A autenticidade de uma coisa é a suma de tudo o que desde a origem nela é transmissível, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico.
Walter Benjamin
A fotografia e o cinema são possivelmente as artes que mais próxima e fielmente podem atestar a existência de algo ou alguém já que cada imagem produzida pelo choque dos fotões com a película (ou os sensores digitais) garante que esse algo ou alguém esteve de facto defronte da objectiva e que a acção representada pela soma de imagens paradas que ganham movimento pela sua rápida sucessão reproduz num plano bidimensional aquilo que foi a acção que se desenrolou face à câmara. Este é o princípio de André Bazin ou Siegfried Kracauer: de que a câmara é um dispositivo de reprodução do real e que o grande cinema é aquele que preserva essa natureza ontológica do aparelho e seus procedimentos cinematográficos. Por isso mesmo não é surpreendente que as últimas duas décadas de cinema tenham sido preenchidas por obras que lidam de forma imediata e consciente com essa propriedade do cinema, a testemunhalidade (no sentido que são imagens que funcionam como testemunhas de acontecimento, épocas, costumes, eventos, identidades, comportamentos, estilos, ideias, etc.). Assim o cinema recente, especialmente aquele oriundo do experimentalismo e simetricamente do documentarismo, vem introduzindo de forma cada vez mais sistemática imagens de origem precedente à sua produção, isto é, imagens presentes em arquivos. Um caso particular deste recurso ao arquivo é o cinema de found footage no qual Göran Olsson vem trabalhando, nomeadamente em The Black Power Mixtape 1967-1975 (2011) e Concerning Violence (A Respeito da Violência, 2014).
Estou em crer que há uma questão que se impõe sempre que falamos de cinema de arquivo e que funciona aqui como chave para entrar neste filme (e em tantos mais), a saber: é idêntico apropriarmo-nos de um plano de Ford em The Searchers (A Desaparecida, 1956), de um filme caseiro da semana de férias nas Berlengas do tio Manel ou de uns bocados de película que comprei ao peso na feira da ladra? A resposta parece-me ser claramente negativa. Quando o artista se apropria da obra de outrem está também a apropriar-se do nome e do peso (académico, crítico, estético, … – numa expressão, da dimensão pública e cultural) desse outrem, assim incluir um plano belíssimo do cinema clássico americano ou incluir um plano (que também poderá ser belíssimo) do dito arquipélago atlântico não é equivalente pelo nome que paira sobre cada um desses pedaços. Isto é, há uma dimensão de referencialidade na escolha de um plano de Ford que não há com a escolha de um plano de autor anónimo ou desconhecido, esse peso é um que se faz sentir no objecto de colagem e como tal manifesta-se também no espectador (como numa pintura, um lata de sopa de tomate qualquer é substancialmente diferente de um lata de sopa de tomate da Campbell). Juntamente a esta matéria da referência (cinéfila) há outra, mais espinhosa, que passa por uma hierarquização inconsciente dos artistas. Entendo por isto que um realizador que usa Ford, capitaliza no seu filme sobre o poder estético, o nome e a elevação quasi-religiosa de Ford, ao passo que essa capitalização no caso do tio Manel é de outro nível (que passa também – ainda que de modo diverso – pela sua característica ritual), já que para todo o restante mundo o tio Manuel é um perfeito desconhecido. No entanto estabelece-se aqui um dilema, a saber, só o autor com estatuto se vê blindado (pelo menos de forma culturalmente intimidatória – e certamente também de forma jurídica) da apropriação da sua obra, deixando assim o outro autor (de menor monta ou esquecido) à mercê dos abutres da colagem fílmica?
Independentemente da resposta que se possa dar, fica a questão. No entanto há um outro aspecto (além desta da autoria) que não é de somenos, o da intimidade das imagens. A este respeito (e convenhamos que poderia escrever a intimidade das palavras ou dos sons ou dos aromas, ou das sensações, mas as imagens têm a tal propriedade testemunhal que evidencia de forma muito mais extrema qualquer ataque sobre a sua natureza… íntima) penso em particular naquilo que existe nelas que as pode levar ao acanhamento e/ou recolhimento, penso em particular em imagens que testemunhem um horror (qualquer que ele seja) e que por isso mesmo se queiram ausentes pela força do seu testemunho – Rithy Panh referia recentemente no seu filme l’Image Manquante (A Imagem Que Falta, 2013), provavelmente influência pela pena de Didi-Huberman no seu Images malgré tout, onde afirmava que mostrar uma imagem é permitir que esta se esqueça porque se há registo físico, se há testemunha material, deixa de ser necessária a memória.
No entanto não deixa também de ser verdade que certas memórias só existem porque dos eventos ficou em suporte material, uma imagem testemunhal (já que os contentores dessas memórias não sobreviveram para as poderem transmitir). O caso das quatro fotografias de Sonderkommando, as únicas imagens das câmaras de gás e do crematório de Auschwitz fotografadas durante a sua laboração, é um exemplo maior disso mesmo. Essas imagens, quatro apenas, tiradas pelos elementos do referido Sonderkommando (comando especial) composto por presos obrigados a trabalhar nas fornalhas do campo de concentração, foram tiradas clandestinamente (em risco de vida) por esses presos de forma muito incipiente (desfocadas, mal enquadradas – supõe-se que os próprios não tenham podido olhar pela objectiva quando capturavam as imagens devido ao risco de serem apanhados). Com vista a evidência aquilo que essas mesmas imagens escondem (uma mulher a ser levada para a câmara, vários corpos a serem incinerados), ao longo dos anos versões ampliadas, recortadas e aumentadas foram surgindo – naquilo que Benjamin via como um progresso para a análise das imagens. Sobre este tema Didi-Huberman tem uma posição diametralmente oposta, citando-o no referido Images malgré tout: “The mass of black that surrounds the sight of the cadavers and the pits, this mass where nothing is visible gives in reality a visual mark that is just as valuable as all the rest of the exposed surface. That mass where nothing is visible is the space of the gas chamber: the dark room into which one had to retreat, to step back, in order to give light to the work of the Sonderkommando outside, above the pyres. That mass of black gives us the situation itself, the space of possibility, the condition of existence of the photographs themselves”. Assim, o que Didi coloca em cima da mesa é a necessidade de preservar essa tal intimidade (não necessariamente uma que leve ao recolhimento, mas uma que preserve a natureza original do documento, da testemunha). Ou seja, para o filósofo o recorte e a ampliação funcionam como uma reescrita histórica, fazendo das imagens objectos onde o medo da sua produção e o risco de morte do fotógrafo são apagados. São por isso imagens seguras, descritivas, anti-dramáticas e como tal esquecíveis. Assim, no sentido de revelar, o historicismo garantiu o esquecimento, destruiu o que havia nelas de verdadeiro horror, tornou-as ilustrativas, banalizou-as.
Um terceiro aspecto a juntar à autoria e à intimidade passa necessariamente pela benjaminiana aura: ao contrário dos poetas dadá que nas suas “saladas de palavras” conseguiam, por meio de colagem de textos de outros, obras que destruíam a sua própria aura (por já conterem na sua natureza o estigma da reprodução), o realizador de colagens é um que parte da aura das imagens preexistentes e as capitaliza por variados mecanismos cinematográficos de modo a que a própria colagem encontre a sua aura de obra de arte, o seu (re)encontrado aqui e agora – que nos melhores casos se sobrepõe (ou melhor, se soma) à própria aura das imagens de partida. Ou seja, esta é a grande motivação do realizador de colagens fílmicas, o facto de se manter “reconhecível [a autenticidade], mesmo nas formas mais profanas do culto da beleza”, isto é, no arquivo não só se encontra um manancial de materiais autênticos, como se sabe de antemão que essa autenticidade que se busca é uma que não se esgota, mesmo nas suas formulações mais absurdas. Isto porque o conceito de autenticidade “nunca cessa de se projectar”. A juntar a este nível temos ainda a figuração do artista-coleccionador que participa do culto da autenticidade pela possessão dessas imagens de arquivo, garantindo assim uma renovada intensificação do poder ‘mágico’ do arquivo pela participação e cultivação dessas mesmas propriedades ‘mágicas’.
Posto tudo isto proponho então que se olhe para Concerning Violence através deste confluir de variáveis, a autoria das imagens, a sua intimidade e a aura que delas emana (o seu aqui e agora – isto é, tudo aquilo que as torna autênticas, o seu testemunho histórico material e sensível). Assim sendo não se pode deixar de ver no mais recente filme de Göran Olsson um certo esquematismo ilustrativo, a saber: em Concerning Violence o realizador compartimenta o ensaio de Frantz Fanon, Les Damnés de la Terre, sobre o efeito desumanizador do colonialismo em nove episódios, cada qual dedicado a uma região diferente de África nas suas lutas pela descolonização nos anos 60 e 70 do século passado (incluindo naturalmente territórios então portugueses como Angola, Moçambique e Guiné-Bissau). Para isto convoca a voz magnética de Lauryn Hill e o texto do filósofo da Martinica e elabora uma viagem pelos horrores da guerra e pela opressão dos povos europeus (tanto no período pré-revolucionário como nas formas tardias de neo-colonialismo). Pretende-se um retrato cru da luta, e uma alegoria daquilo que hoje ainda se mantém na exploração dos minérios e outras riquezas naturais africanas.
Estou em crer que Olsson, neste filme, consegue algo raro nestes projectos de colagem: preservar a referida intimidade das imagens obrigando-se apresentar cada sequência (as tais nove) com um contexto que inclui a posição histórica mas também a narrativa por detrás da captura de cada testemunho. Por outro lado, e exactamente por atingir o ponto anterior, perde-se a necessária voz autoral, isto é, apesar de ser necessário compreender e trabalhar as diferentes autorias das imagens preexistentes (e respeitá-las), é fundamental o apropriamento das mesmas, a sua doma – caso contrário cai-se no exercício ilustrativo de uma época ou de um conjunto de acontecimentos. Poder-se-ia então dizer que intimidade e autoria são variáveis inversamente proporcionais e que a arte do filme colagem está em saber encontrar o raiz dessa função e ao fazê-lo oferecer uma nova aura à aura de que se partia.
Fica me então uma dúvida, onde está Göran Olsson além da intenção? É que em boa verdade o realizador escuda-se naquilo que há de mais datado e reacionário do texto de Fanon – a violência como recurso único e último de reposta à opressão colonialista e a instigação da culpa branca – e naquilo que há de mais duro e criminoso nas imagens que recolheu – as vacas metralhadas de helicóptero a abrir o filme, ou o soldado estraçalhado no mato. Parece-me que o realizador sueco é incapaz (talvez só não o seja no gesto de inscrever as palavras na tela e de estruturar a obra em cenas – num recurso típico da vídeo-arte) de ultrapassar ou adicionar o que quer que seja aos seus materiais, e em vez de os elevar suporta-se neles. Não deixa no entanto de ser um documento importante para (re)pensar a nossa história actual (e recente), mas infelizmente pouco mais é que isso.