Por entre a sucessão de cliffhanger que é Jupiter Ascending (A Ascenção de Júpiter, 2015) de Andy Wachowski e Lana Wachowski – e é pena que a língua portuguesa ainda não tenha encontrada palavra justa para passar esta ideia de um momento onde toda a acção e atenção parece confluir num só gesto salvífico – existe uma ideia (ou melhor, um tema), que se vem tornando evidente pela obsessão dos irmãos Wachowski em abordá-la e explorá-la, que passa necessariamente pela dicotomia entre a propensão fisiológica e a força da vontade de cada um. Deste modo, de filme para filme, os manos vêm-se afirmando como os (únicos?) cineastas da identidade, qualquer que ela seja.
Diz o dicionário que identidade é a “circunstância de um indivíduo ser aquele que diz ser ou aquele que outrem presume que ele seja”, por tanto há aqui duas possibilidades, por um lado, a identidade auto-imposta – aquela que cada um constrói para si – e, por outro lado, a identidade imposta por outros. Nem sempre as duas (ou mais… Uno, nessuno e centomila) concordam: ou porque a identidade que cada qual se propõe adoptar não é necessariamente aquele que devia mas sim aquela que opta por facilidade de escolha ou, opostamente, a identidade que lhe atribuem é resultado de uma compreensão errada do natureza do indivíduo. Independentemente dessa concordância o certo é que a imagem que construímos corresponde à convulsão destas identidades (auto e exo impostas).
Posto isto, e como dizia, os Wachowski vêm, de filme para filme, por vezes mais evidentemente (outras vezes nem tanto assim), desenvolvendo a temática da identidade no seio daquilo que é a grande indústria de Hollywood através desse produto de consumo massificado que é o blockbuster. E exactamente porque trabalham no cinema popular (vulgo mainstream) onde as obrigações logísticas são uma necessidade, os seus filmes parecem quase sempre seguir uma lista de compras onde se têm que incluir uma serie de requisitos mínimos sobre as quais há pouca possibilidade de desvio. Assim sendo aqui temos o argumento organizado em sucessivos e cada vez mais extasiantes “quedas para o abismo” (cai ou não cai?, mata ou não mata?, ultrapassa a burocracia dos serviços administrativos centrais ou não ultrapassa a burocracia dos serviços administrativos centrais?, sobrevive no espaço ou não sobrevive no espaço?, casa ou não casa?, salva a humanidade ou não salva a humanidade?), protagonizado por dois dos jovens actores do momento – Channing Tatum e Mila Kunis -, recheado de efeitos especiais e claro a ferramenta da moda, o 3D. Mas como se escrevia há tempos a propósito da nova vaga crítica nomeada como Vulgar Authorism, um realizador popular é tanto melhor quanto mais água é capaz de levar ao seu moinho, dentro da indústria e apesar de todas a imposições dela, seguindo as suas obsessões, a sua intimidade e a sua intuição. Assim, não espanta que apesar de todos os certos da lista de compra dos homens da phinança os manos Wachowski tenham conseguido engendrar um objecto que apesar de profundamente contemporâneo está mais próximo de uma série B dos anos oitenta – como por exemplo Masters of the Universe (Masters do Universo, 1987) – do que todos os seus parceiros que enchem os multiplexs dos nossos centros comerciais, sendo também por isso um objecto que arrisca o ridículo (e por vezes acerta), escapando pelos pingos da chuva à gargalhada.
Mas retomando a minha linha de raciocínio, dizia que um autor vulgar é aquele que consegue manifestar-se nas suas obras (por oposição ao tarefeiro irreconhecível que apesar de certeiro – nem sempre – nunca ousa fazê-lo) e para estes realizadores essa manifestação é pois a questão identitária. Pois veja-se: Kunis sempre se achou uma emigrante ilegal de uma família russa que trabalha como mulher a dias nas casas dos ricaços de Chicago (a identidade auto-imposta) até que chega um Tatum com botas voadoras e lhe diz que ela é a rainha do espaço (a identidade atribuída por outrem), dona do meio universo – incluindo o planeta Terra como salão de chá. O paralelismo com “O Escolhido” de The Matrix (1999) é pois mais que evidente [mas também podíamos ir a V for Vendetta (V de Vingança, 2005) sem grande esforço]. No entanto o que em outros filmes passava por uma predestinação social aqui ganha contornos outros: como toda a história se funda na ideia de um composto que prolonga a vida dos que o tomam feito de ADN humano, é de genética que se fala a tempo inteiro, ou seja, a predestinação aqui é uma imposta pelos genes – Mila Kunis é a reencarnação genética da falecida rainha do espaço (e como tal é a principal herdeira da sua pre-existência). Ou seja, o indivíduo vê-se num debate interno, por um lado orienta-se pelo diapasão da sociedade onde cresceu, por outro é obrigado pela genética a seguir uma via que lhe é estranha (se esta última linha o faz pensar em sociedade hetero-normativa versus orientação sexual não dominante, é porque é exactamente esse o intuito dos manos).
Assim Kunis passa todo o tempo a estranhar e a desejar o termo “Vossa Majestade” e também por isso assume os direitos da sua herança mas grita “I’m not your mother” para a sua descendência genética (e onde já se viu no cinema popular uma mãe casar com o filho que a quer assassinar? ou desejar ser morta por outro filho para que este possa finalmente escapar do seu édipo? os contornos psicanalíticos de Jupiter Ascending são imensos e intrincados). Não é pois por acaso que toda a história começa no atravessar de uma janela onde Kunis, qual Alice de olhos grandes, descobre o outro lado (do espelho) para não mais conseguir de si formar uma imagem plana. Ao passar um braço este reflecte-se no vidro, temos pois o braço originário, o braço viajante e a imagem combinada dos dois reflectida no vidro (leia-se tela); como dizia Sarris o cinema é um espelho e uma janela, aqui isso é mais que evidente – é pela combinação do reflexo e da transparência que a imagem se cria (no cinema e na identidade. Assim, o verdadeiro cliffhanger do filme não é aquele composto por montagem paralela com naves espaciais em corrida contra o tempo, mas sim aquele que se faz numa personagem que tem que encontrar uma via identitária para si composta por aquilo que é a sua origem social e aquilo que é a sua propensão genética (e um cinema que faz o mesmo, entre a obrigação comercial e o desejo pelo simbólico).