Angelina Jolie, a actriz, dispensa apresentações. Angelina Jolie, a realizadora, merece que se dispense pelo menos hipotéticos preconceitos. Unbroken (Invencível, 2014) não é uma obra-prima mas está muito longe do telefilme aborrecido que poderia ter sido. Uma grande história de vida filmada como uma antologia de inspirações: cinematográficas e humanistas.
Há uma inegável preocupação social em vários dos projectos a que Angelina Jolie tem emprestado o seu carisma nos últimos anos. Goste-se ou não da sua abordagem, a verdade é que Jolie tornou-se um dos rostos mais conhecidos de uma série de iniciativas, nomeadamente o seu trabalho com refugiados como embaixadora da ONU. É fácil perceber como é que o potencial de uma história como a de Louis Zamperini possa ter cativado Jolie. A palavra-chave aqui é “inspiração”: Zamperini, a figura inspiradora, por Jolie, a outra figura inspiradora. E, podendo descarrilar, o encontro resultou. Unbroken é uma história impressionante (“a true story” como é garantido no início) de um “herói americano”.
Jolie filma o mito sem nunca dissociar este do homem – reconhecendo que o extraordinário em Zamperini está na sua humanidade e que esta se vislumbra mesmo quando se desconfia dos efeitos fílmicos para a glorificar. Absorvendo imagens mil vezes filmadas e congregando-as, simultaneamente, com uma serenidade de quem aprendeu a fazer as coisas com quem sabe e uma energia quase hiperactiva de quem quer mostrar tudo o que se aprendeu, Unbroken aspira a ser um grande filme e acena a grandes filmes mesmo que não seja mais do que um filme competente – uma máquina bem oleada a funcionar na perfeição mas que nunca surpreende sem ser na surpresa de não desapontar. É um filme sobre um herói que nunca se afasta da mensagem de esperança, de superação pessoal (não é, como um filme de propaganda, glorificador de um país ou de um dos lados da guerra mas da capacidade humana). Não é um filme de cinismos e por isso talvez não agrade aos cínicos. É um filme onde as boas intenções não o estragam mas, ao invés, o tornam convincente porque se vê que Jolie acredita naquela história e faz os possíveis para que o espectador acredite também, enquanto o entretém com uma certa sensação de déjà vu.
(Atenção aos spoilers)
Uma pequena sinopse da vida de Zamperini ajudará a compreender, para quem não conheça já a sua história, o quão fascinante era o material base, de que aparentemente Jolie fez um uso até limitado. Filho de imigrantes italianos (a mãe, no filme, nem inglês fala) nos Estados Unidos – será talvez redundante frisar o facto, bem evidente no filme, ou talvez não seja de mais referir a força deste exemplo nos tempos de ódio aos imigrantes que estamos a viver – Louis Zamperini era um miúdo “problemático” (bebia, fumava e fugia da polícia – como tanta juventude inquieta no ecrã) até o irmão, num pequeno discurso que parece ter sido feito para um bom trailer (várias deixas do filme assim parecem), o convencer a usar as suas energias como atleta numa equipa local. “If you can take it, you can make it”, diz-lhe o irmão, e a máxima será lembrada e praticada por Zamperini ao longo dos anos seguintes. Como por magia, Zamperini transforma-se de bom rebelde em desportista premiado. Vai aos Olímpicos de 1936 – os de Berlim, de Hitler (a quem Jolie, interessantemente, nega uma aparição no filme) e, não esqueçamos, de Leni Riefenstahl. Anos depois, vemos Zamperini como tripulante de bombardeiros na Segunda Guerra – essa guerra já tão cinematograficamente presente que nem são dadas grandes explicações para o que vemos. O avião cai no mar, ele e dois companheiros ficam à deriva numa lancha salva-vidas durante 47 dias, à mercê do clima, da fome e dos tubarões. O suplício marítimo termina quando são recolhidos por um navio japonês. Começa então um suplício terrestre, em três campos de prisioneiros japoneses onde Zamperini e outros soldados são torturados e sujeitos a trabalho forçado e outras provações. Em dois dos campos Zamperini é motivo de indesejadas atenções por parte de um dos guardas japoneses, o sádico Watanabe. O filme segue a vida de Zamperini até ao seu regresso aos EUA no final da guerra, mas um epílogo alude brevemente ao que se seguiu e que é um dos elementos mais impressionantes da sua história: depois de tudo o que passou, ele perdoa os seus captores e volta ao Japão para se reencontrar face-a-face com eles (só Watanabe recusou).
Perante esta vida – que se tornou tema do bestseller de Laura Hillenbrand que o filme adapta – o resultado poderia ter radicado em algo telefilmesco mas Jolie agarra a história com ganas de cinema. Não um cinema “de autor” com uma visão particularmente original mas um que parece ir buscar uma série de elementos a uma variedade de obras cinematográficas e tentar replicá-los com uma segurança surpreendente e quase infalível que resulta num estranho equilíbrio apesar de nada parecer particularmente novo. Abrindo a meio de uma batalha aérea digna de um grande filme de guerra ou acção (provavelmente uma das cenas mais bem conseguidas, do olhar que é tido sobre os espaços do avião à tensão do momento), passando pelo drama desportivo e incluindo longas cenas na água com instantes quase de terror, Jolie nunca abandona o rosto de Zamperini, centro incontestado deste filme de personagem. Zamperini o miúdo rebelde, Zamperini o atleta de excepção, Zamperini o piloto jovial, Zamperini o náufrago à deriva, Zamperini o soldado-prisioneiro corajoso. O actor que lhe dá vida, o inglês Jack O’Connell, apesar de não ser estreante, é uma revelação. A espaços faz lembrar um jovem Chris O’Donnell a fazer de Hemingway numa outra guerra, mas a força da sua personagem evoca ainda mais outra figura: a própria Angelina Jolie em filmes anteriores. Jolie sabe mostrar Zamperini como um curioso objecto de desejo – aliás, ele e os seus companheiros, que são filmados com o olhar com que, quase apetece dizê-lo, um homem filmaria meninas giras. Mas o exercício não é oco: progressivamente os seus corpos serão reduzidos a farrapos.
Há uma subtil capacidade para, no meio de aparentes certezas de belo e de bom e de mau, se irem mostrando reversos e ambiguidades: o cruel Watanabe que atormenta Zamperini ao mesmo tempo que, o filme sugere, o deseja de forma misteriosa [o cantor japonês Miyavi num dos papéis fortes do filme – talvez um eco desse outro guarda prisional interpretado por uma figura da música, o de Merry Christmas Mr. Lawrence (1983)]; as bombas incendiárias sobre Tóquio que deixam os prisioneiros entusiasmados pela vitória aliada que se anuncia só para verem com os próprios olhos o horror desses bombardeamentos quando têm de passar pelas ruínas da cidade a caminho de um outro campo (os civis recolhendo os seus mortos – que Jolie filma com a mesma dignidade silenciosa que filmara as vítimas dos adversários: todos eles humanos). Um dos melhores e, provavelmente, dos mais despercebidos, contrastes do filme é sugerido quando Zamperini chega a Tóquio, rumo a um campo de prisioneiros. A venda que lhe cobre os olhos deixa entrever pedaços dessa cidade de vanguarda já em espiral destrutiva, uma peculiar contradição: os grandes outdoors publicitários e os prisioneiros de guerra em fila, tal como depois o arranha-céus da Radio Tokyo a contrastar com a miséria do campo. E a frase de Zamperini, claro, notando como era suposto ter vindo a Tóquio competir nos Olímpicos de 1940, que seriam cancelados. Em poucas palavras e planos: o Japão que poderia ter sido, a prosperidade e promessas de paz contra as duras realidades da guerra.
Nem tudo é mérito de Angelina Jolie, claro. Aliás, o ponto número um de interesse em Unbroken é a própria figura de Louis Zamperini, e se tivermos de creditar alguém com a popularização da sua história talvez Hillenbrand seja a mulher a ter em primeira conta. Mesmo que o argumento seja assinado pelos irmãos Coen (quem diria?) e outros dois argumentistas, é o livro-base que continua a grande referência. Também o director de fotografia Roger Deakins é uma presença nada negligenciável para o resultado do filme, bem como a extensa equipa que terá contribuído para um filme que se desenrola no ar, no mar e em terra, conta com dezenas (centenas?) de figurantes e procura fazer uma reconstituição de época verosímil. Mas será injusto não ver o papel de Jolie, a celebridade e a mulher de causas, por detrás daquilo que uns verão como o melhor e outros o pior de Unbroken: uma épica história pessoal à escala de Hollywood sobre a capacidade de ir além dos limites do ser humano. E não é preciso repetir a ideia de que Jolie é uma mulher a filmar uma história de homens. Esta é uma história de humanidade – e é isso que, talvez, mais importe no filme.