A noite corre as cortinas que o Sol abre.
Música e luz acompanham o nosso entendimento.
Todas as coisas são amáveis com a nossa carne. (…)
(…) O homem é um mundo,
e tem outro para o servir.
George Herbert
Quando se monta uma imagem a outra e se sabe que se quer fazer (ou chegar) a um filme há sempre uma dupla dinâmica que se abre. Uma, a do procurar e do encontrar. Duas, a do construir e do destruir. Sendo esses movimentos próprios do comboio fílmico são também temas centrais no que move o cinema de José Luis Guerín. Esse espanhol, que vai dialogar este fim de semana com o português Vítor Gonçalves no ciclo Harvard na Gulbenkian, mostra em Tren de Sombras (Comboio de Sombras, 1997), o seu melhor filme [talvez só atrás da obra-prima En construcción (Em Construção, 2001)] o nó onde estas dinâmicas se encontram e se tornam mais visíveis.
Os outros dois filmes do espanhol que compõe esta “conversa” – Unas fotos en la ciudad de Sylvia (2007) e En la ciudad de Sylvia (2007) – são aqueles onde a procura (com figuração feminina ou sem ela) é o motor para a viagem urbana ao estilo goethiano e onde as sombras do espaço de Estrasburgo se confundem com as sombras que só aparentemente têm carne e osso e que um dia se encontraram para só depois se dissolverem e para sempre se buscarem. Essa procura, cujo encontrar apenas serve para preencher a constante flânerie do observador e a hipótese de uma “vida invisível”, tem um contraponto no olho de Guerín sobre o desaparecimento do Barrio Chino em Barcelona no filme de 2001. Como os espectros de Pedro Costa, também o espanhol apanha a construção da nova brancura das paredes dos edifícios que os homens das obras estão a construir e que significam a demolição da parede na qual a prostituta desenha.
Estranha “ventura” a do cinema português, também ela a remoer entre o ficar e o partir, entre o olhar o que há do lado de lá da janela e os desenhos principescos feitos de sombra que a luz ténue arranca às paredes de uma enxerga. De invisibilidade, de sombra e viagem (interior e exterior) se fará certamente este encontro entre Guerín e Vitor Gonçalves. En construcción apela sobretudo à exploração de um movimento que é sempre de em construção e de em desconstrução. Umas paredes erguem-se aqui outras acolá se desmoronam, mortos desenterram-se mas têm dentes mais perfeitos do que muitos vivos, a obra artística é por definição aberta mas também a obra dos mestres de obras e, claro, a Obra do “Obreiro” mais aberta não podia ser.
Tren de Sombras, o filme mais assumidamente experimental e meta-cinematográfico de Guerín, procura conversar com as imagens que o advogado parisiense e amador do cinema Gerard Fleury deixou nos anos 30 quando subitamente morreu em circunstâncias misteriosas quando buscava a melhor luz para a sua obra. Este diálogo é feito de uma procura, no(s) seu(s) cinema (s) (no de Fleury e no de Guerín), uma procura que não quer encontrar, de uma construção por sobre a destruição (as sombras que o cinema ontologicamente é e o desbotar das imagens que Fleury nos deixou como retratos familiares de um cinema campestre- à melhor tradição de Méliès, as gravatas dançantes mas também os gags de jardim e mangueiradas como em Lumière ou mesmo, porque não, o idílico rural que Renoir faria meia dúzia de anos passados – que agora são herdados pelo cineasta espanhol como marcas de experimentalismo e found footage.
Nesse comboio de sombras sempre em movimento que é o cinema, Guerín é bastante claro. Primeiro dá-nos a reconstituição dos filmes de Fleury para depois procurar os espaços na Normandia, na vila de Le Thuit, onde os filmes foram captados. Nessa procura o que era antes um espaço a negro e branco, de música insuflada na aventura familiar de danças, mergulhos e jogos, é agora um caminho de ferro abandonado, cheio de vegetação, um pachorrento quotidiano onde as crianças vão para a escola e um homem apanha folhas no passeio. Guerín herdou um espaço com cor, onde ficou apenas a música do mundo (o pisca do autocarro, a chuva, as bicicletas, os barcos que passam no rio, as máquinas no seu constante trabalhar), uma tela sob o qual se ergue novo muro, isto é, nova construção.
Na segunda metade do filme, quiçá a procura da emoção e da ternura originais do “primitivismo” no cinema de Fleury leva Guerín à reconstrução da figura do cineasta num paisagismo onírico sem narrativa e a uma manipulação das imagens que aquele filmou. Neste acto de (re)construção/desconstrução, as imagens filmadas pelo francês ganham novo fôlego além da paragem do comboio da história do cinema (vista como artefacto dos seus inícios e potencialidades) e abre-se como novo possível na mesma procura do mistério da vida quotidiana, no real onde uma estátua observa um carneiro e os habitantes da cidade entram e saem dos planos de Guerín nesse jogo manifesto entre o material e o imaterial, entre a vida visível e a vida invisível. Tudo contínua aí no mesmo jogo de sombra, o único lugar onde podemos significar sem ter receio de errar por excesso ou defeito.