Aquando da Queda do Muro, um conjunto de filósofos foi convidado para comentar o acontecimento na rádio pública, um deles quando instigado a comentar a morte do comunismo respondeu que uma coisa que nunca nasceu não pode alguma vez morrer. A sua ideia era a de que o comunismo russo não foi um poder, foi mais um estado de ser, como coisa viscosa onde as pessoas boiavam e que, como não tinha tido estrutura, esta não podia ruir. Em terras lusas. por sua vez, o embaixador russo em Lisboa comentava que o problema que nesse momento se iniciava não era o do futuro, aliás, esse nunca fora um problema para a Rússia. Era, como sempre fora, o passado – como o reescrever às necessidades do liberalismo oligárquico que cedo se instalaria.
Estou em crer que a primeira visão é aquele que se vem encontrando nos filmes de Sergei Losznitsa [toda a sequência no início de Schaste moe (A Minha Alegria, 2010) em que o relógio de cozinha faz tique e taque apesar de nele não poisarem quaisquer ponteiros simboliza essa perspectiva], a ideia de que existe uma viscosidade no tempo que o torna imune à mudança e que favorece a preservação do mal (banal ou nem tanto assim). O segundo olhar é um que se aproxima mais daquele de Andrey Zvyagintsev, como escreveu o Carlos Natálio a propósito de Elena (2011), há nele um “ponto de vista [onde] qualquer triunfo soará a improdutivo, as classes jovens (os filhos e os netos) parecem incapazes de sair moralmente de onde estão e a vida parece ser um castigo suficientemente claro.” Em Leviafan (Leviatã, 2014) essa incapacidade constantemente desafiada e frustrada ressurge com tanta ou mais evidência, porque neste filme o futuro nunca é um problema, é sim a forma como cada um dos personagens lida com o passado (do seu país).
Mas falava de personagens: em Vozvrashchenie (O Regresso, 2003) a ausência da figura paternal impede que os filhos possam crescer, em Elena é o oposto, a presença da mãe impede que os filhos se emancipem do seio materno. Em Leviafan curiosamente não estamos no território do primeiro nem sequer estamos no seu oposto, aqui o filho cresce – ou nem por isso – independentemente da intervenção paternal (vive também com a madrasta a quem não dá relevância). Ou seja, este último tomo de Zvyagintsev trata, acima de tudo da impotência (em relação ao poder instituído, àquele que se esconde nas malhas da burocracia e também aquele que se desenvolve nos lençóis) e da consecutiva castração (as derrotas, as perdas, os enganos conjugais, o miserabilismo, o conforto do álcool, a prisão, a morte) impostas no confronto entre o individuo e o dito sistema.
Depressa e rápido o filme conta a forma como a vida de um casal e seu filho se desmorona quando o município decide expropriar os terrenos da sua habitação e de como a luta jurídica é inútil assim como a luta de influências e chantagens. Se a trama parece (e é) vulgar, o que a transtorna é, mais do que quaisquer outros factores, a forma como o realizador consegue gerir o manancial de personagens de tal modo que fui sempre duvidando de quem era o protagonismo e por outro lado o contraste que se instala no confronto entre as suas velocidades, o desfasamento entre os ritmos de cada um deles.
A este respeito, e numa nota de profunda ironia, as sequências do tribunal em que o pobre paterfamilias recebe o resultado do julgamento são filmados em plano afastado onde a juíza dispara à velocidade de 10 palavras por segundo a sentença. Nesses instantes a avalanche de palavras e termos jurídicos inunda-nos os ouvidos, mais ainda pelo contraste gritante com a lentidão (muito contemporânea) da realização de Zvyagintsev em todos os outros momentos. Isto é, a vida é pasmacenta e a burocracia é Pepe Rápido.
O que me incomoda no cinema de Zvyagintsev, e este seu último filme não é excepção, é aquilo que no entanto agrada à maioria, a saber: um secura emocional, um dramatismo tipicamente russo entre a moralismo e o realismo gelado e um fascínio por humanos em situações limite e auto-destrutivas. Fica-me no entanto, como já havia ficado em Elena, um pender da câmara para a natureza, aliás, para o olhar da natureza. Como se as diabruras humanas (mais ou menos sanguíneas) pouco ou nada importassem defronte de um fiorde, uma montanha, uma costa pedregosa, um pássaro ou uma baleia. Esse olho natural que nos olha parece-me ser a chama que Zvyagintsev não soube ainda totalmente dominar.