America, man! You know, it’s so beautiful I wanna eat it!
The Kid (Cristopher Walken), em The Anderson Tapes
Existem dois momentos em The Anderson Tapes (O Dossier Anderson, 1971) que, conjugados, sumarizam, com brilho, a essência do filme de um dos Mestres do cinema norte-americano. O primeiro corresponde à primeiríssima cena: num filme em que se fala (sem palavras) constantemente de vigilância, escutas e câmaras, o seu início tem lugar, precisamente, com uma delas, na qual vemos Sean Connery (o Anderson do título) a discorrer sobre o fascínio de assaltar bancos. Muitas câmaras se seguirão depois. O segundo momento corresponde à sequência em que Connery, antigo ladrão com ligações à Máfia, saído da prisão após dez anos de cárcere, faz a primeira visita à sua ex-namorada Ingrid (a extraordinariamente hot Dyan Cannon). Ao chegar ao prédio, Connery repara numa câmara de videovigilância e olha-a, surpreendido (talvez também porque, dez anos antes, tal não seria comum), incomodado e, sobretudo, desconfiado. Esta “desconfiança” é tudo num filme e num realizador que, ao longo da sua extensa filmografia (43 filmes), sempre “desconfiou”, sempre duvidou, da justiça e do direito [12 Angry Man (Doze Homens em Fúria, 1957); The Verdict (O Veredicto, 1982)], da polícia [Prince of the City (O Príncipe da Cidade, 1981)], enfim, da ordem instituída. É, por isso, também “surpreendido” com o alcance das tecnologias de intercepção de dados, vulga intrusão na vida privada, que Lumet filma, com mestria, o “percurso” do cabo telefónico sob escuta no apartamento de Ingrid, tal qual Michael Mann fez mais recentemente em Blackhat (Ameaça na Rede, 2015) com o circuito de uma placa de rede (um update, se quisermos, do “hardware” visado por Lumet).
Note-se que Connery não está, nesse momento, a planear ou a executar qualquer assalto, pois aí, sim, a presença da câmara ser-lhe-ia naturalmente inconveniente. Não; Connery acaba de sair da prisão, está clean e apenas de visita a Ingrid, porque, como lhe diz ainda no elevador, “I haven’t been laid in over ten years”. O olhar desconfiado de Connery é, por isso, não o olhar do Connery-criminoso a registar mentalmente os obstáculos potenciais a um plano de assalto, mas o olhar do Connery-pessoa, do Connery-cidadão. Ou seja, e resumindo, o olhar desconfiado de Connery é, afinal, o olhar-ético de Sidney Lumet, profundamente incomodado e relutante em aceitar o esquadrinhamento visual e sonoro da vida privada dos cidadãos em nome da “segurança” e do “bem estar”, valores que não justificam – não podem justificar – que sacrifiquemos a nossa intimidade, os nossos segredos (absolutamente legítimos), enfim, a nossa vida. Por aqui se vê, portanto, a profunda actualidade de The Anderson Tapes, filme premonitório de uma sociedade – a nossa – que, sob a égide da ideologia securitária e da “transparência”, se mostra permanentemente disposta a abdicar da sua privacidade – quer em favor da res publica (o Estado, a segurança nacional, a luta anti-terrorismo, etc.), quer da res privata (a segurança nos condomínios privados, nas lojas, nos shoppings e afins) –, sem que isso pareça incomodar muita gente, por mais que, paradoxalmente, o mundo ocidental venha cultivando uma tradição intelectual denunciadora deste tipo de controlo, a começar em George Orwell e a terminar em Edward Snowden. Assim se aceita a videovigilância em tudo o que é espaço público (ruas, jardins, parques) e em espaços privados “publicizados” (shoppings) ou as revistas e os interrogatórios de aeroporto extraordinariamente agressivos. Aliás, e como nos perguntámos já noutras linhas, num mundo pós-11 de Setembro (e, agora, pós-Charlie Hebdo), o quê que não se aceita já em nome da segurança? De resto, não estará esta aceitação em perfeita sintonia, numa lógica de osmose, com a proliferação e consumo maciços de reality shows, pese embora o rótulo inofensivo de “entretenimento” que lhes querem colar? A situação fica mais negra quando constatamos como à transparência se juntou, neste século, potenciada pela tecnologia e a globalização, a ideologia da “partilha”, que acentuou e multiplicou indefinidamente – aliás, que multiplica a todo o momento e em tempo real – as hipóteses e vias de controlo e monitorização dos indivíduos, permitindo, mais do que nunca, que se possa, de facto, saber tudo da vida dos outros (para fazer um trocadilho com o filme de Florian Henckel von Donnersmarck, também ele um estudo sobre os efeitos nefastos da intrusão do Poder na vida privada dos indivíduos).
Em The Anderson Tapes, o Big Brother – que é, desfaçam-se dúvidas, a sociedade (e não apenas os programas televisivos) em que vivemos – está montado a partir de câmaras de videovigilância (muitas mesmo), teleobjectivas da polícia (que filmam e fotografam pessoas e locais) e escutas (telefónicas, on location e incorporadas em informadores), cuja captação de imagem e som é acompanhada, com apurado sentido estético, pelo funk computadorizado e robótico (bip, bip) propositadamente produzido pelo lendário Quincy Jones para o filme. Há, depois, essa gigante particularidade de as escutas – na altura, ainda sem a espectacularidade mediática, via fugas de informação e YouTube, de hoje (Pinto da Costa? Sócrates?) – serem feitas quer pela polícia, quer por cidadãos anónimos, como é o caso do namorado de Ingrid, que mantém uma escuta no seu apartamento (para controlar possíveis casos amorosos) e na qual ela e Connery são “apanhados” numa “cena” (ouvimos, mas não vemos) sexual com que o filme magistralmente encerra. O facto de estas escutas serem feitas ilegalmente quer pela polícia (quando Connery é apanhado, a maioria delas é destruída apressadamente), quer pelos cidadãos, além da obsessão pela intimidade alheia que transparece, só é reveladora do modo como Lumet coloca, de certa forma, a autoridade, os criminosos e os cidadãos no mesmo plano de igualdade (no assalto, a simpática pandilha de Connery é, inclusive, muito bem recebida pelas “vítimas”!), outra forma de desconstruir os tradicionais quadros da moral da ordem pública e seu discurso oficial segregador de “bons” e “maus” (se a polícia escuta ilegítima e ilegalmente, o grau de censurabilidade sobre cidadãos que também o fazem desce uns níveis valentes).
E, mesmo quando feitas legalmente, o facto de a sua a validação se afigurar tão leviana e apressada (como as escutas que, no filme, são validadas por um juiz) constitui, novamente, motivo para essa desconstrução. Esta ideia de equivalência, de indiferenciação moral entre law e outlaw, que volta a ressoar na parte final do filme (quando o assalto e o “pós-assalto” são montados em paralelos, “paralelismo” que sinaliza, precisamente, essa ideia de equivalência ou paridade), não deixa de trazer à memória Fritz Lang (um pessimista ferrenho sobre a justiça e a bondade dos homens), em particular M (Matou, 1931), no qual a montagem paralela assume igualmente um protagonismo dramatúrgico intencional. Como tivemos oportunidade de escrever sobre o filme de Lang, “Note-se como os mendigos, esses improvisados mandatários contratados pelos mafiosos, dirigem uma caça ao homem paralela à da polícia (…) Este sistema paralelo, comandado pelos gangsters, estabelece, também, uma, digamos, «two-level authority» muito peculiar, em que o desenho urbano é, uma vez mais, decisivo. (…) «Em cima», à superfície, a sociedade organiza-se nos moldes tradicionais, segundo uma autoridade pública comum; mas «em baixo», no underground, desenvolve-se toda uma outra comunidade, perfeitamente à margem da lei e com uma estrutura autónoma. (…) Note-se, porém, em como a forma de uns (políticos e polícias) e outros (gangsters) planearem a resposta à situação é muitíssimo semelhante (o tipo de discurso, o ambiente noctívago pulverizado pelos cigarros, as salas de reuniões, etc.), o que é feito propositadamente por Fritz Lang, que, na montagem do filme, cruza, em paralelo, as duas cenas, confundido, inclusive, o espectador sobre a identidade dos dois grupos de personagens”.
Se, só por isto, por esta “visita de estudo” aos terrenos mais movediços da law and order, o filme é interessantíssimo, Lumet não deixa que esse aparato ofusque um outro, agora de carácter sócio-cultural, num cruzamento complexo de diferentes “mundos” cuja execução, dentro do mesmo filme, só aos grandes realizadores é possível (e já dissemos que o jovenzinho Cristopher Walken é um dos elementos da pandilha de Connery?). Por essa razão é que, em The Anderson Tapes, a América machista (Ingrid é puro objecto de posse e de disputa “financeira” entre dois homens), racista (um dos comparsas de Connery é vigiado pelas suas ligações aos Black Panther) e homofóbica está sempre latente, assim como a América do follow the dream (muito simbolicamente, o camião do grande assalto chama-se “Mayflower”, nome do barco que, no séc. XVII, partiu de Inglaterra para os EUA em descoberta do “New World”) e dos épicos roubos e suas conexões psicanalíticas. A este título, o filme estabelece, na pessoa de Connery (sex symbol por excelência), um excitante paralelismo entre o acto sexual e o assalto a bancos no que de mais íntimo – metaforicamente falando – os une: a ideia de penetração, de arrombamento (do… “cofre”), de explosão (fabulosos o monólogo de Connery e o do médico que se lhe segue). Este é, de resto, um filme profundamente erótico, com uma Dyan Cannon (Ingrid) de tirar a respiração a qualquer um – e a tirar a roupa várias vezes durante o filme, para nosso gáudio e, certamente, para o de Connery (que recebe um carinho muito especial depois de lhe oferecer um vestido…).
Num certo sentido, The Anderson Tapes é um filme que não existe, é um não-filme, visto que as tapes, as cassetes em que Connery é “apanhado” (quando em nenhuma delas era ele o alvo, ironia das ironias) são, no final do filme, destruídas, modo de ilustrar, mais do que o comportamento ilegal da autoridade (pela ilegitimidade das escutas), o seu comportamento imoral, “mascando” a vida privada dos indivíduos a seu bel-prazer e “deitando-a fora” quando a mesma já não lhes é útil. Porém, como, na verdade, The Anderson Tapes existe e é tangível – i.e., como as autoridades não “conseguiram”, ao contrário das escutas, destruir, apagar, o filme, o que diz bem do seu carácter subversivo, não perceptível num visionamento apressado –, as tapes constituem um registo histórico e um aviso às gerações vindouras para os perigos das sociedades da tecno-vigilância. O carácter premonitório do filme a que atrás fizemos referência liga-se, por isso, ao seu carácter igualmente “epistolar”: as “cassetes de Anderson”, então, como as “cartas de Anderson”, e nós como os seus correspondentes do futuro. Agora que recebemos o correio e confirmámos a encomenda, o que fazer? Entre outras possibilidades, certamente resistir e denunciar, como Assange ou Snowden, e filmar, como Laura Poitras [Citizenfour (2014].
The Anderson Tapes é exibido dia 26 de Março (quinta-feira), às 22h, no Cinema Passos Manuel, pela mão da Milímetro.