Estou no átrio do cinema UCI-El Corte Inglés na semana antes do Natal. As televisões por cima das nossas cabeças e os cartazes nas paredes apresentam os blockbusters (The Hobbit: The Battle of the Five Armies, 2014) e filmes de animação da época (Big Hero, 2014), mas também os candidatos aos Óscares (Boyhood, 2014) e até um filme português (Cavalo Dinheiro, 2014). Avós e netos, pais e filhos, grupos de adolescentes, e casais de namorados apressam-se para a entrada. Nesta altura do ano, a ida ao cinema também pode ser, entre muitas outras coisas, uma recompensa pelas boas notas do primeiro período, ou uma pausa nas compras de Natal.
A variedade de filmes e públicos é típica dos multiplexes modernos em centros comerciais. O cinema UCI-El Corte Inglés, que nem sequer é o maior multiplex do país, tem 14 salas (2700 lugares) e uma equipa de 30 pessoas distribuídas por tarefas de bilheteira, bar, limpeza, o restaurante Pans & Company, mais quatro gerentes e um — leram bem, um — projeccionista. Com todas as suas vantagens e facilidades, a projecção digital também trouxe, infelizmente, o desaparecimento da profissão de projeccionista. O mesmo trabalho pode ser feito agora por muito menos pessoas ou até mesmo pelos próprios gerentes dos cinemas.
É o caso de Nuno Araújo, 39 anos, gerente-adjunto neste cinema desde 2007. Como muitos dos seus colegas noutros multiplexes, Nuno pode assegurar os trabalhos semanais de carregamento de DCPs nos projectores, a elaboração das playlists das sessões diárias, mas também as muitas sessões especiais (visionamentos para a imprensa ou ante-estreias para o público). Decidir se um filme passa numa sala maior ou mais pequena, uma ou várias vezes, são decisões comerciais, cuja execução é deixada ao projeccionista. Hoje, o digital permite aos gerentes fazerem das tarefas de projecção uma simples extensão das suas decisões de gestão.
Mas como explica Nuno, até estas tarefas correm o risco de serem simplificadas, ou mesmo de desaparecer. Nem todos os ficheiros de muitos filmes chegam ao UCI-El Corte Inglés através da entrega física de um disco rígido. Alguns são agora transmitidos via satélite directamente para um servidor central do cinema e dali para os respectivos projectores digitais através de uma rede interna. Serão os próprios gerentes, depois dos projecionistas, os próximos a desaparecer das cabines dos cinemas?
É altura, justamente, de subir à cabine. A entrada faz-se pelo átrio VIP, no primeiro andar. As paredes estão forradas com grandes fotografias de novas e velhas estrelas de Hollywood, que nos obrigam a erguer o olhar, reverencialmente. Pouco depois, percebo que aquela justaposição do “novo” e do “velho” já prenunciava as grandes surpresas que ia encontrar nesta cabine.
Aberta a porta com um cartão magnético, estendem-se à nossa frente dois longos corredores onde, regularmente, plataformas elevadas assinalam a presença dos projectores. Esta longa cabine comum corresponde, tanto no comprimento como na configuração, aos corredores que, no piso abaixo, dão acesso às salas. O espaço impressiona pela sua extensão, mas também por servir outros fins além da instalação dos projectores. Passam por aqui as condutas de ar condicionado das salas e uma parte importante da sua instalação eléctrica. Estamos na zona mais elevada dos cinemas mas, com todas esta calhas metálicas, tubagens e cabos, esta cabine faz lembrar as galerias técnicas subterrâneas de um grande complexo industrial.
Depois de assimilar este espaço, posso olhar com mais atenção para os projectores. E surge a primeira grande surpresa desta cabine: ainda aqui estão vários projectores de película. Em 6 das 14 salas, mantiveram-se os projectores Cinemeccanica Victoria 5 montados desde a inauguração do cinema em Junho de 2002. Existem agora lado a lado com os projectores digitais NEC NC2000C que foram instalados progressivamente a partir de 2008 (o primeiro filme digital aqui projectado foi Bolt, o êxito de animação do Natal daquele ano). A decisão não foi nostálgica, mas prática. Sempre que houve espaço, os projectores de película ficaram no seu lugar; poupou-se o trabalho da sua desmontagem e garantiu-se que o cinema estava preparado para o período de transição em que as cópias em 35mm coexistiram com os DCPs.
Mas estes projectores não são o único vestígio do tempo da projecção em película. Na zona mais larga de um dos corredores ainda se encontra a velha sala de montagem de filmes. Aqui estão as enroladeiras e as coladeiras para montar as cópias, ou repará-las quando se partiam no projector. Um pouco mais adiante está a mesa de controlo com 14 pequenos monitores de vídeo onde se confirmava que as sessões arrancavam como previsto, no horário previsto, e onde se verificava o som e a imagem de cada sala.
Afinal, os automatismos não são uma invenção digital: eles foram inventados a pensar nos multiplexes da era da película e tornaram-se indispensáveis desde então. Apesar de ser agora integralmente digital, na cabine do cinema UCI-El Corte Inglés ainda existe muita tecnologia analógica. Lá estão, por exemplo, as torres de pratos onde cabia o programa de uma sessão inteira (anúncios, trailers e longa-metragem), que dali partia para o projector, para depois regressar a outro prato, já pronto para ser projectado na sessão seguinte. Lá estão, também, alguns dos carretos do sistema de transporte de película de um projector para outro (interlocking), que permitia mostrar a mesma cópia noutra sala. E lá estão, como já vimos, meia dúzia de projectores italianos Victoria 5 — os mais comuns em tantos multiplexes portugueses — com torres de objectivas e janelas de projecção mecanizadas, isto é, capazes de mudar de lente e de formato de imagem automaticamente graças à leitura de pratas colocadas nas margens das películas; e os respectivos programadores Selonik que controlavam as horas de arranque dos projectores, a intensidade das luzes da sala, e a mudança dos sistemas de som.
Estas tecnologias não são apenas uma curiosidade arqueológica. De tempos a tempos, normalmente numa sessão especial, os projectores de película voltam a ser usados. Ainda em Setembro de 2014, Lisboetas (2004) foi aqui projectado numa cópia de 35mm. Mais importante, todos os programadores analógicos que antes serviam os projectores de película foram adaptados aos projectores digitais e continuam, por isso, a ser usados quotidianamente. A coexistência e as combinações entre digital e analógico nesta cabine são, por isso, uma lição prática de história sobre o que foi a projecção de película num multiplex. Mas também nos recordam que, ao longo de toda a história do cinema, raramente existiram mudanças abruptas e que as novas tecnologias herdam sempre qualquer coisa das antigas.
Os projeccionistas que viveram este processo são, também eles, uma lição viva de história. Muitos, não sobreviveram à chegada do digital. Outros, fizeram a transição e mantiveram os empregos, mas ficarão para sempre entre dois mundos. Normalmente, estas histórias de vida pertencem a pessoas com 40 ou 50 anos. Com apenas 32 anos, Filipe Figueiredo, é provavelmente o projeccionista mais novo que vamos conhecer, e a segunda grande surpresa da cabine do UCI-El Corte Inglés. Filipe aprendeu a projectar em 35mm no multiplex das Amoreiras, onde começou a trabalhar em 2002, tomando o lugar do irmão. Veio para o El Corte Inglés em Janeiro 2006, dois antes de chegarem os primeiros projectores digitais, onde se juntou a uma equipa de 6 projeccionistas. Hoje, resta apenas ele. Numa semana normal, vamos encontrá-lo atarefado entre ingests e playlists entre segunda e quarta-feira e, no resto da semana, trocando um filtro de ar ou uma lâmpada de projector, verificando se está tudo a correr bem, corrigindo eventuais falhas.
Querer saber como é a sua rotina diária é fazer as perguntas erradas a um projeccionista cujo coração, apesar de já ter passado quase tantos anos a trabalhar com o digital como com a película, pende sem sombra de dúvida para o 35mm. Quando entramos na cabine, a primeira coisa que Filipe nos pergunta é se queremos que nos mostre como se carrega o Victoria 5. A partir dali, conversamos quase exclusivamente sobre os projectores de 35mm. Conversamos, enfim, sobre tudo o que nesta crónica tentei resumir sobre o trabalho num multiplex do tempo da película e que eu nunca imaginei fosse aprender quando entrei na cabine do maior multiplex digital de Lisboa.
Fotografias de Mariana Castro
Agradecimentos: Nuno Sousa, Luís Sousa, Nuno Araújo, Filipe Figueiredo, Jorge Dias.