«Ouve lá: deixaste de escrever aqueles textos manhosos no blogue ou lá como é que aquilo se chama?»
Senhor Zé, proprietário do salão de jogos à Medrosa Nova onde costumo ir ver a bola, hoje, por volta das 15h00.
A fazer fé no que me contam, irá a breve trecho estrear entre nós um dos mais belos filmes que este ano poderemos ver em sala. O seu nome é Phoenix (2014), o seu autor o alemão Christian Petzold. Sobre essa obra, nada aqui diremos, excepto o seguinte: que ela confirma à saciedade aquilo que desde há muito julgávamos saber, ou seja, que Petzold é, de entre os cineastas europeus da sua geração, aquele que de forma mais inteligente – e discreta – tem sabido repensar os géneros (do film noir ao melodrama). Trata-se de um projecto de revisitação dos formatos do cinema clássico que, aliás, parece ser comum a muitos dos autores da Escola de Berlim (veja-se, por exemplo, como Thomas Arslan tentou reanimar o noir e o western em Im Schatten (2010) e Gold (Ouro, 2013), respectivamente), e que, pelo seu lado, Petzold já por diversas vezes assumiu de maneira clara: «tenho a sensação de estar a fazer filmes no cemitério do cinema de género, a partir dos despojos que dele ainda podem ser recolhidos», dizia-nos ele há uns anos.
Posto isto, que fique claro: a razão pela qual os filmes de Petzold são mais do que simples revisitações (isto é, exercícios de estilo) reside na sua capacidade de submeterem os géneros que trabalham a um processo de decantação formal, que os reduz à sua essência elementar («filho, tem lá cuidado com as ‘decantações’, que ainda acabas a apresentar programas de cultura no Canal 2»). Sinais deste processo? A aposta em argumentos rarefeitos; a minimização dos movimentos de câmara (que só se desloca para seguir os passos dos actores); o primado dado aos planos longos; a quase absoluta ausência de música não-diegética e, sobretudo, o tom clínico da narração. São sinais que denunciam menos um desejo de ascetismo (como em Bresson ou Tarkovski) do que um desejo de minimalismo, ou melhor: de dizer não a tudo o que possa interpor-se decorativa ou explicativamente entre o espectador e as personagens, para deixar que elas falem por si (e, nesse sentido, este cinema faz, como a música dos Young Marble Giants, profissão de dessaturação).
Mas, para além deste aparato formal, os filmes de Petzold têm investido na possibilidade de transplantar a memória do cinema de género para a actualidade, apoiando-se nela para analisar – sempre em ponto pequeno – o espírito capitalista e neoliberal do seu tempo (e não é um mero acidente biográfico que Petzold tenha sido aluno e assistente de realização de um dos cineastas que nesse capítulo mais se destacou: o recentemente falecido Harun Farocki, com quem, de resto, co-escreveu muitos dos argumentos dos seus filmes). Prova do que acabámos de dizer é, sem dúvida, a magnífica «trilogia dos fantasmas» (composta por Die Innere Sicherheit, de 2000, por Gespenster, de 2005, e pelo muito subvalorizado Yella, de 2007), mas também a série de trabalhos que, no início da sua carreira, Petzold realizou para a televisão alemã.
De entre os que vi, aquele que melhor me parece condensar a essência da obra de Petzold é Wolfsburg, de 2003 (filme que marcou a segunda colaboração do cineasta com aquela que, entretanto, se tornou a sua actriz-fetiche: Nina Hoss, a rainha absoluta do under acting). O que temos, aqui? Um sequíssimo – mas, nada secante – neo-noir subcutâneo (tudo o que realmente interessa ocorre debaixo da pele das personagens), cuja primeira imagem nos enraizar num espaço: o dos arrabaldes da cidade industrial do título, cristalizados num plano geral onde um campo verdejante se deixa assombrar pelas chaminés de uma fábrica recortada em fundo. Enquanto isso, a solenidade de uma música quase inaudível e o rumor produzido por um par de corvos invisíveis (reencontrá-los-emos no início de Yella) tratam de agitar a imobilidade do plano, injectando no conjunto um prenúncio de tragédia. Para que ela aconteça, bastará apenas que a personagem interpretada por Benno Fürmann perca a sua concentração ao volante, atropelando uma criança e desertando do local sem lhe prestar assistência. A partir daqui, o filme alternará – em montagem paralela – entre a descrição do quotidiano de Fürmann (um vendedor de automóveis yuppie e manipulador, que vive com a namorada num apartamento nouveau riche) e a descrição do calvário da mãe do rapaz atropelado (Nina Hoss), que passa os dias estacionada no hospital onde o seu filho se encontra mergulhado num coma profundo.
Neste quadro, a primeira coisa notável é o modo como Petzold nos dá a sentir a vertiginosa oscilação dos estados de consciência do protagonista, que tão depressa cede à cobardia como ao remorso (veja-se a sequência em que ensaia a confissão que tenciona fazer e, poucos minutos depois, aquela em que descobre que o rapaz saiu do coma, abdicando acto contínuo do seu projecto). O sentimento de impunidade que a recuperação do rapaz oferece a Fürmann, esse, durará apenas até ao momento em que – regressando de umas férias em Cuba – ele toma conhecimento de que o miúdo acabou por morrer (numa sequência que é um portento de concisão, limitando-se a confrontar em silenciosos campos-contracampos o seu rosto com a imagem de uma cruz enterrada no local do acidente).
Ora, na impossibilidade de se desembaraçar dos seus remorsos, o protagonista começará a seguir erraticamente a mãe da criança pela cidade, como se nesse movimento quisesse transferir para ela o cuidado que não teve para com o seu filho. É uma vigília inútil, que só terminará na cena em que, depois de saltar de uma ponte (numa tentativa de suicídio falhada), Hoss é resgatada das águas por Fürmann. A água, diz-se, desde cedo foi interpretada pelo pensamento mitológico como o elemento purificador por excelência (e não é certamente por acaso que Petzold aqui a utiliza como pano de fundo), mas o crime de Fürmann, diz-se também, está para além de todas as purificações possíveis: «apenas isto até a Deus é negado / o poder de fazer com que o que foi feito seja desfeito», reza um velho poema grego que Aristóteles cita na sua Ética a Nicómaco. Assim, quando o filme começa a desenhar um esboço de relação entre Fürmann e Hoss, sabemos de ciência certa que ela se encontra condenada à partida, reunindo duas figuras assombradas por um mesmo fantasma, nomeadamente: um homem que procura fazer ressuscitar um filho através da mãe, e uma mulher que procura apagar a memória do filho através da companhia do homem que ignora ter sido o seu assassino.
Mas, mais do que a tragédia, aquilo que importa (digo eu) é a forma como Petzold cria uma espécie de «vazio trágico» em torno dos seus actores, diluindo – graças ao abrupto tempo de corte dos planos – os poucos acontecimentos salientes do filme na normalidade do quotidiano que retrata, para assim fazer emergir o fundo espacial contra o qual eles se projectam. Mais precisamente: o de uma cidade industrial, que, a julgar por aquilo que nos é dado a ver, é composta por blocos fragmentários de espaço (o stand, os apartamentos formatados, as estradas…) que nada religa entre si. Trata-se – para usarmos uma expressão de Pascal Augé – de um espaço qualquer (espace quelconque), ou seja: de uma amálgama de lugares desprovidos de história, que, longe de constituírem um território, apenas parecem existir, ou para suportar a realização de um conjunto de acções estritamente funcionais, ou para assegurar a transição das personagens entre nenhures e nenhures. Aqui, a intimidade tornou-se impossível, pelo simples facto de que a vocação móvel dos lugares (o stand para escoar mercadoria, as estradas para circular…) não permite que as personagens permaneçam neles por mais do que alguns segundos (e note-se como mesmo as casas são figuradas no filme como meros locais de passagem). Daí, sem dúvida, a sensação de constante desamparo que os corpos de Fürmann e de Hoss nos oferecem; daí, também, que a única sequência harmónica de Wolfsburg seja justamente aquela em que as personagens se evadem dos espaços do seu quotidiano funcional, procurando refúgio numa praia deserta (onde, não por coincidência, se aproximam fisicamente pela primeira vez).
É por estas (e por outras) que vos digo: vêem-se bem melhor os despojos do capitalismo a partir daqui, do que, por exemplo, a partir daquela pessegada que o Cronenberg fez com o menino dos vampiros. E agora, se me dão licença, vou ao salão de jogos do Senhor Zé ver o Sporting-Wolfsburg, na sincera esperança de que ganhe a mais petzoldiana das duas equipas em campo.
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