(…) o famoso phallus, longe de ser uma arma que se apossa de tudo ou um instrumento de dominação (…), é exatamente o contrário, a saber: aquilo que faz obstáculo e barra a fruição (jouissance) do corpo do Outro, sendo a fruição do órgão a única autorizada por este.
Jean Narboni
O Eu só discursa ferido.
Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso
As alegorias distópicas de Marco Ferreri seriam impensáveis se à iminência do apocalipse (da Espécie, do casal, da civilização) não se somasse, em dedutiva e retrospectiva implicação, uma experiência regressiva; estes dois tempos in extremis , este no man’s land onde a significação ainda não é possível e não mais é necessária conjugam-se implacavelmente como istmos de um mesmo canyon, progressivamente fissurado pela entropia e assombrado pela parte maldita: a sentença oracularmente niilista de Duras, “Que le monde aille à sa perte”, é a sua divisa. Mas Ferreri, este bufão sinistro, parece empenhar-se em complicar a cada filme esta equação “suficiente” entre regressão e aniquilação, entre um corpo no qual a palavra ainda é um dejeto entre outros e um outro onde esta converteu-se na ejaculação fatal, onde o significante excremencial se coagula: o que acontece quando estamos em férias (forçadas, é bom ressaltar; estamos em pleno Outubro, e o desemprego parece estar no horizonte), somos um casal, temos um bebe e refugiamo-nos numa bolha particularmente retráctil ao mundo, apartamento-mônada onde o tráfego (incessante, heteróclito) de pessoas e coisas permanece imantado por estes corpos coordenados por um exclusivo valor de uso – o lugar de um potlash-, onde as férias parecem ter liberado o Homem para um rendez-vous picaresco com o Paraíso perdido? Valérie e Gérard, nus e flutuantes, adotaram a economia libidinal do bebê, Pierrot, por quem permanecem aliciados, a quem estão anexados por uma liga natural e funcional (Roger Dadoun: Gérard carregava sua criança colada a si). Gérard, Valérie e o pequeno Pierrot são um só, e esta indistinção é o signo arque-típico da regressão: abolição das diferenças, supressão do princípio de individuação, acalento da unidade amniótica, onde se perdem e se implicam. Tudo o mais é acidente, inclusive a Origem: os próprios papéis parentais são abolidos- os papéis tout court: o bebê parece ter algumas mães, dentre as quais Gérard; e Valérie é sua mãe postiça, mas mantém com a real uma cumplicidade enervante aos olhos de Gérard, excluído num contra campo fulminante quando estão juntas. Pais e filhos, amantes e amigos, amantes e ex-amantes (Michel) parecem compartilhar de um mesmo corpo (o apartamento-bolha), e exercitar em torno deste núcleo duro e ressoante de In-diferença uma série de variações histriônicas, onde os pares de “idênticos” trocam máscaras entre si: Michel, Gérard e a nova namorada de Michel; Valérie,a ex de Gérard e a criança; a criança, Valérie (agora promovida a Madona adorada, acariciada com unção pelo bebê e pelo homem), a criança e Gérard nus na mesma cama; Valérie, Gérard e o retrato de Marilyn Monroe (obsessão iconicamente necrófila, como bem percebe Valérie). A cena em L’ultima Donna (A Última Mulher, 1976), é esta coalescente caixa ressoante onde pares, triplos e um solitário masturbador – Gérard, desconsoladamente segurando o troféu decaído da virilidade entre as mãos – constituem (constituem-se ) em uma quadrilha de trocas e de dons; mas esta variedade aparente de enlaces e colisões é, como nas variações barrocas, a trama engalanada que se cristaliza em torno do leitmotif único (igualmente refratado em dois, como a regressão e a aniquilação, a Espécie e o Espécime) da paternidade impossível e da maternidade ubíqua, eterna, imemorial.
Pois, como bem o disse Lacan, “o pénis não é o falo”; se Gérard empunha o pénis como um troféu, é para afirmá-lo irrisoriamente como o senhor de uma região parcial (genital), e não da totalidade do ser e da significação (o falo). Se falo há, este deve estar contido integralmente na taciturnidade de Valérie: a sua plenitude, como de todo Feminino, se preserva intacta na precisa medida de seu silêncio, muralhado raramente por acessos de indignação principesca: “Nenhum de vocês vale nada; vocês são todos uns merda”. Aqui, como em tantos contextos nobres, guardar silêncio é preservar em sua pujança plena o ser; este não se “gasta , perde, desperdiça” em linguagem. Em contraposição a isto, Gérard não pára de falar, e falar repetido (império do Mesmo, “trabalho” da pulsão de morte, entropia): a linguagem aqui não representa a suprassunção do corpo e do Logos em um signo glorioso, mas o índice inelutável de uma incapacidade de reconciliar corpo e Logos; é um sintoma (de carência, de impossibilidade, de castração). A castração final de L’ultimma dona é uma atualização ou assunção da parte de Gérard desta castração ontológica que acomete aquele ser (o Homem) cuja plenitude só se realiza como déficit (no falar, na mediação infinita, infinitamente decaída: a Queda). Quando Godard escreve que “Se eu tivesse a força, eu me calaria”, ele estatui todo um programa do malaise de Gérard, este “primeiro homem” (a casa edênica). Se Gérard tivesse a indenidade de ser e de significar de Valérie ou da criança, este não necessitaria desperdiçar-se em tantos e tão vertiginosos desvios, idas e vindas, circunvoluções espaciais e impasses temporais, perfazer esta coreografia patética de que o filme regista o ímpeto agonístico- os pontos de declive , com estes cortes implacavelmente sincopados, que interrompem a ação em seu ponto nevrálgico, deixando-nos com “estilhaços, rascunhos” de uma força contrariada pela impassibilidade estóica do mundo (estes planos “panorama”, até mesmo nos interiores, onde permanecemos no limiar distanciado das portas e das janelas, observadores clínicos da inútil pantomima de Gérard.). A Gérard é impossível descrever esta complicada coreografia sem acompanhá-la com uma auto-narração minuciosa, que se empenha essencialmente em descrever tudo o que lhe acontece. A linguagem, na sua boca, regrediu a um estágio mimético, em que esta tem por função identificar-se a tudo o que é ou aparece, e não definir/conceituar/explicar (distância da mediação). A linguagem aqui esposa e plasma, de forma consanguínea, a todo evento. Para Gérard , nada pode ser feito que não seja, em um mesmo movimento, dito: foder, comer, ser comido, acordar, dormir; as funções mais essenciais e supra-essenciais, interiores (insights, associações) como exteriores, o escatológico como o sublime (na paródia ao Adoratio da Virgem Maria, quando reverencia Valérie nua sobre a cama; na distorção irónica da “Madona com o menino” da primeira cena, quando a visão “Sacré coeur” do seio nu de Valérie amamentando a criança na creche é brutalmente interrompida pelo avanço do cão sobre a vidraça, e Valérie é obrigada a se refugiar nos braços do homem).
Os filmes de Marco Ferreri, rigorosamente clínicos, são obra de um entomologista, para quem a lente da câmara é como estas espátulas encarregadas nos laboratórios de recolher extratos de sangue e sémen- cortantes, secos como um rude corte de navalha
Ferreri inventa um modus vivendi onde a língua, até aqui nobremente consignada como o lugar do “ser adulto e consciente”, pode tornar-se, pelo contrário, o índice mais flagrante de infantilização: mas trata-se justamente de uma linguagem com tendências flagrantes ao mimetismo, à consagração da identificação “imediata indeterminada” entre ser e dizer. A vitalidade aerodinâmica do corpo autómato de Gérard não seria nada sem esta pontuação retórica, estas suspensões e precipitações de sintaxe, este acólito semântico: a linguagem tenta suprir uma ausência fundante, um Ab-grund; em termos dicotómicos, podemos pensar que o Homem, sendo um ser de linguagem (de separação), está sempre aquém ou distante do ser, entendido como Presença; daí as estripulias do cinema slapstick que o corpo de Dépardieu descreve, sua interminável tagarelice: ele nunca chegará lá; como prova, seus esforços, o cooper e o desgarre. E o feminino – recôndito e mudo embora, taciturno e reticente (como tantas vezes aqui)- permanece tanto ou mais presente, na medida em que se identifica intima e cariciosamente com a própria Origem da Presença (da vida). Esta utopia do Feminino como reserva inesgotável mente misteriosa de doação – dom de um mundo novo possível, conversão do Apocalipse em abertura de um novo/velho Éden cíclico, recomeço – suturam perversamente a fissura distópica dos melhores Ferreris: o final da mulher na praia com o bebe em Ciao Mascchio (1978); Piera e a mãe na praia, em Storia de Piera (1983); a maternidade anoréxica de Andrea em La grande bouffle (A Grande Farra, 1973), acolhendo em seu seio os burgueses moribundos para uma última tarte à creme; mais tematicamente, Dora, a última mulher de Il seme dell’uomo (1969), encarregada pelo cosmo restante de parir o primeiro filho do mundo que virá; e o que dizer desta possibilidade (de mundo) plenamente conservada enquanto tal na maternidade impossível (portanto, puramente possível, jamais atual) no Yerma que Ferreri filmou para a TV? O feminino é a figuração de uma utopia, a rigor de um estado de coisas irrealizável, e cuja nobreza advém justamente na/da conservação de sua irrealização: Yerma jamais terá filhos, e portanto será para sempre a Mãe deste conglomerado de filhos virtuais que abarrotam o fora de campo de seus filmes.
Se Gérard é um “estudo de caso”, ele não o é jamais no sentido de uma abordagem simbólica ou metafórica; pas de symbole no cinema de Ferreri. Se a psicanálise é invocada neste texto , é porque ela se distingue radicalmente da psicologia, na medida em que consiste em uma arte do simbólico, mas devidamente encarnado, somático. A Ferreri interessa o behaviourismo, a descrição metódica do comportamento dos personagens, já que o cinema é uma máquina de produzir e capturar efeitos, vibrações, gestos, jamais de pressupor ou inferir causalidades, imaginárias ou não. Tudo deve começar e terminar “pela imagem”, depositário maior e mais intensivo do Inconsciente: um corpo nu carcomido de sombra, um bebe que se lambuza, um voyeur casual no shopping, um cortejo de fábricas fumegantes ao longe; L’últimma Donna, como seus melhores filmes, sempre se constrói a partir de uma sequência de imagens- a cena, e não exatamente o plano, é o parâmetro aqui-, e a montagem abrupta tem justamente por fito destacar e fazer refulgir com violenta impertinência estas imagens, coágulos de pulsão e de energia. (as costuras de episódios desordenados que Aumont detecta na construção dos filmes, nunca devida e ordenadamente “bem cerzidos”), onde o humor de ironista swiftiano recolhe e apara o sangue abundante. O corte de Ferreri é implacável, ele não promete nenhuma complacência, não exerce nenhum efeito calculado de sedução, não flerta com nenhum histrionismo (deste se incumbem os personagens). A cada filme, os efeitos e o abominável décor devem ceder espaço ao espaço interior, mas este é impensável sem a algaravia do corpo visível, fenomenicamente pleno. A sua prosa é, como escrevia Günther Anders sobre as parábolas mais elípticas e taquigráficas de Kafka, a de um “cara de pau”: em L’ultimma dona, a ‘cara de pau’ consiste nesta alternância entre distância “distraída” (fazendo-se de, pelo menos) e proximidade adstringente, manifesta na contraposição entre planos generalíssimos, onde a alienação dos personagens é “conferida” com o auxílio da lente-telescópio; e estes planos achatados contra a câmara, onde os poros e a saliência dos traços empresta ao visual o impacto virulento de um shot háptico; ora distantes como visitantes de um planeta qualquer, ora na proximidade de uma violação, o ponto de vista dos observadores entomologistas é ambidestro: tão perto, tão longe. Em duas sequências, este dualismo da proximidade e da distância é utilizado por Ferreri com o propósito de manifestar “na carne do filme” a alienação de que Gérard é o verdadeiro, o único objeto: quando, do alto de seu prédio, contempla com indiscutível mal-estar a intimidade calorosa entre sua atual mulher e sua ex (plano médio “adstringente”),e o contracampo no-lo devolve isolado no refúgio de sua varanda. Ou no shopping, quando flerta com uma garota casual, e subitamente um plongée predatório nos apresenta o personagem “saindo de lado”, em uma retirada estratégica.
Este homem, quando confrontado com o mundo exterior, oferece sinais inequívocos de que nunca está ou está propriamente chez soi– à vontade no Mundo e diante do Outro, e precisa refugiar-se ora sob a logorréia interminável, ora sob os brinquedos da regressão (chupa chupeta, mama o seio de Valérie, come a papinha do bebe; o sangue no braço machucado, que obriga Valérie a chupar, em um pacto kleistiano improvisado): a desconstrução do mito da masculinidade, aqui como em Ciao Maschio, consiste em nos dar a ver o homem como o objecto (justamente alienado) de potências e conjunturas várias – o movimento feminista e o Mundo da Cultura, com o Museu de tudo, em Ciao Maschio; aqui, “dirigido”pelo papel paterno-materno, mas também pelo próprio pénis- que não é um falo-,e que desempenha um papel fetichista inequívoco; é sobre este frágil estrado, é empunhando este ceptro cambaleante que o personagem se firma: em torno de si, tudo (inclusive “ele”) se desloca e finalmente rui.
Jean Narboni escreve: “Esta fruição impossível do corpo do Outro (…) ela assombra, atormenta Gérard. Em uma palavra: ela lhe pesa. Não que ele seja um puro canalha: pelo contrário, ele adoraria compreender, mudar, poder ter acesso ao corpo desta outra, escondida, retirada, interdita.(…) ele acaba por captar que apenas a castração- e isto segundo um paradoxo aparente- vai lhe permitir ter acesso ao corpo de que ele só captura a aparência”. Castrar-se é chegar enfim a Valérie- e aqui reitera-se a “possibilidade pura do impossível” de Yerma-, é solapar o conjunto de mediações (de vozes, de papéis, de poderes) que os distanciam, que inexoravelmente alienam Gérard e a alienam dele. O pénis é um emblema dos poderes reactivos da Cultura; é a distância senhorial e a arrogância do esquadrinhamento de domínios, o carimbo e o selo. Para chegar à verdadeira soberania do Feminino, é preciso depor este pequeno usurpador, e por esta deposição expiar o patriarcado. O ato final da masculinidade de Gérard é o sintoma maior deste desespero da lucidez a que René Char aludia, quando o comparava à impossível tarefa de olhar frontal e diametralmente o sol.