ou embarcar no running e apresar devidamente um dispositivo no braço que contabilize as respectivas estatísticas); e, claro, a da socialidade “em rede” e da “partilha”, de que o gosto se assume como suprema cristalização de um poder uniformizante e de uma forma de estar intelectualmente paupérrima [é notável, de resto, que um tipo como Mark Zuckerberg, a quem não se conhece nenhum pensamento ou visão do mundo, tenha o pretensiosismo de afirmar, em alto e bom som, que a possibilidade de o Facebook oferecer a opção não gosto é “má para o mundo” (?!) ou de recomendar a esse mesmo “mundo” que o acompanhe na sua leitura de dois livros por mês]. Claro que todas estas modas uniformizantes vão beber o seu modo de reprodução e sedução ao capitalismo tecnológico e “vampírico” dos dias de hoje, que, consumindo e absorvendo tudo à sua passagem, banaliza as palavras e as coisas – e isto não é demonizá-lo (ao capitalismo); bem pelo contrário, é analisá-lo objectivamente na sua extraordinária complexidade, recusando maniqueísmos a preto e branco (“pobrezinhos bons e ricaços maus”) e delírios conspiracionistas. Não é necessário recorrer ao estafado exemplo das t-shirts de Che Guevara; veja-se o recente anúncio do Wall Street English, que, vendendo cursos de Inglês, o faz apelando à ideia de revolução (“Faz a tua revolução”… por 74 euros e até 30 de Setembro) e liberdade (inclusive com a representação gráfica do proletariado “avançando rumo ao socialismo”!) sob tons vermelho garrido, tudo acompanhado de uma estrela comunista – “LE PAROLE SONO IMPORTANTI!”, exasperava-se, há 26 anos atrás, Nani Moretti em Palombella Rossa. É, enfim, sensivelmente neste sentido, vampírico, que o demorado plano do carro com que Safe se inicia, ao som de uma electrónica que sugere mais “danger” do que “safety”, nos traz à memória a limousine-caixão do “capital” de Cosmopolis (2012), de David Cronenberg.
Safe, embora ambientado nos anos 90, tem já latente o germe totalizante de muitas destas “ditaduras da existência” actuais. No filme de Haynes, a consciência ecológica mais radical (de que a deep ecology é, talvez, a face mediática mais visível) é o dado de partida, o qual se expande e mistura (tique pós-modernista típico) com outras “ditaduras”, de que a higienização e a segurança, no sentido médico de preservar o corpo “limpo” e “são”, constituem, justamente, exemplos, próprias de uma sociedade em que o tema do Risco se tornou ubíquo (nem por acaso, faleceu, ainda recentemente, Ulrich Beck, um dos seus maiores teóricos). Carol (estupenda, aterradora, hipnotizante Julianne Moore) é a cobaia do estudo que Haynes, em estilo lento e espectral, leva a cabo sobre uma dona de casa da high class de Los Angeles (mais concretamente, do “condomínio” elitista de San Francisco Valley, cujas mansões são filmadas como autênticos bunkers) casada com um anódino e desinteressante executivo, com quem mantém um casamento by the book: mau sexo em alguns dias, dores de cabeça antes de se deitar nos restantes (“It’s freezing here” é a primeira frase que se ouve de Carol no filme, antes do acto sexual). A dado momento, por razões inexplicáveis, Carol começa a sentir-se perturbada com os fumos, os vapores (dos carros, da lavandaria onde desmaia) e os químicos (para o cabelo, por exemplo) que a rodeiam (há algo de cronenberguiano nesta intromissão da tecnologia no corpo, na carne, cujos “efeitos” se manifestam, num segundo momento, na mente). “Environmental disease” é o que lhe diagnosticam os responsáveis de uma organização a cujas sessões de esclarecimentos Carol acorre depois de uma série de “crises”, e da qual toma conhecimento através de um anúncio afixado no seu… ginásio (pós-modernismo at its best): “Are you allergic to the 20th century?”. É aqui que Safe estabelece outro paralelo com o “fascismo” consumista de que Pasolini falava, na medida em que, ao longo do filme, a divulgação das questões ambientais é feita como se de um autêntico “produto”, de uma “mercadoria”, se tratasse, através dos meios próprios (televisão, panfletos, anúncios) e com o intuito de alcançar o “consumidor”. E é numa perfeita lógica de sedução e captação (“marketing”, então) que Carol se deixará “convencer” pelo produto e tomará o passo lógico seguinte: adquiri-lo, comprá-lo.
Se tudo isto (a “doença” de Carol) é real (patológico) ou pura ficção (paranóia), é coisa que o filme, deliberadamente, nunca esclarece, já que, nas idas ao médico, o diagnóstico é sempre o que de nada de anormal se passa com a sua saúde. É Haynes a “medir”, queremos dizer, a confundir as fronteiras da percepção comum sobre a noção de “loucura” – Carol está mesmo doente? E se está, de quê? De depressão? Ou da tal “environmental disease”? Mas isso existe mesmo? Ainda que haja esse propósito claro em desfocar a fronteira que convencionalmente traçamos entre sanidade e insanidade [a mesma que é colocada em causa, ainda que em termos distintos, mas tendo outrossim uma mulher como protagonista, por Rossellini em Europa ’51 (1952)], nem por isso deixa de ser evidente que a “doença” de Carol parece ser outra: o profundo vazio, o absoluto tédio, a perfeita esterilidade do seu dia-a-dia, pontuado por lanches com amigas tão frívolas como ela própria, idas ao ginásio e ao cabeleireiro e cujo ponto alto é o “susto” com o facto de a cor do sofá encomendado para a sala de estar não corresponder à pretendida. É a somatização deste imenso tédio e dos seus “químicos” (sofás, cabeleireiros, ginásios) que, a pouco e pouco, fará de Carol um ser perfeitamente alienado (“alienígena” mesmo), débil (Carol tem por apelido “White”, que condiz com a sua cor e com a do leite que muito infantilmente bebe no filme) e fantasmático (as deambulações solipsistas pelo jardim de sua casa a meio da noite). Carol é, por isso, à sua maneira, uma mulher de Antonioni, uma Monica Vitti de Il deserto rosso (O Deserto Vermelho, 1964) – há um monólogo desesperado que poderia ser de qualquer uma delas: “Oh God, what is this? Where am I right now?…”. Mulher antonioniana, então, mas devidamente “actualizada” nas circunstâncias do seu tempo, se bem que a atmosfera de “terror” do filme a aproxime também das “loucas” da década de 60 de Roman Polanski [falamos de Repulsion (Repulsa, 1965) ou Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968]. Por esta razão nos soa precipitado afirmar que, em Safe, do que se trataria é sempre do estudo do modo como o “exterior” (os fumos e os químicos, no caso) afecta o “interior” dos homens, visto que a primeira parcela da equação pode ser só – tudo indica que sim – uma ficção paranoica. O movimento não nos parece ser, portanto, ao menos exclusivamente, centrípeto, i.e., de “fora para dentro”, mas resultar de uma conjugação talvez mais complexa: os problemas interiores de Carol (o tédio, o vazio), que são um facto pré-existente, expandem-se, quer dizer, buscam legitimação/justificação em causas exteriores (movimento centrífugo), para, depois sim, regressarem ao interior e destruí-lo por completo.
Em Safe, “ambientes” há pelo menos dois em jogo, o familiar/social e o do planeta, a ambos Carol se mostrando completamente “alérgica”. A obsessão de Carol com o evitamento de todo o tipo de chemicals e a consequente necessidade de se sentir “safe” volver-se-ão, então, no sentido de uma vida até aí absolutamente carente dele: a busca do “sentido da vida” – é nisso, ao fim ao cabo, que reside a odisseia interior de Carol – converter-se-á na busca pela segurança, pela preservação radical do organismo, qual “reacção alérgica”. Num momento em que já se faz acompanhar de uma mini botija portátil de oxigénio para todo o lado (há também humor neste e noutros momentos do filme, um certo “humor de terror”, como igualmente apodámos o de Fassbinder), Carol decide, com a concordância do marido (tão compreensivo quanto desinteressado do problema), retirar-se para um centro de tratamento longe de tudo e todos (Novo México) que acolhe pessoas acometidas de “environmental disease”, com o intuito de se “desinfectar” e aumentar os seus níveis de tolerância aos químicos (que, naquele momento, estão a metade dos índices normais, segundo lhe dizem os funcionários do centro). O centro no qual Carol se instala remete para o fenómeno, muito em voga entre os americanos (e não só) nos anos 70 e 80, das experiências comunitaristas ligadas às filosofias new age, esotéricas, de auto-ajuda e auto-gnose, de que a sequência inicial de Bob & Carol & Ted & Alice (Bob, Carol, Ted e Alice, 1969), de Paul Mazursky, é um fabuloso ilustrativo fílmico. Com uma particularidade: neste centro, é proibido fumar, beber ou ter relações sexuais (homens e mulher dormem em “alas” separadas), directrizes que deixam à superfície a pulsão autoritária deste e doutros movimentos do género. De acordo com a terapia prescrita pelo Guru (“escorregadio” e ambíguo Peter Friedman) do centro, a “cura” para os “internados” está, afinal, no amor-próprio e na auto-estima (autênticos “placebos”), com o que fica desmascarada a impostura da “environmental disease” – se a doença é “ambiental”, por que razão o tratamento é aquele que, normalmente, está associado à superação de depressões, ou seja, de doenças do foro psiquiátrico? Talvez porque haja sempre charlatões determinados a ganhar dinheiro (o Guru vive numa enorme mansão mesmo por cima dos rudimentares quartos dos “pacientes”) à custa da fragilidade dos outros? Provavelmente, sim.
Embora instalada no centro, Carol ficará cada vez mais obcecada com a sua “segurança”, autêntico fetichismo que a levará a deixar o primeiro bungalow e a instalar-se num igloo (de um paciente que entretanto morreu) absolutamente isolado (mesmo da própria comunidade do centro) e dotado apenas dos objectos mínimos de conforto: uma cama e o espelho defronte do qual, no último plano do filme – auge da alienação e paranóia da personagem –, Carol repetirá as palavras que a directora do centro lhe dissera ser as do início da cura: “I love you”. Frase que, mais do que o correspectivo “I love me” (o “you” que se vê ao espelho é o “me” que ele devolve), insinua o início de uma possível esquizofrenia, de um desfasamento mental – ou será que não, será que, como houve quem defendesse, a determinação subjacente à afirmação indicie a recuperação de Carol? Uma vez mais, a dúvida subsiste. Como quer que seja, não deixa de ser irónico e paradoxal como o tipo de filosofias que animaram estes e outros movimentos, renegando uma sociedade que consideravam individualista e egoísta, tenham, afinal, achado a cura para os seus males em fórmulas perfeitamente egocêntricas.
Safe, filme essencial para se compreender o nosso tempo, será exibido dia 28 de Janeiro (entrada livre), pelo Cineclube de Joane, em Famalicão.