Em 1982, um filme colectivo intitulado Guanyin de gushi (In Our Time) de Chang Yi, Ko I-Chen, Tao Dechen e Edward Yang abria as portas a um admirável mundo novo. Numa Formosa ainda sob lei marcial, uma obra anunciava uma nova forma de fazer cinema, mas as mudanças operadas foram muito além das fronteiras da dita 7ª Arte e vieram a ter um papel determinante na própria história da ilha. Mais de 20 anos depois, surge um documentário que revisita o que ficou conhecido como “Novo Cinema Taiwanês”: os seus filmes, os seus autores e o seu legado. Guanyin de gushi – Taiwan xin dianying (Flowers of Taipei – Taiwan New Cinema, 2014) homenageia com o seu título essa obra pioneira. É uma evocação nostálgica de um cinema também ele nostálgico. Um dos filmes a ver na edição desde ano do IndieLisboa.
Chinlin Hsieh é uma produtora e programadora taiwanesa residente em França, que, talvez, por não viver onde nasceu, terá uma perspectiva única ao cruzar um olhar de fora e um olhar para dentro do Novo Cinema Taiwanês e o seu impacto. O documentário dela é de viagens, no espaço, no tempo e nos filmes. Ora está em Tóquio, vendo o hotel onde Hou Hsiao-hsien fica sempre que vai à cidade e onde uma cena de Qianxi manbo (Millennium Mambo, 2001) foi filmada, ora está em Paris ouvindo Olivier Assayas falar com Jean-Michel Frodon sobre se o cinema taiwanês é ou não chinês. Na Europa, na Ásia, e até América do Sul, Hsieh vai em busca de testemunhos e memórias. De como cineastas, críticos e programadores (entre as figuras que surgem no filme estão nomes como os chineses Wang Bing e Tian Zhuangzhuang, o japonês Kiyoshi Kurosawa, o tailandês Apichatpong Weerasethakul, o britânico Tony Rayns ou o italiano Marco Mueller) descobriram “essa coisa” do cinema taiwanês, de como certas obras os marcaram profundamente, e do que pensam da ressonância desse cinema para as suas próprias obras – e da reflexão que com ele fizeram sobre as suas próprias vidas. De Hirokazu Koreeda, cujo pai viveu em Taiwan durante o período colonial japonês, a Jia Zhangke, que olha já para o cinema taiwanês como uma forma de vida que passou. Curiosamente, a maioria dos entrevistados não interveio directamente no Novo Cinema Taiwanês (uma expressão que pode ser discutível) – a grande excepção é Hou Hsiao-hsien – e, por isso, o filme de Chinlin Hsieh é menos um filme sobre “como se passou” e mais um sobre como foi visto e como continuar a ecoar.
Guanyin de gushi – Taiwan xin dianyin é sobre a memória de um cinema mas é também um filme sobre filmes, que vive desses filmes. Talvez o mais belo ali seja mesmo a colecção de excertos de obras do Novo Cinema Taiwanês, dos títulos mais óbvios – por exemplo, Fenggui lai de ren (The Boys from Fengkuei, 1983) de Hou Hsiao-hsien ou Kongbu fenzi (The Terrorizers, 1986) de Edward Yang – a outros menos conhecidos do grande-público, como Wo zheyang guole yisheng (Kuei-Mei, a Woman, 1985) de Chang Yi] ou Xiangjiao tiantang (Banana Paradise, 1989), de Wang Tung. Nesses fragmentos vive a alma deste filme, e mesmo que sejam apenas pedaços de outros todos maiores eles são suficientes para entusiasmar e comover pois lembram-nos, em breves minutos, do extraordinário que associamos (e que amamos) ao cinema de Taiwan.
Nesses fragmentos vive a alma deste filme, e mesmo que sejam apenas pedaços de outros todos maiores eles são suficientes para entusiasmar e comover
E que Novo Cinema foi esse? Num regime autoritário em que a produção cinematográfica tinha até então sido bastante controlada, o Novo Cinema abriu brechas por onde entrou um mundo novo. Olhou-se a sociedade local como nunca até então, na sua polifonia, na sua luta pela sobrevivência, nas suas dúvidas, enfim, na sua complexidade e multiplicidade. Olhou-se os espaços e as gentes sem artifícios, a pureza dos gestos, a beleza do simples e o horror do indizível e do invisível. Olhou-se um território que mudava demasiado depressa, a alienação citadina, mas também o que ficava para trás, não apenas os campos mas a história, a história silenciada de traumas familiares, de traumas colectivos como o do Incidente 2-28 que Beiqing chengshi (A City of Sadness, 1989) de Hou Hsiao-hsien ousou contar quando o tema ainda era tabu. Em muitos aspectos, o Novo Cinema Taiwanês avançou lado a lado, e interligado, com o processo de democratização em Taiwan. Trouxe para os ecrãs, e para o debate público, eventos históricos e questões sociais. E pelo reconhecimento internacional que alcançou, em festivais como os de Veneza, afirmou Taiwan no mundo quando o mundo ignorava a ilha, deixando-a cada vez mais isolada diplomaticamente. Cada filme do Novo Cinema Taiwanês olhava para as especificidades da identidade taiwanesa – na sua relação com a sua terra, com as suas gentes, com as suas línguas, com a sua história, com os seus conflitos – e no seu questionamento dessa mesma identidade afirmava-a.
O Novo Cinema Taiwanês foi um cinema profundamente local mas que se tornou universal, visto, estudado e debatido um pouco por todo o lado. Capaz de provocar discussões ainda hoje sobre como se faz cinema num país – como mostram alguns dos testemunhos dos cineastas da China continental no documentário. No entanto, o Novo Cinema Taiwanês nunca foi um sucesso comercial, nem sequer internamente. Que fracassos de bilheteira de uma ilha do Pacífico sejam capazes de ter um impacto tão profundo e duradouro na história do cinema mundial talvez não seja surpreendente para muitos mas continua a ser impressionante.
Guanyin de gushi – Taiwan xin dianying é recomendável, sobretudo, para quem já conheça algo do Novo Cinema Taiwanês. Não é uma “introdução a” mas sim uma homenagem que prega aos convertidos. Falha ao não incluir os testemunhos de uma miríade de personalidades que estiveram directamente envolvidas no Novo Cinema, mas o que nos dá a ver é bom o suficiente para encher a alma – e deixar a vontade de rever ou descobrir alguns dos filmes lá destacados.
Guanyin de gushi – Taiwan xin dianying passa dia 23, às 21h30 na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema no âmbito da secção “Director’s Cut” do IndieLisboa.