Em 2013 chegou-nos às salas um fime italiano que abordava as consequências nefastas de “berlusconização” da sociedade italiana, sobretudo através da modelação do imaginário dos jovens transalpinos, entretanto povoada de reality shows como lustrosas promessas de futuro recheadas de oportunidade. O filme que venceu o Grande Prémio do Júri em Cannes de 2012, chamava-se Reality (2012) de Matteo Garrone e já jogava absolutamente com a ideia de confetti para as massas, ou glamour televisivo, como um prolongamento quase surreal para a realidade do peixeiro napolitano Luciano que nos conduzia por esses meandros. Dois anos depois, Le meraviglie (O País das Maravilhas, 2014) de Alice Rohrwacher, também italiano, também vencedor do mesmo exacto galardão, volta ao tema, complexificando-o.
O tal imaginário desta vez começa a ser delineado mais atrás no tempo e pertence a Gelsomina, a irmã mais velha de quatro de uma família de apicultores que habita na zona da Úmbria. Tentando fugir ao sistema e com um pai exigente resistente à industralização, vivem o ritmo da ruralidade alheio ao bulício das grandes cidades. Um dia, após tomarem banho no mar, Gelsomina e as irmãs encontram uma figura “celestial”, a deusa etrusca-apresentadora de televisão Milly Catena (Monica Belluci), numa rodagem de exteriores de um célebre programa de televisão que promove os produtos rurais de cada região. No breve encontro, esta dá-lhe como prenda um alfinete de cabelo, e Gelsomina, que trabalha diriamente ao ritmo sazonal no campo com a família, logo sonha em inscrever os seus, mostrando o que têm de melhor, a produção de mel. O prémio, claro, significaria o desafogo económico e quiçá a modificação do estilo de vida daquela família.
Como se expurgasse o genuíno delírio do circo felliniano da sua substância (a referência a Gelsomina está longe de ser inocente para uma personagem inocente), a representação das falsas maravilhas da máquina televisiva, com as suas pestanas postiças e cabelos de espuma, prolongam a ideia de “genocídio” cultural do filme de Garrone. Indo além, Alice Rohrwacher alarga a questão, construindo um outro “país das maravilhas”, o mundo puro e em vias de extinção da ruralidade, transformando quer essa forma de vida, quer, adivinha-se, essa forma de filmar, em objecto que, de futuro, será apenas de museu. Câmara à mão, planos longos, ritmo compassado, o filme acaba por fazer a transição suave do realismo campesino ao onirismo da infância. Neste, a desaparição da classe rural é motivada por uma certa doçura que já não tem lugar no enquadramento de talentos e agitação constante da grande audiência televisiva.
Os prémios do concurso das maravilhas têm lugar numa ilha (Alice está a filmar uma espécie de “hunger games” proletário), dentro de uma caverna. Quando a família cai por essa “toca de coelho”, para saber se sairá vencedora, há aquele plano fantástico do pai de Gelsomina, enquadrado pela câmara de televisão, por sua vez enquadrado pelo olhar de Alice Rohrwacher, dizendo, entre o medo e a estupefacção, que o mundo está prestes a terminar. Circuito de olhares que começa com a curiosidade entomológica dos espectadores televisivos e se estende a nós, para mostrar o número de Gelsomina com as abelhas como uma performance triste pertence a um mundo de Portugal Tem Talento, Casa dos Segredos e Preços Certos.
A nota menos positiva de Le meraviglie é que muitas das suas maravilhas provêm de uma revisitação do universo de La niña santa (A Rapariga Santa, 2004) de Lucretia Martel ou da abordagem suave de El espíritu de la colmena (O espírito da colmeia, 1973) de Víctor Erice, atenuando a sua originalidade. O que resta do seu mistério será perceber até que ponto se trata de uma obra premonitória de um futuro, até que ponto o momento mais comovente do filme – as lágrimas de Cocò, uma mulher que também vive com a família, quando Gelsomina se dá, na sua inocência – se justificará como uma espécie de lamento de redenção pela realidade física de uma certa ruralidade e, consequentemente, contra a extinção de uma certa inocência de viver.