Este isco branco tornava-se para mim a fronteira entre o real e o irreal, entre o conhecido e o desconhecido.
Antoine de Saint-Exupéry
O vento, o voo e, por inerência, as nuvens, são temas e imagens de praticamente toda a obra de Hayao Miyazaki: desde Tenkû no shiro Rapyuta (O Castelo no Céu, 1986), passando por Majo no takkyûbin (Kiki – A Aprendiz de Feiticeira, 1989), Kurenai no buta (Porco Rosso – O Porquinho Voador, 1992), Hauru no ugoku shiro (O Castelo Andante, 2004) – só para enumerar alguns dos mais intuitivos –, e outras várias curtas-metragens, até este último, que se anuncia como fecho éclair do insuflado blusão criativo do artista japonês. O “isco branco”, as nuvens, de que nos fala Antoine de Saint-Exupéry, no livro Terra dos Homens, em epígrafe neste texto, é então essa fronteira onde se movimenta todo o cinema de Miyazaki, entre o sonho e a realidade e, sim, também entre “o conhecido e o desconhecido”.
Kaze tachinu (As Asas do Vento, 2013), cujo título em inglês traduziu literalmente o verso de Paul Valéry que surge em prelúdio do filme, “Le vent se lève!” (The Wind Rises) – e que continua “Il faut tenter de vivre!” – é um trabalho, mais uma vez, admirável de Miyazaki, com esta diferença: a conversão do fantástico em onírico, libertando e dando sentido ao lirismo pré-anunciado em Valéry. Desta feita, se achamos que o cinema de animação de Miyazaki, ao retirar o convite às mais extravagantes e hiperbólicas criaturas, deixa de ser aquele lugar de imaginário seguro, múltiplo, e de um céu constantemente feito chão (ou de um chão pouco firme de realismo), rompem-se todas e quaisquer falsas suspeitas neste, provavelmente, último voo.
Concebido a partir da biografia do designer de aviação Jirô Horikoshi, inventor dos aviões caças usados pelo Japão na II Guerra Mundial, Kaze tachinu, ainda assim, não detém demasiado as cordenadas narrativas numa história de vida, pelo contrário, cruza-a com outra personagem inspirada num romance do escritor Tatsuo Hori (1904-1953), sobre uma rapariga tuberculosa. E será possível que aqui, além de uma personagem literária, como aquela que inspirou Three Comrades (Três Camaradas, 1938) – do livro homónimo de Erich Maria Remarque –, também tenhamos os traços melancólicos, e visualmente evocativos, do filme de Frank Borzage? Belisquem-me se não vi em Naoko Satomi, a fragilidade enferma de Margaret Sullavan em Three Comrades; ou aquele casamento terno e intimista; ou a doçura e ansiedade daquele corpo que necessita do toque da mão de Jirô, enquanto este trabalha a seu lado, como Sullavan necessitava que Robert Taylor lhe dissesse, de 20 em 20 segundos, “I thank God for you Pat”, qual fôlego de vida… Não me parece que seja possível uma confluência maior do que esta num filme de animação; fazer da cor, ora suave ora garrida (o sangue que cai sobre a tela, como tinta), memória de um preto e branco invernoso, mensageiro da fatalidade.
Quanta sensibilidade e poesia somou Miyazaki à firmeza e inteligência do seu traço. A mesma com que Jirô recortou um avião de papel para atirar à varanda de Naoko, e que viria depois a ser o modelo para um engenho real, um marco histórico da indústria de guerra. Movendo-se entre a dureza dos tempos e o arrebatamento do sonho, Jirô, a considerar ser o último dos “inesquecíveis” de Miyazaki, situar-se-á num crepúsculo de eternidade, aquele lugar de onde se vêem as «humildes felicidades acurraladas», como diz Saint-Exupéry da paisagem que se vê das nuvens. Mas não se pense que esta eternidade é a morte. Não. A felicidade de se estar vivo (“Il faut tenter de vivre!”), essa, merece um brinde, e Miyazaki não se esquece, também, a terminar, desse pormenor.