Em Kuxa Kanema – o nascimento do cinema (2003) Margarida Cardoso foi a Moçambique descobrir como o projecto Kuxa Kanema de Samora Machel conseguiu (ou não) transmitir a ideia de uma nação através do cinema, num jornal semanal propagandístico que circulava semanalmente pelo país em 16mm tentando construir uma ideia de Moçambique pela ideologia e pelo terror da guerra que se iniciava com a África do Sul e a Rodésia. Aliás, após a revolução uma das primeiras medidas do novo governo foi exactamente a fundação do instituto do cinema moçambicano por Machel saber da importância desse meio na unificação do país. 11 anos depois Margarida Cardoso regressa a Moçambique [acompanhada de Beatriz Batarda também de regresso depois de A Costa dos Murmúrios (2004) – no reencontro das duas mulheres] de novo através do cinema, naquilo que ele melhor consegue produzir: os mitos. Yvone Kane (2014) é sobre isso mesmo, sobre uma procura pela origem do mito, ou melhor, pela figura que o mito esconde – a pessoa que foi, para lá da imagem que a película dela fixou.
A estratégia da realizadora é tradicional, uma jornalista com necessidade de abandonar o seu quotidiano por causa de um trauma (filmado com a maior da suavidades, é raro ver-se o horror de forma tão contemplativa) embarca numa investigação sobre a história “verdadeira” da morte de Yvone Kane, uma activista da independência moçambicana que terá sido assassinada em estranhas circunstâncias. Mas se o facto de se tratar de uma mulher activista não é de somenos, o que realmente interessa a Margarida Cardoso parece ser a forma como a história é reescrita ao sabor da vontade dos vitoriosos. E de como todos os outros ficam perdidos nos confins do arquivo, no meio da papelada, apenas existentes como vagas figuras intocáveis – arquétipos de si mesmos. É sobre a passagem da memória ao slogan e de como se pode (e deve) percorrer o caminho inverso que Margarida Cardoso, através de Batarda, se detém. Esse percurso é feito, nem de propósito, através dos arquivos do referido e agora desaparecido instituto moçambicano de cinema (destruído num incêndio), arquivo esse que Batarda investiga frame a frame na moviola (qual polícia de investigação criminal ou académico dos estudos fílmicos) ou na sala de projecção lado a lado com os testemunhos dos que conheceram essa tal Kane (tão real como o botão de rosa do outro cidadão), que a acompanharam pela selva em projectos educativos, que com ela privaram ou que com ela tentaram combater a corrupção do tráfico de armas. E é nesses momentos em que a jornalista entrevista que o filme se sente mais próximo, mais vivo. Quando a câmara filma esses momentos de conversa entre Batarda e os vários homens e mulheres que a ajudam a formar o puzzle que foi Yvone Kane sentimos o desejo documentarista, a vontade de ouvir, de registar. Esses momentos são raros, Margarida Cardoso opta quase sempre por outros caminhos, por outros enquadramentos que nos colocam numa posição sempre intermédia entre os personagens – uma estratégia de distanciação que funciona aqui não só como respeito pelo luto (feito ou previsto) dos personagens, mas também como posição simbólica da distância entre Portugal e Moçambique e entre o registo da câmara e o real.
Margarida Cardoso filma assim sempre (ou quase) no entre. No encontro entre dois personagens a câmara filma muitas vezes o reflexo de uma (num espelho, num vidro, numa membrana dorskyana) e a sombra da outra, isto é filma aquilo que separa as personagens, mas que paradoxalmente as junta no ecrã. É esse o devir da câmara em Yvone Kane, aquele que filma a distância num só enquadramento, que encontra o afastamento na união, que no fundo percebe o cinema como o espaço de congregação dos múltiplos “reais” e os faz confluir. Assim a câmara filma Gonçalo Waddington e Batarda no encontro de uma janela (cada um na sua mágoa, mas os dois juntos mesmo assim) num dos primeiros planos, estratégia que seguirá consistentemente ao longo de todo o filme.
Mas se essa é a estratégia com a personagem de Batarda e tudo e todos os que a rodeiam, a personagem de Irene Ravache funciona em sentido oposto, o país que é o seu já não a quer, as pessoas que sempre amou naquele mundo afastam-na e abandonam-na. E por isso mesmo a câmara nunca a filma em encantadoras sobreposições luminosas, pelo contrário, com ele estamos no território do campo/contra-campo. A esse propósito há uma sequência que exemplifica exactamente esta ideia: Jaime é o filho adoptivo de Ravache que a repudia e lhe desaparece, os dois encontram-se através das ruínas de um edifício onde se inscreveu um rosto de Yvone Kane e outro de Che Guevara, de um lado Jaime, do outro Ravache, tenta-se uma comunicação, mas já não é possível porque o que outrora foi o sonho de uma unificação agora são apenas as ruínas que afastam o passado idílico do presente frustrado. Assim Yvone Kane faz-se deste vai e vem entre a proximidade dos testemunhos, a impossibilidade de comunicação entre gerações, e a utopia de uma câmara que tenta (talvez não em vão) fundir estas distância num quadro só, num ecrã, numa película (num ficheiro…). Que ousa fixar a sobreposição de relatos, de olhares, de rostos, do académico e do narrativo, do artístico e do histórico.
Yvone Kane começa num cemitério e termina num enterro (literal e simbólico), no entremeio temos todo o processo do desenterrar (também literal e também simbólico) do que aconteceu à activista para lá da bonita história de mártir que dela se escreveu. Desenterrar para enterrar, ou melhor, partir para reconstruir, este é o trabalho do historiador, mas é também o papel do cineasta. Margarida Cardoso faz literal e simbolicamente (d)os dois.
O Espaço Nimas organiza duas sessões especiais de Yovone Kane, com a presença da sua realizadora: sábado, dia 28, na sessão das 19h00 e terça-feira, dia 3, na sessão das 21h30.
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