“Encontrar um amor para a morte” pode ser uma expressão bem mais interessante do que aquela muito popular de “encontrar um amor para a vida”. Heinrich von Kleist, poeta romântico, dramaturgo e romancista alemão do séc. XIX, levou este pensamento – mais consagrado à alma do que ao cérebro, como é natureza dos pensamentos poéticos – aos limites de uma postura social, fazendo dele o apanágio de um rogo invulgar: «Pedindo-as em suicídio como se faz um pedido de casamento, tinha longamente procurado entre as mulheres aquela com quem partilharia o fim.» É assim que Michel Schneider nos relata sucintamente o caso, no seu livro Mortes Imaginárias. Parece que foi também a imaginação que converteu, em Amour Fou (Amor Louco, 2014), uma demanda romântica numa demanda anedótica.
Não se esperaria que a austríaca Jessica Hausner [com apenas um dos seus três filmes anteriores estreado em Portugal: Lourdes (2009)] pegasse no famoso episódio da morte de Kleist, e dele fizesse um prosaico raconto visual biográfico sobre as circunstâncias, provada que está, pelo menos, a peculiaridade do seu modo rigorosamente simétrico de enquadrar um assunto desarrumado, ambíguo: neste caso, uma desordem invisível perante um perfeito arranjo espacial. E, de facto, não é isso que vai surpreender o espectador em Amour Fou (mesmo que não se conheça algum dos precedentes filmes da realizadora), antes se trata do tom comedidamente burlesco que se instala entre as personagens, provocando, ao invés de gargalhadas, tímidos risos dispersos ao longo de uma anedota bizarra, e ácida.
Já aqui se disse que Kleist votava à morte um apreço maior do que à vida, planeando para esse momento solene o consolo de uma companhia convicta. Ora, essa parceria, no mínimo, estranha, vai surgir com Henriette Vogel, uma pacífica senhora do lar, esposa e mãe, que se vê acometida de uma doença desconhecida, a qual, à luz da ignorante medicina da época, lhe deixaria pouco tempo de vida. Posto isto, impõe-se que se una para sempre a vontade e empenho lírico de um, com a inevitabilidade próxima da condição do outro – pode beijar a noiva.
Mas não é apenas deste acto consumado, deste encaixe melancólico de duas peças, que se faz Amour Fou (mantenho a permanente negação do “apenas” para que me acompanhem na descoberta) – como dois seres já mortos antes da morte, Kleist e Henriette vagueiam, à laia de fantasmas, entre a alta aristocracia prussiana, que discute pontualmente, em soirées e chás, o pagamento de novos impostos, o receio da difusão dos ideais da Revolução Francesa, as questões da igualdade… O contraste é deveras simples e evidente: o discurso da morte traz a oferta de uma liberdade transcendente face ao agrilhoamento do avanço da história política europeia, ou se quisermos, dessa “estranha instituição que é este mundo”, como dizia Kleist. E agora sim, não podemos deixar de referir aqui a plasticidade do cenário, a sua rigidez compósita, a luminosidade gelada das paredes, de dia (que à noite se torna camarária) – espelhando uma certa petrificação aristocrática –, e da evocação pictórica, que tem algo de Vermeer, sobretudo na imagem da mulher a escrever cartas ou a tocar piano, embora se incluam animais e ramos de flores, a tirar um pouco de seriedade ao modelo, e instalando o máximo artificialismo. Os lugares comuns que, nas tais soirées, se proferem em benefício do assentimento geral dos presentes, são, assim, tão bem arrumados como as gavetas da casa. A desordem nasce, invisível, do desejo de uma liberdade superior, bem agreste às preocupações de classe.
Amour Fou afigura-se um trabalho inteligente, equilibrado nos seus propósitos, convocando uma ligeireza excêntrica e árida para, acima de tudo, tratar o tema das escolhas humanas. E a escolha de Henriette já a sabemos desde o início, no que é dito pelo lied de Beethoven, que esta entoa repetidas vezes ao piano: “Onde as nuvens se estendem/Aí gostaria eu de estar! Aí gostaria eu de estar!”.
Não há qualquer emoção. Para não estragar o cenário.