Sabe-se como os vulcões e sua actividade podem servir de poderosas metáforas geológicas para aquele ou aquilo que permanece dormente e subitamente explode. Que o digam aqueles que, num país ainda acorrentado ao fascismo, tiveram a oportunidade de ver pela primeira vez, menos de um ano antes do 25 de Abril, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, Roma città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945). O país, como outrora Roma, estava “fechado” e pouco depois de os olhos dos que o viram se terem aberto, o mesmo aconteceu com Portugal. Essas aberturas coincidiram com a necessidade de construir um novo público para um novo cinema que finalmente por cá via a escuridão das salas. O ciclo Rossellini nos anos 70, que marcou todos quanto o viram, foi a pedra inicial na construção desse novo público, estratégia essa que se iria manter por mais trinta ciclos de outros tantos grandes nomes do cinema.
Fast forward para ano 2015, espécie de ano 0 de um Portugal-escombro, entalado entre a bulimia da democracia do consumo e a crise financeira. É neste contexto que se tem agora a oportunidade de revisitar dez das obras de Rossellini, em cópias digitais restauradas. As copias andarão à solta pelas salas nacionais e pergunta-se: que olhos estarão disponíveis para elas? Além das inevitáveis nostalgias dos anos 70 e as comparações entre o digital e os riscos da película, importa perceber o que pode abrir hoje a erupção de uma obra e de um homem que, na célebre formulação de Alain Bergala, dez anos depois de ter dado à luz o neo-realismo, “inventou” o cinema moderno. Não se trata tanto de perceber como é que determinadas obras suas resistiram à passagem do tempo, mas antes compreender de que forma se articulam estas com o nosso tempo. Esse é o desafio que resgata o cinema do italiano de uma extinção historicista e trabalha sobre o poder de re-aquecer, re-abrir o que hoje parece inerte e entupido.
Nesta tarefa que tem pouco a ver com pedagogias da verdade ou da revelação, propunha uma viagem (aliás duas): uma ascendente outra descendente, como quem sobe e desce do absoluto de Stromboli. A esperança é ver nela alguns traços relevantes: os trajectos que ascendem do neo-realismo ao cinema moderno; a passagem da trilogia da guerra à trilogia della solitude de Rosselini como uma passagem de guerra exterior a uma “guerra interior”; o percurso da materialidade coral da socialidade em guerra a uma outra materialidade mais vasta, mais simultaneamente sagrada e profana, de uma sociedade-mundo na qual o período televisivo do italiano se viria a instalar; ainda, entre os planos que descem para o chão na “primeira fase” e os que ascendem depois, ambos para confirmar que não era a câmara de Rossellini que fazia esta viagem metafórica, ou melhor, que a fazia em direcção oposta em relação à qual nós a fazemos. Quando o seu cinema aparentava subir, progressivamente, a câmara descia e vice-versa, dando-nos o contraste entre um cinema que se disse revelar a realidade e um cinema que sabia, como o pobre fotógrafo-deus-temporário Celestino do mais bufone filme que se poderá ver neste ciclo [La macchina ammazzacattativi (A Máquina de Matar Pessoas Más, 1952)], que, se a fotografia é a “morte do instante”, ele, por sua vez, tudo poderia reverter fazendo do real tenso ao limite de estouro, um equivoco trágico-cómico.
Subamos então.
Cinema: arte aberta
Quem hoje vir (ou revir) Roma città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945) percebe muito claramente que, atreladamente aos episódios de rodagem atormentada que iniciam o método rosselliniano pelo qual os filmes são documentários sobre essa mesma rodagem, além de se tratar de uma obra icónica sobre a resistência, ela produz uma trilogia discursiva que assenta numa lógica de opressão-resistência-libertação. A queda de Anna Magnani, executada numa rua ocupada de Roma, além de ser o primeiro dos momentos em que a o cinema de Rossellini ao começar a “subir” filma a “queda” de uma inocente, ela é a imagem da opressão tornada material. Essa sequência que, pode dizer-se, rima com a frase de George Orwell em 1984 – “Se quiseres uma imagem de futuro pensa numa bota a pisar um rosto humano. Para sempre.” – possui a mesma inevitabilidade de montagem que uma sequência de um outro assassinato: o de Janet Leigh na célebre shower scene de Psycho (Psico, 1960) de Hitchcock. A comparação mais do que temática ou formal, prende-se com uma certa inevitabilidade que antecede a morte. A morte de Magnani, como a de Leigh, são ambas concretizações brutais de um mecanismo posto em movimento que só pode culminar com o trágico desfecho. Quer dizer, não há maneira de ver tais sequências descosidas do seu término que funciona tanto como clímax violento quanto como libertação. No caso de Roma, esta começa com a palmada que Pina dá num oficial da SS que a assedia e só termina na primeira das imagens de iconografia religiosa que acompanham cada um dos momentos desse triplo discurso: o plano da pietà em que Don Pietro segura nos braços a já falecida Pina. Assim encenava Rossellini, do alto documental, do ponto de vista de alguém superior (não ele, mas talvez a humanidade como testemunha?), a morte brutal e desdramatizada de uma mulher que representava a indignação de todo um povo romano ante a guerra.
O segundo momento, símbolo de resistência, é aquele em que Aldo Fabrizi, depois de ser obrigado a assistir à tortura e morte de Francesco diz, de lágrimas no rosto (ao que se conta, fabricadas) e punho estendido: Volevate uccidere la sua anima: avete ucciso soltanto il suo corpo. Maledetti! Maledetti! Também esta sequência, sobre a qual Serge Daney disse que inaugurava, no seu voyeurismo impossível, no seu olhar que aleija, o cinema moderno, as referências cristãs são evidentes. Não só o muito falado plano de Francesco acorrentado-cruxificado como Cristo, como a referência a um mal que só pode atingir o corpo e que deixa a alma intacta, pronta a resistir à opressão dos males. Finalmente, o terceiro momento, a primeira das subidas ao promontório que Rossellini filmaria [depois ainda Magnani ascenderia à capela na montanha para dar à luz, no segmento Il Miracolo, o segundo dos episódios de L’Amore (O Amor, 1948); e, claro, a subida de Ingrid Bergman ao vulcão em Stromboli (1950)], a execução de Don Pietro num campo, ante o olhar das crianças da sua paróquia que caminharão lado a lado no último plano do filme. Se Rossellini já nos tinha “dito” na sequência anterior que há libertação na morte, esse caminhar final do futuro da Itália, as crianças, prolongam esse discurso de libertação, no qual o fim do filme nos dá o princípio de uma esperança: Roma, será, mais tarde ou mais cedo, aberta.
Sob a questão da libertação, diga-se ainda, que ela é um movimento que as exigências históricas permitiram ao cinema instrumentalizar. Quer a cidade de Roma, quer o cinema precisavam de se libertar. Nesse sentido, se Rossellini é o pai do neo-realismo ele é-o, quer pela recusa de uma certa formulação “presa” ao modelo narrativo clássico homogéneo e às fórmulas do cinema fascista de Salò, quer pela impossibilidade do sistema cinematográfico organizado funcionar em período de guerra, ambas as condições levando àquilo que Rossellini chamou, oportunamente, uma “saída do cinema da igreja dos estúdios”. Se essa saída corresponderia a um realismo novo, precisamente a uma “libertação”, ele teve como inspiração aquilo que a guerra tinha para lhes dar, e que o cinema moderno iria aproveitar como nunca: a ruína e a heterogeneidade dos elementos materiais. O que veremos é que essa libertação em relação ao granítico da fórmula, ante um primeiro momento de convulsões sociais, fez-se por relação àquilo que o contrangia, nomeadamente, as autoridades da ocupação ou, como se vê logo a seguir em Paisà (Libertação, 1946), a desordenação cultural motivada pela sucessiva “ocupação” norte-americana. Já a Guerra Fria, ou “invisível”, imporá à libertação do cinema de Rossellini, passe-se o paradoxo, conflitos também eles de natureza invisível e eminentemente emocional e interiores.
Embora Rossellini se tenha querido livrar de algumas responsabilidades artísticas da sua trilogia fascista [La Nave Bianca (1941), Un Pilota Ritorna (1942) e L’uomo dalla croce (1943)], o certo é que, como refere Pio Baldelli num texto chamado Os começos de Rossellini e o Cinema de Salò, há nesses “filmes de papelão” um lado importante da dialéctica que desembocaria no neo-realismo. O continuum histórico faz da trilogia fascista um início do aproveitamento da guerra como espectáculo atractivo e emocional, além da procura de actores não profissionais para servir as “personagens verdadeiras” da propaganda. Por outro lado, o próprio Rossellini reconhece como a “libertação do olhar” em Roma ainda não é pura, estando pejada de elementos de sedução e drama contidos numa estrutura narrativa ainda bastante concisa. Como diz Adriano Aprà, um dos maiores especialistas no cinema do mestre italiano, Roma città aperta é ainda um “filme velho com um tema novo”.
Mas o começo de um cinema feito num espaço desorganizado, dos apartamentos e cantos de trabalho (como locais sem privacidade onde tinha lugar a organização subterrânea da resistência), que é também um cinema da fuga ao cerimonial e ao bombástico, da composição de um grupo-personagem que fosse a cidade de Roma em 44, tudo isto permite pensar um primeiro ponto da nossa “viagem”. Daqui se ascende das celas de tortura nazi ou das gráficas onde se opera a resistência, a um caminhar lado a lado depois do fim de um Inverno e do início de uma nova Primavera que chegaria entretanto: e “depois seremos livres. É preciso acreditar e querer”, diz Francesco a Pina. Nesta mensagem didáctica de esperança está contida uma unidade de todos os italianos, deixando na sombra que Roma funcionou como instrumento de coesão (escamoteando um pouco que a própria Itália estivera do lado nazi). Mas esta unidade foi obtida sob um princípio da junção de elementos diversos da sociedade da época, sem grande sublinhados psicológicos da parte de cada um. Talvez por isso Roma seja hoje simultaneamente uma obra “fechada” na 2ª Guerra Mundial, mas “aberta” enquanto algo que resiste fresco na história do cinema, pelo menos enquanto discurso triplo de opressão-resistência-libertação.
De sul para norte
O filme seguinte de Rossellini, Paisà (Libertação), vê simultaneamente implicadas duas das ideias que venho explorando: a subida e a libertação. A primeira é antes do mais geográfica, do Sul ao Norte de Itália, mais propriamente de Sicília, local do primeiro episódio, até ao sexto no Rio Pó, mimando a progressão das tropas aliadas norte-americanas de 43 a 45. Subida também na escala de produção. O sucesso de Roma tinha permitido a captação de fundos internacionais para este seu novo projecto. Subida ainda que é também o trajecto, como o título português indica (não contudo sem uma forte dose de ironia) de uma “libertação”. Libertação que se confunde, a espaços, com uma nova invasão, com a presença agridoce de uma nova cultura que se vai instalar num outro espaço e desafiar, desordenar e estimular a Itália no pós-guerra imediato. Instalação que ganha múltiplos contornos, até os menos óbvios: não é por acaso que Rossellini sofre a invasão “americana” de Ingrid Bergman depois do seu célebre “ti amo” por carta, ao invês de rumar a Hollywood para fazer carreira em terras de tio Sam como muitos cineastas europeus pressionados pela guerra; não é por acaso que é a família norte-americana, que no início de sátira La macchina ammazzacattativi quer comprar um rochedo que serve de cemitério à pequena cidade de Amalfi para lá construir um hotel, aquela que ao mudar de anfitrões vá ditando, implicitamente, as misteriosas mortes por “congelamento fotográfico”, a cargo do já referido Celestino.
A presença americana permite ainda em Paisà falar de uma “subida” até na diversidade de temas que deixavam parcialmente a imediatez da sobrevivência da guerra. Como se torna claro, o filme evolui ao longos das suas seis histórias (uma “libertação” do modelo contínuo narrativo e suas fórmulas sentimentais, para uma estrutura por episódios que Rossellini por várias vezes revisitaria na sua carreira) tendo como pano de fundo um dos seus maiores temas: a incomunicação. Como diz Aprà na sua análise ao filme, se no primeiro episódio, no qual o soldado norte-americano Joe fica a guardar Carmela, uma rapariga siciliana, a incomunicação é tal que nem sequer no final os soldados percebem quem o matou (se ela, se os alemães), já no último, vemos uma plena colaboração entre soldados americanos e paisans na resistência ao invasor germânico. Desta forma, cada episódio de Paisà integra um estádio de crescente comunicação entre os americanos e os italianos. Se os temas se diversificam, “sobem” – como é o caso do soldado Joe a quem um rapazito do porto de Nápoles rouba as botas (segundo episódio), a interrupção de uma possível história de amor entre um soldado americano e um mulher romana, entretanto tornada prostituta (terceiro episódio), ou ainda o encontro de um grupo de franciscanos na Romagna com três capelães militares americanas (um católico, um protestante e um judeu) (quinto episódio, escrito pelo próprio Rossellini) -, a câmara ainda está presa à materialidade de uma coralidade-microcósmica da sociedade. Sinal desses elementos de queda ou subterrâneos são a ida de Joe no segundo episódio às cavernas de Margelina onde se refugiam as caóticas multidões dos pobres napolitanos. Esse momento prenuncia as “peregrinações” de Katherine Joyce em Viaggio in Italia (Viagem a Itália, 1954) ou as “descidas” à realidade social de Irene Girard em Europa’51 (Europa 51, 1952) que provocam a súbita, mas latente, revelação interior. No caso de Joe, ele limita-se a deixar de perseguir o miúdo, recontextualizando o seu roubo “in the bigger picture” da pobreza daquela cidade. Mais sinais dessa ideia de queda material são a morte de Carmela lançada ao penhasco, a “degradação” de Francesca de mera residente romana a prostituta, ou a câmara rasteira de Rossellini nos espaços envolventes junto aos pântanos e canaviais no último episódio. Ver ou ser visto, missão comum a soldados e espectador, que culminará depois no último plano do filme, a queda brutal dos paisans lançados à água (ouvimos o som seco da água a engolir aqueles corpos para não mais os devolver).
Fellini, que havia escrito o quarto episódio passado em Florença, dizia que a rodagem de Paisà tinha sido um “piquenique entre amigos” quando comparada com Roma. Após aberta a cidade era altura de sair cá para fora e pôr os pés a caminho, indo por esse país afora para ver os efeitos da guerra e o que havia mudado, que mudanças havia produzido na sociedade. Quase dez anos depois, como veremos, surgirá uma nova viaggio in Italia, a qual já será feita para confirmar o que não muda. Por agora, como dizia Truffaut, cumpria-se um movimento de expansão, expressão natural de uma curiosidade interminável de Rossellini e de uma “falta de imaginação”: de uma cidade ao país, do país à Alemanha, desta a um continente (Europa) e deste, como também veremos, ao outro lado do mundo [India: Matri Bhumi (India, 1959)]. Do particular ao geral era esse o movimento esboçado na ambição criativa do italiano, tendo como contraponto a passagem da materialidade à imaterialidade dos conflitos das personagens. Aliás, não é de outra coisa feita a subida que vamos seguindo.
Ainda mais a norte, o escombro
A subida subsequente de Rossellini é aquela a partir da qual resulta a “queda” mais brutal do seu cinema. O italiano tinha tido vontade de ir à casa do “inimigo”, a Alemanha, ver como sobrevivia o povo derrotado, habitante de um país arrasado, com edifícios partidos, desabitados, cavalos mortos no meio da estrada à espera que alguém lhes fosse cortar um bocado para comer. Se os primeiros dois filmes da trilogia da guerra denunciavam o conflito como um evento no qual a morte de inocentes todos os dias tornava impossível e desadequada a gestão dramática de uma narrativa e de uma rodagem meticulosa, desta vez havia que gerir de forma mais cerebral, expressionista até dirão alguns, esse pessimismo. A “ocupação” da Alemanha por Rosselllini, o seu encontro com o pós-guerra germânico produziu em si a necessidade de formular um filme-escombro que gritasse, através do escândalo supremo que era a morte por suicídio de uma criança inocente, uma espécie de vazio existencial, desespero total em impasse, marca que a guerra havia deixado na psique daqueles que deveriam, por natureza, ocupar a mente a pensar o futuro. Como na sequência da morte de Pina, os últimos dez minutos de Germania, anno zero (Alemanha, Ano Zero, 1948), provavelmente a conclusão mais poderosa de toda a história do cinema, põem em marcha um mecanismo que, preparando de forma imperceptível a dura tragédia da morte do pequeno Edmund, só conhecem um fim no plano picado do seu corpo prostrado junto à ruína do edifício do qual se lançou.
O peso de tal queda contrasta uma vez mais com a ascensão a que se propõe Rossellini com Germania. Essa subida, dir-se-ia, começa na forma como o italiano filma em contrapicado o topo dos edifícios em ruínas, mas sobretudo pelo facto de construir um espaço-décor que é simultaneamente um palco material possível de um pós-guerra e um palco simbólico, uma paisagem abstracta e interior (como já, de certa forma, o era o espisódio de Florença de Paisà) que funcionava como espelho de um estado mental ou estado de espírito das pessoas que sobreviveram à destruição maciça da segunda guerra-mundial. Do topo do edifício ao qual Edmund sobe, ele não vê, como Adorno, qualquer hipótese de um depois, seja na vida seja na arte. Rossellini, no entanto, ao fazer migrar o holocausto para dentro, a guerra para o interior (como lidar com o trauma do que se viveu a partir de agora?) antecipou um “renascimento”, uma linha de fuga: o cinema moderno erigido por sobre (e discursando sobre) a ruína. Se comumente se diz que é preciso um trauma para mudar, talvez fosse preciso analisar os escombros (em 2015 será, como em 1948), ver o caos da tábua-rasa para poder re-começar. Desta feita, “os caminhos do cinema moderno” para usar uma expressão de João César Monteiro, partem deste Germania, e mais particularmente daquela queda. Deste filme é possível traçar toda a genealogia de muitos cinestas modernos: a começar na Nouvelle Vague e a encontrar o tédio de Antonioni, a infância de Bergman em obras como Tysnaden (O Silêncio, 1963) ou Fanny och Alexander (Fanny e Alexandre, 1982), ou ainda a prosa e a “pobreza” de Pasolini, para ficar apenas em exemplos curtos e óbvios.
Para voltar à cena da tortura de Francesco que Pietro, mesmo já de óculos quebrados, tem de assistir em Roma città aperta, pode dizer-se que Germania acaba por funcionar como extensão dessa cena de tortura. A morte de um inocente que antes cometera parricídio, numa cidade varrida por panorâmicas da esquerda para a direita, sob uma luz forte e violenta, exemplifica a passagem de um neo-realismo ao cinema moderno. Se no primeiro, uma certa posição ética ditava uma estereoridade estética, no cinema moderno, que nasce de um ver que faz doer, que provoca “culpa”, há a instalação progressiva de uma predominância estética nesse vazio existencial. As ruínas, a espectralidade das personagens, o niilismo moral, a atitude sacrificial, são tudo elementos que partem de Rossellini e Germania, Anno Zero. Curiosamente, não se pode dizer que Rossellini seja o autor da angústia. A sua inquietação torna-se mais clara na trilogia seguinte, com Ingrid Bergman, quando usa uma relação amorosa para indagar da natureza espiritual no homem, descarnada pela guerra que viveu e na qual teve de criar. A desaparição dos ecos mais evidentes da guerra mostraria como essa inquietação precisaria de um movimento ascensional (do qual Stromboli é o culminar) para voltar a descer, já certo (se é que certos alguma vez estamos) da imanência e da materialidade como soluções da “guerra interior” do indivíduo. Se João César Monteiro dizia, meio em jeito de brincadeira, que Rossellini era “o pior dos católicos porque era o católico que se ignora”, diga-se antes que, ao contrário de autores como Dreyer ou Bresson, Rossellini usou as metáforas e iconografias religiosas do catolicismo para precisamente chegar a um estado mais lato de conciliação entre forma e matéria, magia e racionalidade, panteísmo e secularidade.
Do amor ao medo
L’Amore (O Amor, 1948) na sua estrutura por episódios é filmado em dois tempos (o primeiro dos quais mesmo antes de Germania). A sua importânia axial, entre trilogias, é fundamentalmente a de um duplo prenúncio. Por um lado, o prenúncio do fim de uma relação de amor entre Magnani e Rossellini (à arte da qual o segundo episódio é expressamente dedicado), e, por outro, a do começo de uma nova relação, desta feita com Ingrid Bergman. De certa forma, o cineasta, ao filmar Magnani no primeiro segmento, uma breve adaptação da conhecida peça de Jean Cocteau A Voz Humana sobre o fim de uma relação, que deixa a mulher desesperada pela voz presente e corpo já ausente do seu amante, apanha simbolicamente a vida real.
Se no primeiro episódio é o corpo masculino o ausente, no segundo, escrito e interpretado por um jovem Fellini, é a sua voz que nunca se fará ouvir. Em Il Miracolo, uma guardadora de cabras considerado louca pela pequena comunidade onde vive, encontra, num dia de muito sol, São José no cimo de uma montanha. Sobre esse encontro diga-se já ter estampado muitos dos elementos posteriores da sua carreira. Primeiramente, pode antever-se nele o começo da “visão” de Bergman na vida de Rossellini, mas também o seu fim. O começo liga-se a Stromboli. Como a personagem de Magnani, Karin (Bergman) em Stromboli está grávida e fará um percurso ascensional: no primeiro caso para ter um filho de uma suposta imaculada concepção, no segundo para tentar escapar da ilha. O fim liga-se a La Paura (O Medo, 1954), também entitulado Non credo più all’amore. A questão da loucura em L’Amore (pois que ninguém crê que Magnani, “a pobre louca com uma mania religiosa” como a descreve Rossellini, viu mesmo São José) permite, não muito abusivamente, pensar nos mecanismos de controlo do professor cientista Albert Wagner sobre Bergman para lhe inculcar sentimentos de culpa e a levar à confissão do seu adultério no penúltimo filme do par romântico, altura em que a relação de ambos estava já numa trajectória descendente e em relação à qual se conta que o cineasta se tornara possessivo em relação à actriz sueca, pressionando-a para não aceitar convites de trabalho de outros cineastas-autores.
Se se pode dizer que quando Rossellini está a filmar o amor já instala nele as sementes da sua futura destruição, importa-me agora que o corpo sacrificial de Edmund dará lugar ao contexto de uma reflexão sobre a ausência do corpo. Em L’amore, em ambos os episódios, a ausência do corpo masculino, do amante, do santo, gera o desespero, a loucura, a subida à igreja. Contudo, essa ausência não dispensa o elemento sensual: Magnani bebe num primeiro momento o vinho, embebeda-se com o santo que é um homem tão belo, roubará depois a maçã na igreja. Como se verá, em Stromboli, onde o cume da nossa “viagem ascencional” atinge o seu zénite, a inquietação surge menos da ausência do corpo do marido mas da incapacidade de sentir correctamente o corpo das coisas, do mundo. Os planos finais de Magnani, mal iluminada, suada, a dar a luz, fazem já parte de um mecanismo de “milagre interior e revelador” que Rossellini filmará nas obras seguintes.
Che mistero! Che bellezza!
Já aqui falei da carta que Rossellini recebeu de Ingmar Bergman em 1948, louvando-o por Roma e Paisà, e oferecendo-se para vir para Itália trabalhar com ele, sendo que em italiano só sabia dizer “ti amo”. Este é o famoso rastilho do que viria a ser uma polémica relação profissional e ainda mais polémica e mediática relação amorosa. Correndo o risco de levar longe demais o paralelismo autobiográfico (fazendo corresponder esta carta à carta que Karin não obtém, o visto, para partir para a Argentina), digo apenas que a chegada de Bergman a Itália para fazer filmes com Rossellini corresponde à sua “ilha” de Stromboli. A guerra interior de que venho falando começa no cinema de Rossellini a desenhar-se neste momento em duas frentes. A primeira foi naquilo em que se inspirou quando viu Bergman a cair-lhe no colo: que sentimento é esse de alguém que tem tudo (lembre-se do topo hollywodiano em que já estava Bergman) e que ainda assim sente uma certa inquietação para mudar esse sentimento de bonança? De certa forma todas as personagens rossellinianas de Bergman conhecem tal inesperada inquietação. A segunda frente é essa concepção de uma nova relação amorosa como algo que produz também uma revolução interna. Talvez exceptuando La Paura, em todos os três filmes anteriores Stromboli, Europa 51 e Viaggio in Italia, essa relação vai ser no entanto continuada, rasgada, reflectida, por essa primeira noção de guerra interior.
Como com Roma, com Stromboli todas as “anedotas” de rodagem são interessantes e reveladoras: a porrada séria que Bergman recebeu de um atiçado por Rossellini, Mario Vitale; o verdadeiro sentimento de insatisfação de Bergman que sonhava participar em filmes poderosos sobre a guerra e estava ali em nenhures a falar inglês para um bando de não actores que ainda por cima só falavam e compreendiam o italiano; as cordinhas que o realizador italiano atava às pernas de alguns dos habitantes da ilha como única forma que arranjou para saberem quando haviam de se mexer de um ponto ao outro do plano, ou dizer as suas falas. O resultado foi mais uma vez um filme sobre a incomunicação. Karin casa com Antonio apenas para sair do campo de concentração e porque o plano A de escapar para a Argentina não funciona, embora saiba que nem a pessoa que escolheu, nem o sítio para onde vai lhe “pertencem”. Dessa incomunicação, gerada pelo encontro de culturas diversas (como tinha sido entre os americanos e os italianos durante a guerra), pela recusa da população local com outros costumes e visão sob o mundo, resulta que Karin se sinta rejeitada, isolada e deseje escapar.
A fuga da ilha, que, como se sabe, a impele a ter de passar “por cima” do vulcão, pressupõe uma subida aos “céus” para se perceber que é nos locais mais “rasteiros” da ilha que se encontra a salvação. Neste sentido podemos dizer que quando Karin olha os pescadores, na única sequência que as pessoas gostaram de Stromboli (a da pesca do atum, pelo seu sentido documental e neo-realista da documentação do trabalho e das classes rural) e se sente perturbada pela violência do real, ela ainda não está preparada para ver, como diz Alain Bergala no texto Roberto Rossellini e a invenção do cinema moderno. Se podemos interpretar a subida de Karin ao vulcão como uma fuga ao neo-realismo e, como eu proponho na estrutura do texto, uma subida ao encontro de um cinema e sensibilidades modernas, diga-se que o mistero e a bellezza que Karin encontra na revelação ascensional no fim de Stromboli incorpora em si a crueza no neo-realismo integrado num sentimento maior, imanente às coisas, provindo de uma sensualidade telúrica que o filme contém. Neste sentido, e não esquecendo que o filme se chama Stromboli, terra di dio, o Dio! Dio! Dio! que Karen exclama, ou a dimensão religiosa para Rossellini, consiste em aprender uma realidade maior que a/nos ultrapassa, em conseguir ver e integrar em si a beleza e a incomensurabilidade de um omnisciente e omnipresente mundo físico. Prolongando essa concepção panteísta ao cinema podemos conceber o nascimento do cinema moderno como aquele que se dedica a conseguir ver o pequeno-grande detalhe (olhe-se a simplicidade do argumento de Stromboli, ou as minúcias do passeio de Edmund antes de voar para a morte), a ficar pregado, de pensamento elevado, ao rasteiro da matéria, do quotidiano, ou pelo menos, do material.
Se o cume de Karin, o cume de Stromboli, é sinal da lava existencial e revelatória da realidade contida no cinema moderno (ou em parte dele, claro, que múltiplas derivações se conheceram entretanto), restaria a Rossellini ser coerente e compôr os restantes sinais desse todo religioso, vindo a descer por aí abaixo, como farei também eu na segunda parte desta prosa.
Fim da parte I
(A partir desta semana pode ver estes e outros filmes no ciclo que a Medeia Filmes organiza em torno da obra de Roberto Rossellini. Consulte aqui a programação.)