Ricardo Gross e João Lameira continuam a cobertura do IndieLisboa, sobretudo através de documentários, alguns mais ou menos familiares, outros escabrosos.
Quand je ne dors pas (2014) de Tommy Weber
Escrevia no artigo anterior que a tónica da competição internacional até aqui estava no humor negro. Em Quando je dors pas, o humor talvez não se seja propriamente negro, só que tem o seu quê de absurdo. Não muito disfarçadamente inspirado na Nouvelle Vague mais livre e espirituosa (repare-se no preto-e-branco, nos encontros e desencontros, na leveza dos diálogos e situações), o filme vagueia com o seu protagonista – um candidato a Vincent Delerm – pela madrugada parisiense, por bares, festas, ruas desertas, até chegar à praia (onde não morre mas acaba, num intenso e extenso grande plano da cara do actor Aurélien Gabrielli, que canta a capella, com a ajuda de um sintetizador não-diegético). Pelo meio, o mesmo perseguiu raparigas bonitas, imaginou-se a cavalo, confraternizou com dealers simpáticos, betinhos agressivos e pais preocupados. É uma espécie de After Hours (Nova Iorque Fora de Horas, 1985) sem a maluquice, o gesso e a multidão furiosa, em que tudo corre da melhor maneira possível. Pode ser esse o maior defeito a apontar a Quando je dors pas: é demasiado confortável. (JL)
Quando je dors pas (Competição Internacional) terá nova exibição, dia 29 (hoje), às 18h00, no Cinema Ideal.
Im Keller (2014) de Ulrich Seidl
Ulrich Seidl gosta de chocar o espectador, de o provocar, de ver até onde pode ir e avançar mais um bocadinho. Normalmente, rejeito este tipo de cineastas, demasiado niilista (Michael Haneke) ou demasiado preso à violência gráfica (Gaspar Noé). Seidl, não. Mesmo quando abusa do espectador, não se consegue ficar contra ele. Como com o Síndrome de Estocolmo, quanto mais o espectador se vê prisioneiro da perfídia do realizador, mais se lhe entrega. Às tantas, o desconforto causado pelo filme é tal (inevitavelmente nas cenas sexuais), que os risinhos nervosos tomam conta da plateia, transformada num grupo de adolescentes quase histéricos. É uma experiência colectiva, desagradável, violenta, esgotante. Em Im Keller, sob o espectro da cave de um certo Josef Fritzl, Ulrich Seidl decidiu filmar aquilo que os austríacos escondem dentro (por baixo) das suas casas: monumentos ao nacional-socialismo, bebés dentro de caixas, o fastio burguês, antros de sado-masoquismo, máquinas de lavar. É a abismal alma humana a revelar-se inesgotável, inconcebível, inclassificável. Im Keller também é um filme humanista. Ou é tão cruel quanto os olhos do espectador (a liberdade mais terrível que um realizador pode dar). (JL)
Im Keller (Boca do Inferno) teve apenas uma exibição, mas tem estreia comercial marcada para dia 21 de Maio.
Une jeunesse allemande (2015) de Jean-Gabriel Périot
Se, na forma, Une jeunesse allemande acaba por ser um documentário didático sobre a transformação da vanguarda da juventude rebelde dos anos 60 nos grupos terroristas de extrema-esquerda dos anos 70 (no caso, o que ficou conhecido como Baader-Meinhof), encena-a com um cuidado bastante estimável. Usando apenas imagens de arquivo (à excepção da recriação de uma curta que ensina a fazer cocktails molotov) – os programas de televisão de e com Ulrike Meinhof, os filmes de Holger Meins (na Escola de Cinema alemã), noticiários da época -, Jean-Gabriel Périot humaniza os monstros, obriga o espectador a compreendê-los, a perceber o que os levou a actos cada vez mais sanguinários. A espaços, corre o risco de os desculpar e de demonizar os políticos da Alemanha democrática (o social-democrata Helmut Schmidt, por exemplo). De qualquer forma, o que interessa em Une jeunesse allemande é a dúvida. Ou melhor, a ideia de que aqueles “monstros” não são assim tão estranhos, podiam ser como nós, dada uma série de circunstâncias. É um projecto pantanoso – basta imaginar que o objecto do filme era a juventude alemã dos anos 30 e 40 -, porventura necessário. Até porque, quarenta anos depois, já é possível ter um olhar mais frio e razoavelmente distanciado sobre os acontecimentos. (JL)
Une jeunesse allemande (Competição Internacional) será reexibido dia 30 (amanhã), às 22h00, no Cinema Ideal.
Ela Volta na Quinta (2014) de André Novais Oliveira
A história do cinema está cheia de crónicas de uma separação e o filme de André Novais Oliveira podia ser apenas mais uma delas. Não há como afirmar isto sem deixar implícito o preconceito mas não estamos habituados a encontrar este grau de sofisticação no cinema contemporâneo e menos ainda no pouco cinema brasileiro que chega a Portugal. André Novais Oliveira meteu a sua família nuclear em Ela Volta na Quinta para contar uma história da qual não sabemos quais os graus de ficção e de realidade (reconstituída). E isso importa? Não. Ela Volta na Quinta, como qualquer filme, deve ser avaliado por aquilo que está no ecrã. Relegando para um plano secundário o pequeno senão de o filme apesar de falado em português (do Brasil, sotaque de Minas Gerais) nos obrigar muitas vezes a seguir a legendagem em inglês, talvez por captação deficiente na produção ou por condicionantes do som da sala, é de reconhecer que se trata de um objecto filmado com uma segurança excepcional, assente em planos fixos que jogam com o fora de campo com uma confiança fora do vulgar, e com uma utilização da música que revela grande maturidade também: escutamos de tudo, do samba de Paulinho da Viola ao jazz de Miles Davis, da torch song interpretada por Dinah Washington à tórrida soul brasileira de outros tempos. Um retrato de família com todo este cinema dentro pressupõe que os pais e irmão de André Novais Oliveira convivam há muito com a inclinação artística do jovem realizador. Existem pequenas quebras no contínuo naturalista, sobretudo por parte da mãe de André, que só enriquecem a matéria ficcional. André Novais Oliveira ainda acabará apodado de Kiarostami mineiro. Tomem nota. (RG)
Ela Volta na Quinta (Competição Internacional) voltará a ser exibido dia 2 de Maio (sábado), às 22h00, no Cinema Ideal.
Gipsofila (2015) de Margarida Leitão
Margarida Leitão filma-se a si mesma e à sua avó no que é sobretudo um home movie, um registo para memória futura, familiar. O espectador, nomeadamente em algumas cenas mais íntimas, em que as “personagens” revelam demasiado, sente-se um intruso, sente estar a mais. Noutros momentos, sente talvez o tédio de quem lhe mostra as fotografias de umas férias ou de um recém-nascido que não conheceu ou não viu. A combinação não é exactamente feliz. (JL)
Gipsofila (Competição Nacional) terá nova exibição dia 2 de Maio (sábado), às 15h00, na Culturgest.
A Toca do Lobo (2015) de Catarina Mourão
Disse-se que se Gipsofila era sobre avó de Margarida Leitão, A Toca do Lobo era sobre o avô de Catarina Mourão, o escritor Tomaz de Figueiredo. Só superficialmente é assim (aliás, o problema de Gipsofila é ser quase só isso). A Toca do Lobo é mais sobre a mãe de Mourão, a verdadeira protagonista do filme, que a cineasta obriga a lidar com a ausência do pai, o seu fantasma. Nisso, é muito bonito, como um presente de uma filha para a mãe. No entanto, A Toca do Lobo guarda outros mistérios, na medida em que qualquer ser humano é um enigma – o do tio preso pela PIDE, o da tia que não fala à mãe vai para trinta anos, o da avó, a figura mais elusiva. A investigação levada a cabo por Catarina Mourão nunca chega a resolver nenhum, nem poderia fazê-lo, mas o espectador acompanha a “detective” com prazer crescente, enfeitiçado pelos segredos, ficções e mal-entendidos que acompanham a história daquela família. Família, essa, que não é propriamente como todas as outras: nem o mais imaginativo ficcionista se lembraria de algumas situações e desfechos. Por vias completamente diferentes das de Seidl, Catarina Mourão apresenta também um brilhante estudo sobre a alma e a vida humanas. (JL)
A Toca do Lobo (Competição Nacional) será reexibido dia 30 (amanhã), às 16h30, na Culturgest.