Tal como Guerín se correspondeu com Jonas Mekas, como aliás outros cineastas o fizeram entre si no projecto Correspondencia(s). Tal como Guerín se correspondeu com Vítor Gonçalves, graças ao décimo primeiro programa Harvard na Gulbenkian. Tal como todo o cinema é feito de correspondências várias, algumas tão improváveis (ou mais até) que estas, aqui no À pala de Walsh decidimos transformar a esperada reportagem mais ou menos tradicional numa troca de emails entre os nossos enviados especiais: Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa. A conversa, aberta e irregular como todas as trocas de mensagens entre amigos, atravessa vários temas, pendendo sempre para os cinemas do espanhol e do português, mas também tocando em aspectos da organização destes belos ciclos de cinema que terminaram no passado dia 25 de Janeiro, 12 programas e diálogos depois.
Olá Ricardo,
Estava aqui a tentar trabalhar para a tese, mas não consigo ultrapassar duas coisas que vi – ou deveria antes dizer “impressionaram”? – hoje, na sessão dupla de Guerín no Harvard na Gulbenkian. E talvez seja bom começarmos por aí, ainda que as regras para uma boa comunicação ditem que se deva desenhar perfis e despejar informação biográfica antes de descermos aos objectos. Eu sou interpelado pelos objectos e a eles respondo tal como o conhecimento Wikipédia deve, a meu ver, ficar-se pelo Wikipédia. Posto isto, não consigo tirar da cabeça um plano e uma revelação. Qual plano? O plano – ou devia também usar aqui outra palavra: foto? – de Unas fotos en la ciudad de Sylvia (2007) em que vemos umas pessoas numa paragem de autocarro. Rostos “em espera”, se assim se pode dizer. De entre estes rostos, que aguardam pelo autocarro, a máquina que lhes movimenta os corpos pela cidade como um cinema sobre rodas, há um que “desnaturaliza” a cena. Um belíssimo rosto de mulher, de olhar langoroso, destaca-se.
Esse rosto aparece à altura dos outros rostos, confunde-se com eles até certo ponto, mas depois dele – desse ponto que distingue o natural “impressionado” do natural impressionante, mas definitivamente não extraordinário – percebemos que esse rosto é, na realidade, a representação de um rosto. A mulher é – ou está – num outdoor que publicita um produto Yves Saint Laurent. Não sei se se percebe isso imediatamente, isto é, logo no primeiro frame que Guerín nos mostra. Mas eu só o vi ou só o percebi passados alguns minutos, até porque procurava uma espécie de ângulo de leitura, mais confortável, para abordar esta imagem. Descobri-o eu na constatação de que aquela mulher era, afinal, uma personagem de um outdoor – e que as pessoas, estando outdoor, não eram representações de qualquer coisa, mas elas mesmas, sem pose, dentro da sua rotina diária. Depois, o ângulo de leitura torna-se ainda mais confortável, mas só aparentemente. Encontro no cartaz um nome, aquele que baptiza o produto cosmético em questão da marca referida: nada mais que “Cinéma”.
É um objet trouvé muitíssimo relevante num filme todo ele “parado”, construído elipticamente frame a frame, como uma colecção de fotos encontradas, acidentais, tiradas por um flâneur apaixonado por cidades, mulheres e memórias de cidades e de mulheres. Ora, este “filme de fotos”, como tu bem disseste na conversa que tivemos após a sessão, tem sede de movimento. Pode ser o movimento de uma bicicleta [lembrei-me destas bicicletas depois em Tren de sombras (O Comboio de Sombras, 1997) e como o som da bicicleta aí se confunde com o som da bobine a girar na máquina de projecção], pode ser o movimento de uma mão, de umas ancas femininas, de um rosto que se ilumina, para depois se apagar. Encontrei em Tren de sombras o evento inverso: o movimento dirige-se para a imobilidade, em busca, senão de “a”, de “uma” verdade escondida. A tese de Guerín é muito sedutora: na relação entre uma imagem e outra podemos desvelar uma infinitude de filmes. Pelo arresto da imagem, Guerín potencia essa capacidade reprodutora do cinema, da imaginação. A legenda certa seria talvez “Photo”, mas aqui não há patrocínio de Yves Saint Laurent. Ao mesmo tempo, aí Guerín não filma outdoors, ainda que, e muito bem, espante sempre a vida em exteriores [também será assim em filmes como En construcción (2001) e Guest (2010)].
Falei-te de um plano, mas também de uma revelação. É com ela que quero fechar este primeiro email. Para mim, que descobri Tren de sombras com 11 ou 12 anos, e que tanto me assombrou o imaginário desde aí, digo, para mim, foi um choque descobrir na conversa Q&A com o realizador que o found footage que é a matéria-prima do filme foi uma invenção, uma criação pura do seu realizador baseada numa investigação que fez sobre filmes caseiros, amadores. Para Guerín, o cinema é, como o disse, uma “grande ilusão”. Pois eu não me lembro de ter sido iludido desta forma por um filme – e durante tanto tempo, quase vinte anos! Guerín autentica de tal forma as imagens, nomeadamente “ficcionando” uma reconstituição dentro do próprio filme, que eu sempre fiz fé naquilo que ele nos revelava, naquelas “imagens inocentes” das férias de Verão de uma família rica francesa. A revelação foi, então, um choque, mas um choque que explica algumas coisas. Uma delas o facto do filme ter sido premiado no Fantasporto. É que a ilusão criada, o mistério que vai revolvento todos estes fantasmas conjurados pela vida e a natureza, assombrou-me e inquietou-me o espírito um pouco como aconteceu, apenas dois anos após Tren de sombras, com um filme também ele feito de found footages “inventados”, e também ele – talvez ainda mais hoje que em 1999 – na fronteira com um certo cinema avant-garde estrutural, materialista: The Blair Witch Project (1999). O célebre filme americano está e é bruto e dele não se extrairá uma ideia muito profunda acerca da nossa relação com as imagens do cinema. Pelo contrário, Guerín realiza um dos filmes mais belos sobre a invenção dos Lumière.
Bem, a primeira “carta” já vai longa. Deixo-te com a citação de Máximo Gorki, descrevendo uma sessão de L’arrivée d’un train à La Ciotat (A Chegada de um Comboio, 1896), excerto de onde Guerín retirou o nome – e a inspiração, seguramente – para esta sua grandiosa ilusão cinematográfica dedicada ao nosso querido “Cinéma”. Vou-to citar de um livro precisamente editado em Espanha, com escritos sobre cinema assinados por grandes escritores e pensadores do século XIX e XX, que em castelhano tem o título Los Escritores frente al Cine. Portanto, não é improvável que o próprio Guerín tenha lido Gorki exactamente assim: “(…) Repentinamente se escucha un chasquido, todo se desvanece y aparece un tren en la pantalla. Se lanza directamente hacia ti, ¡cuidado! Da la impresión de que va a precipitarse en la obscuridad sobre el espectador, convirtiéndolo en un montón de carne lacerada y huesos astillados y reduciendo a polvo y fragmentos rotos esta sala y edificio entero, lleno como está de mujeres, vino, música y vicio. / Pero también éste es un tren de las sombras.”
Abraço,
Luís Mendonça
10 de Janeiro de 2015
Olá Luís,
Desculpa ter demorado tanto tempo a responder, mas as últimas semanas têm sido das mais agitadas que já vivi (e talvez também por isso daquelas que mais prazer me tem dado viver). Com este tempo todo que passou a memória dos filmes do Guerín e da nossa conversa depois deles já vai esmorecendo, mas ainda assim há alguns momentos que ainda brilham luminosos contra a vontade de os esquecer. Como me ofereceste um plano, eu um plano te ofereço, um plano de Tren de sombras, um plano maravilhoso por aquilo que simboliza na ideia do trabalho com o found footage.
Esse plano não foi para mim uma evidência quando o filme correu na sala escura (aliás, poucas coisas são uma evidência em Tren de sombras, tudo nele parece ser composto de segundas e terceiras leituras, tudo pensado exaustivamente – fico com a sensação de que estou a ver um filme que é no fundo um tratado por imagens sobre o que é e como lidar com as imagens do passado, no sentido de as actualizar no seu aqui e agora benjaminiano sem nunca o desprezar). Mas deixando-me de parêntesis continuo para o tal plano. Como dizia, esse plano não me foi evidente e foi só na conversa que sucedeu a sessão que Guerín me chamou (e a toda a audiência) a atenção. Reza assim: na casa do paterfamilias-realizador-amador Guerín filma os pertences, filma as sombras dos carros que passam (pré-cinema ou já proto-cinema?), filma a “original” câmara de filmar; filma um mausoléu de memórias que, curiosamente, é a memória falecida do filme em deterioração que anima (isto é, são as reminiscências do passado naquilo que nele há de mais fetichista e de culto ritual dos mortos que paradoxalmente dão vida ao presente daquele casa onde parece que já só os mortos habitam); filma as cortinas, as janelas onde se brincou, os alpendres onde se almoçou em família, os quartos onde se dormiu; enfim, filma toda uma casa na ausência dos que lá viveram (através da testemunha que é o cinema que fixou em película essa mesma vivência).
Ora, entre essa série de planos que compõe o segundo acto do filme (num conjunto de quatro, 1.º found footage, 2.º found home, 3.º found film e 4.º found story) há um que se destaca: a luz entra por uma fresta de uma janela e um feixe dela incide no pêndulo de um relógio de parede que oscila para trás e para diante, esse pêndulo dourado reflecte esse mesmo feixe de luz que se projecta numa fotografia de família que repousa no beiral da lareira, projectando-se exactamente sobre a figura do realizador familiar, exactamente sobre o seu coração. Com o oscilar do pêndulo o feixe de luz aumenta e diminui no peito do director inexperiente, como que simulando o seu bater de coração. Guerín dá-nos planos deste ricochete luminoso e termina nessa fotografia de família e cortando axialmente dá-nos já só o protagonista da cena, envolto no grão da fotografia, com o seu coração batente de luz. O que ele faz nessa sequência é uma espécie de resumo simbólico daquilo que é o filme: ele dá vida a um realizador anónimo através do jogo entre duas variáveis fundamentais (e eu diria inversamente proporcionais), a luz e o tempo. Ele dá vida simbolicamente através do tal bater de coração, bater o qual se faz do oscilar do pêndulo do relógio (o tempo) e da luz do sol (luz que inevitavelmente gera sombras – “o jogo de sombras é a sinédoque do cinema” disse o realizador catalão). Ou seja, o cinema (leia-se luz e tempo) recuperam do esquecimento o realizador de jardim da inevitável injectividade da história e do arquivo, dá-lhe vida, fá-lo ressurgir dos mortos.
Esta é, a meu ver, a intenção de Tren de sombras e que apesar de ficcional me parece ser a intenção acertada no trabalho com o material de arquivo (em particular com o found footage), uma apropriação das imagens dos outros no sentido de reconhecer esses outros e de trabalhar com vista à sua recuperação do esquecimento (e da degradação). Creio que só assim, através dessa consciência da autoria das imagens e do desejo de a tornar evidente se consegue evitar o referido culto ritual do mortos, o tal fascínio fetichista pela película em degradação (e a degradação daqueles que ela desejou guardar consigo). E se esse momento marca pelo poder simbólico, tudo o resto trabalha no mesmo sentido: o actor que dá imagem e corpo ao realizador sempre ausente, a procura do autor das imagens nos reflexos das janelas, o desejo de descobrir a sua história, o seu affair com a empregada, da sua vida em família…
Se tudo isto me fascina e entusiasma, também é verdade que desconfio do facto de tudo em Tren de sombras ser ficção. Talvez exactamente por ser ficção aceite certos desvarios poético-líricos com o found footage (porque na verdade não o é e os pruridos morais a ter com as imagens precedentes não se põe) mas por outro lado, o facto de essas imagens serem construídas causa-me irritação. Isto é, passa-se algo semelhante àquilo que em Bill Morrison me faz dar voltas na cama (e os mortos na tumba) quando ele acelera o processo de deterioração da película de modo a conseguir efeitos ainda mais cativantes – porque o que aí se esconde é uma estetização do podre, a decomposição e a morte como manifestações do belo. Quando Guerín filma com intenção de degradar e destruir, está a capitalizar um processo terrível que a cada momento obriga ao esquecimento milhares de metros de película que nunca mais poderão ser vistos, metros de trabalho, dedicação, arte, metros que poderiam ser revolucionários, que podiam alterar a forma como olhamos o cinema. Construir um filme sobre o poder fascinante e atraente das imagens que decaem é esquecer que esse decaimento é sempre (!) uma tragédia.
A este respeito há uma citação do Benjamin que me parece que se aplica a Tren de sombras de forma tão impecável que talvez tenha sido a partir dela (ou com ela em mente) que Guerín terá pensado o quarto acto do filme. “No culto da recordação dos entes queridos, ausentes ou mortos, o valor de culto da imagem tem o seu último refúgio. Na expressão efémera de um rosto humano acena, pela última vez, a aura das primeiras fotografias. É isto que faz a sua melancolia e beleza inigualáveis”. Guerín falou disto na pós-projecção quando referiu algo como o desejo de “dramatizar a decomposição do rosto humano” numa das sequências finais do filme onde um rosto de mulher se vê rasurado, mastigado, fragmentado por efeitos de decomposição construídos em pós-produção. Ele sabe como impregnar o sua falsa footage encontrada com o espírito do cinema original, só que para isso tem que encenar essa decomposição do rosto humano no sentido de agarrar a tal aura das imagens primordiais. O que me incomoda é pois esse subproduto da sua ficção.
E com tudo isto não falei nem das fotos, nem da cidade, nem da Sílvia, nem das outras Sílvias, nem das outras cidades. Mas como já me alonguei deixo-te um link (uma hiperligação em lusitanês) para um bonito texto do Miguel Marias sobre Unas Fotos onde ele aproxima o exercício ou rascunho (ou work in progress) de Guerín ao cinema primitivo (aliás, pioneiro) de Étienne-Jules Marey e Eadweard Muybridge. Mas sobre estas citações implícitas (ou melhor, citações sem referencialidade) talvez queiras ser tu a discorrer.
Um abraço.
Ricardo Vieira Lisboa
4 de Fevereiro de 2015
Caro Ricardo,
Eu vou ser mais expedito na resposta, porque “the show must go on”.
Eu aproveito a tua deixa sobre “as referências” para falar um pouco do que me tem passado pelo espírito nos últimos dias a propósito do cinema de Guerín – mas também queria deixar umas notas sobre o outro homenageado, Vítor Gonçalves, ainda que já sobre ele tenha escrito no meu (outro) texto Harvard na Gulbenkian.
A ligação ao cinema primitivo, de que falas – e o Marías também fala -, é óbvia. Os found footages do advogado Gérard Fleury parecem recortar as “vistas” cómicas dos Lumière e transpô-las para o universo caseiro – seria mais do que expectável que os cineastas amadores, do home cinema, reproduzissem os gags eternos do cinema. Também li Carlos Losilla comparar as imagens de Fleury/Guerín à ambiência de Partie de campagne (Passeio ao Campo, 1936). Sabemos de um documentário realizado por Éric Rohmer nos anos 60, sobre o qual o David Pinho Barros escreveu para nós aqui, que Renoir foi, com Langlois, um dos mais importantes recuperadores do cinema dos Lumière. Ele dizia: “o que é interessante é que a tendência Lumière, ainda que motivada pelo desejo de reproduzir a realidade, deixa a porta aberta para a imaginação mais deliberada. Creio que há mais fantasia em algumas imagens [dos Lumière] (…) do que em certas pinturas que pretendem ser obras de fantasia”. Esta fantasia inscrita na pele das imagens dos Lumière digamos que enleva as imagens, supostamente privadas, supostamente “sem imaginação”, do advogado de Tren de sombras.
Se este é o filme-Lumière/Renoir de Guerín, por exemplo, Innisfree (1990) é o seu filme-John Ford (o Ford irlandês, claro) e En construcción é o seu filme-Hawks [o de Land of the Pharaohs (A Terra dos Faraós, 1955), claro]. En la ciudad de Sylvia (2007) será o seu filme-Bresson, por via dessa atenção aos gestos, e aos rostos, tão minuciosamente trabalhada naquele seu, apropriadamente apelidado, “cinematógrafo”. Nesse filme, aliás, e escrevo o que segue porque não o pude dar conta no meu email anterior, os outdoors voltam a intervir na acção. O gesto de uma modelo num anúncio afixado na paragem do eléctrico é mimado por Sylvia depois do “desencontro” com o seu perseguidor, o protagonista do filme de quem nós, espectadores, nunca saberemos o suficiente para querermos entrar completamente nele ou nos entregarmos completamente a ele. Ela põe o dedo sobre os lábios como quem diz: pára de falar. É um gesto muito significativo, já que En la ciudad de Sylvia é um filme também ele quase mudo, mudo, pelo menos, de palavras. Quem fala, aqui, são os gestos – os do desenho, mas sobretudo os “do olhar” e aqui Guerín encontrou um movimento do olhar, o que é notável – e, acima de tudo, o andar, circular, flâneur, do seu par de personagens. Também aqui há um encantamento por um cinema reduzido, um cinema expurgado de tudo o que nos distrai das presenças do espaço e dos corpos. É também, como já vimos ou descobrimos que Guerín é, um filme “engatatão”, charlatão – mas o cinema é a fraude mais bela do mundo, dizia Godard! – e cínico, nomeadamente quando insinua a perversão do nosso herói naquela imagem em que este troca olhares com uma bartender enquanto lê o jornal. Uma das notícias do dia dá conta – se bem me lembro – de “mais uma mulher” encontrada morta. Não sabemos se ele é o último dos românticos baudelairianos ou um “boston strangler” em Estrasburgo. Quem é ele? Um anjo sedutor ou o diabo, provavelmente? Ou será a personificação de Eros, caçador temível que se casara com Psiqué na condição de que esta não lhe podia ver o belo rosto? Com efeito, não é o nosso protagonista um esbelto perseguidor e um caçador de rostos (Guerín, que na senda de Baudelaire apetece apelidar de “Sr. G”, alerta para não verem o jovem protagonista como uma projecção de si mesmo, já que não teria a vaidade de escolher um actor tão “guapo” para fazer de si mesmo)? Guerín diverte-se com estas interrogações, com essa potência do engodo que tanto possui e tão habilmente manobra.
Relacionando com Vítor Gonçalves, é interessante pensar como as imagens “encontradas” de António em A Vida Invisível (2013) funcionam como um fluxo relativamente indiscernível de signos, uma assombração de António, algo que transcende a sua existência de facto. Não tinha pensado nisso, mas acho que tu tocaste na ferida: o António do filme, interpretado por João Perry, é António Reis. É, no fundo, a projecção fantasmática (virtual) do pai espiritual, o mestre maior de Vítor Gonçalves. Essas imagens “encontradas” são parte de uma construção mental. Elas assinalam qualquer coisa de impenetrável, de imperscrutável. Parecem dar conta de uma viagem por sítios remotos. Mas acho que quem viaja nelas, quem se perde – e não se encontra – nelas não é o seu suposto autor – António – mas o seu “perseguidor” espiritual. Falo do protagonista interpretado por Filipe Duarte. Há este sonho-cinema, este trauma-cinema que se faz partilhar entre os filmes de Guerín e Vítor Gonçalves – no caso do português até diria que há uma predominância, já de si psicanalítica, da linguagem do film noir, isto tanto em Uma Rapariga no Verão (1986) como em A Vida invisível. António Reis não entra facilmente aqui, ou melhor, Vítor Gonçalves não entra (não consegue entrar) em António Reis. O seu cinema é outro, mas o seu mestre é o de sempre. Matar o pai é, enfim, um dos temas fortes de A Vida Invisível – talvez seja esta a grande história em off que Vítor Gonçalves (não) nos conta. Ao mesmo tempo, “a morte do pai” era o principal tema de Uma Rapariga no Verão.
Espero não ter descido a psicanálises de vão de escada, mas penso que é precisamente pela imagem, como membrana, frágil e transparente, de acesso ao subconsciente, que Guerín e Vítor Gonçalves se tocarão. Tive uma vez oportunidade de perguntar a Haden Guest qual o critério de escolha destes cinemas e cineastas postos em diálogo. Perguntei – uma pergunta que revela também, psicanaliticamente, muito da minha proveniência “académica” – o que motiva a reunião de cinemas e cineastas tão diferentes. A resposta de Haden pôs-me a pensar: “a sua diferença”. O que os liga é a sua diferença, isto é, o que os liga é o que os separa. E no que os separa abre-se uma fenda que, propõe assim cada programa, é preenchida por um diálogo. Há um senão, contudo, nesta estratégia “curadorial”: o risco dessa fenda acabar “por preencher”. Em ciência, costuma dizer-se que só se devem comparar coisas semelhantes. Pôr em comparação ou justaposição coisas dissemelhantes, nalguns casos contrárias, pode redundar num discurso arrancado a ferros que deforma mais do que informa. Até porque promover encontros pela diferença para falar de semelhanças é, à partida, algo de não só arriscado e potenciador de desconforto – um desconforto tão físico quanto intelectual – como, no limite, contra-producente de um ponto de vista crítico e até estético.
O que se passou com Harvard na Gulbenkian é que, quando as diferenças foram assumidas – por exemplo, isso aconteceu com Nathaniel Dorsky, mas não aconteceu com Robert Beavers -, o debate ganhou outro “fogo” – não é “fôlego”, é mesmo de “fogo” que falo. Lamento talvez que nem sempre os moderadores se tenham apercebido de que a assunção do seu próprio critério – a tal diferença, a tal ferida aberta que pode não sarar – resultaria num debate mais frutuoso: se estão ali porque são diferentes, que falem sobre e, se for caso disso, se batam por essas diferenças! Mas, claro, nem sempre as diferenças eram tão diferentes e no caso de Guerín e Vítor Gonçalves “o fosso” era menos largo do que seria de esperar. Talvez seja essa, bem vista, a grande “moral da história” destes programas de Harvard. Tudo faz parte de uma grande família chamada cinema. Mas existe mesmo – ou faz sentido existir – uma família com/sob esse nome?
Abraço,
Luís Mendonça
4 de Fevereiro de 2015
Olá Luís,
Antes de mais, desde quando é que eu sou caro, hum? Sempre fui muito em conta, basta um par de lagostas e estou comprado, todos sabem.
Posto isto, passo à resposta. A certa altura da tua última carta falas de uma coisa, citando Renoir, de que gostei muito de ler: a “fantasia inscrita na pele das imagens dos Lumière”. Essa fantasia que no fundo corresponde ao universo mágico que até as coisas mais mundanas têm quando uma câmara as capta (ou talvez a conjugação do verbo tenha que ser outra, “captava”, já que hoje as câmaras perderam irremediavelmente – ? – esse poder de tornar o real irreal). Assim todos sabemos da primeira comédia do cinema que se faz de uma encenação mínima em plano fixo à volta de uma mangueira, piada repetida infinitamente e que infinitamente preserva o seu poder risomântico (que não estando no dicionário é a combinação entre riso e o romântico, ou seja, o poder de nos fazer apaixonar pelo riso).
O que pergunto no entanto é saber se, não tivessem os Lumière filmado o gag da mangueira, teria ele hoje (a mesma) graça? Isto é, se a fantasia das imagens dos Lumière é de algum modo um atributo dos próprios ou por outro lado uma característica da sua natureza primitiva na arte do cinema. Pondo por outras palavras e desviando-me um pouco, se o cinema, nos seus inícios, não tivesse filmado esse gag (e tantos outros) teria ele permanecido gaguético (= convulsivo) ou o poder do gag é um que precede a ideia de quadro e de tempo cinematográfico? Generalizando, o poder fantástico das imagens reais dos irmãos fundadores é então um que se funda na própria matéria do seu suporte fixante ou é um que está presente no próprio real? Não sei bem responder a esta questão, mas parece-me que responder-lhe é também responder a uma outra, mais simples que talvez resulte como corolário dela, a saber: o que é mais fantástico, uma natureza morta de Rembrandt ou uma paisagem idílica de Bosch? Creio que talvez uma figura que se funda num quadro de referências alcançável por todos tenha um maior poder fantasista do que uma que por ser de natureza fantástica resulta dos recantos escuros da mente do artista (e como tal perde a capacidade de gerar no seu público narrações em resultado de gerar nele fascínio silencioso). Assim, no velho confronto entre Lumière e Méliès parece-me que quem vence no reino da fantasia seja, paradoxalmente, o duo – por trabalharem sobre a potência fantástica do real.
Mas não era bem sobre isto que estávamos a conversar, era sobre a penúltima edição do Harvard na Gulbenkian. A questão é que me retiraste (literalmente) as palavras da boca ou ligares Gonçalves e Guerín pelo poder fantasmático das imagens precedentes (quer dos Lumière quer de António Reis). Fora essa ligação na verdade não consigo encontrar outra forma de preencher a tal fenda que os separa. Mas já que me retiraste os vocábulos da língua, roubo-te as palavras aos dedos citando-te numa Sopa de Planos daqui da nossa ementa caseira. O sabor do caldo era as escadarias e sobre A Vida Invisível referias-te assim à marcante escada de caracol que lá se encontra da seguinte forma “esta é uma imagem do espaço, mas não de um espaço exterior. Lembra, nesse sentido, as fotografias de Eugène Atget, em que, muitas vezes, era o ângulo da fotografia que fazia saltar a imagem banal de, por exemplo, precisamente umas escadas – e foram muitas as que fotografou – para um estado interior surrealizado”. Aqui talvez se encontre um novo ingrediente que ajude a cimentar a tal brecha que separa os dois cineastas. Exactamente aquilo que Guerín mimetizou dos Lumière, o poder fantástico do real, ou como tu o pões, a capacidade de fazer “saltar a imagem banal para um estado interior surrealizado” – leia-se fantástico – encontra-se presente nos dois realizadores como matéria própria de um cinema que se faz de um fantástico latente.
Mas sobre esse cinema fantástico feito de nadas já tu falaste na primeira carta quando convocaste a bruxa de Blair (um found footage onde o o real é apenas insidioso e nada mais que isso – nunca fantástico!) e pouco custaria aproximar a fantasia caseira dos cineastas ibéricos do serial de Paranormal Activity – onde a fantasia já ganha corpo mas apenas porque parte de um substrato familiar, de um home movie como o de Gérard Fleury. E é engraçada uma expressão que Vitor Gonçalves usou para explicar a sua relação com o espaço (e do espaço com os seus personagens) seja “horror ao naturalismo”. No entanto parece-me que o que caracteriza o seu último filme é um “naturalismo de horror”. Por isto mesmo as comparações (e citações) de Uma Rapariga no Verão ao série B americano com resíduos africanos de Jacques Tourneur não estejam assim tão distantes das comparações (e citações) que tu, meu caro Luís, fazes ao cinema noir com este A Vida Invisível. Já que em ambos os casos essa filiação cinéfila está directamente relacionada com esse “naturalismo de horror”, com a “potência fantástica do real”, com as “banais imagens que saltam” – algo que tanto Tren de sombras como En la ciudad de Sylvia também prolongam como já foi mais que explicado. Mas talvez já me esteja a repetir.
Chega portanto a hora das considerações finais: momento complicado e caprichoso. É que se aquilo que cada um diz sobre o cinema pouco importa (mesmo que sejam coisas escabrosas, estúpidas ou incoerentes), aquilo que se diz sobre a organização daqueles que o seleccionam, organizam, apresentam e exibem é já crime de lesa pátria, gesto ofensivo e razão de persecução. Isto é, o cinema é coisa inofensiva, quem se importa que eu afirme a minha desconfiança moral por aquilo que faz Guérin ao ensaiar a degradação da película, ou fetichizar a perda definitiva de milhares de metros de cinema? Ninguém quer saber! Agora se eu disser que Guerín tem peúgas cor de salmão, gosta de comer pregos no pão ao lanche e os seus filmes reflectem um marialvismo incapacitante (para não dizer misoginia debilitante – veja-se as “outras mulheres” de Unas fotos) aí já cai o Carmo e a Trindade.
O que me vou percebendo com os anos em que escrevo sobre cinema é que posso dizer as baboseiras que quiser sobre os filmes (e se forem blockbusters americanos melhor ainda, que esses ninguém quer saber), no entanto ai de mim se fizer comentário malandrecos e/ou provocatórios sobre uma pessoa ou organização fundados naquilo que é necessariamente o seu trabalho (os seus filmes, os seus ciclos,…), isso já é passar uma linha – a linha invisível que separa aquilo que é para mim inócuo e para o outro danoso (no sentido em que causa dano e no sentido que o deixa danado). Por tudo isto me penitencio todas as manhãs com um flagelo bem bicudo. E todas as tardes me mortifico com um cilício bem aguçado. E à noite choro os meus pecados ao Cinema (sim com letra maiúscula, o respeitinho é muito bonito) e a tudo aquilo que o fiz sofrer. Sinto muito. E esta é no fundo a minha consideração final, a de que infelizmente o cinema é, para a generalidade daqueles que com ele trabalham, inofensivo.
Abraço,
Ricardo Vieira Lisboa
11 de Fevereiro de 2015
Olá “caro Ricardo”,
Isso faz-me lembrar uma frase de Jonas Mekas, cineasta com quem Guerín se corresponde(u): “os filmes são inocentes, as pessoas não”. Posto de outra maneira, os filmes não devem ser inofensivos, mas são inocentes ou, pelo menos, mais inocentes que as pessoas, que não o são “até prova em contrário” – a inversão do ónus da prova é perfeitamente legítima quando no domínio da vida bem visível.
Over and out.
Abraço,
Luís Mendonça
11 de Fevereiro de 2015