Primeiro texto da cobertura de Ricardo Gross e João Lameira do IndieLisboa 2015. Ante-estreias, filmes da competição e o programa Jan Soldat. As desilusões, as surpresas e os filmes assim-assim.
While We’re Young (2014) de Noah Baumbach
Ninguém, a não ser um cínico, pode assistir à vulgarização de um realizador que chegou a mostrar qualidades de cineasta, com um sentimento que não seja da ordem do pesar. Noah Baumbach vinha dessa afectação estilística que o marketing classificou de homenagem ao cinema da nouvelle vague, que era Frances Ha (2012), e dá-nos agora um outro olhar, em tons de mais óbvia comédia e a cores, sobre o mesmo universo hipster nova-iorquino, aqui observado por um casal de intelectuais quarentões (Naomi Watts e Ben Stiller) ligados ao cinema documental. Muito sinceramente, ao que este While We’re Young se assemelha é a um subproduto de Woody Allen, ainda mais “sub” que exemplos próximos com os quais Allen nos tem brindado com assinalável regularidade. A superficialidade dos retratos raras vezes motiva um sorriso (mas há sempre quem ria), e o facto de Ben Stiller não ser neste filme diferente do que tantas vezes mostra em produtos indigentes para alimentar a grelha do cinema por cabo, diz bem daquilo que o filme é e não é. (RG)
While We’re Young (Sessões Especiais) teve apenas uma exibição, mas irá estrear-se Junho no circuito comercial.
The Duke of Burgundy (2014) de Peter Strickland
E de repente sentimo-nos transportados para uma sessão do “Fantas” dos anos 90 do século passado (foi a primeira e única vez que lá estive). O cinema fantástico e de terror é o mais sobrevalorizado. Claro que os cultores do género, dos mais fiéis dentro do público cinéfilo, dirão o contrário. The Duke of Burgundy de Peter Strickland não contribuirá para aproximar os opostos. A longa do britânico, que conta uma história de dominação e subjugação psicológicas no feminino, tem vários tiques gráficos e de criação de atmosfera que vemos sobretudo no cinema filmado por mulheres. Tudo muito sugerido, e sugerido, e sugerido, como se o filme funcionasse como crónica da relação que uma vez estabelecida não sofrerá qualquer evolução, acrescido do conjunto de metáforas que se ligam à entomologia. As borboletas catalogadas servem os delírios pictóricos de Strickland, bem como a banda-sonora pop delicodoce ajuda a verter mel sobre a claustrofobia da narrativa. (RG)
The Duke of Burgundy (Boca do Inferno) voltará a ser exibido dia 29 de Abril (quarta-feira), à meia-noite, no Cinema Ideal.
White Bird in a Blizzard (2014) de Gregg Araki
A julgar apenas pelos filmes de Gregg Araki que tive oportunidade de ver – este White Bird in a Blizzard e Mysterious Skin (2004) -, o realizador norte-americano resolve os traumas dos seus protagonistas, resultado de momentos de incrível violência, em sequências atmosféricas e dolentes, ao som da música apaziguadora e reconfortante de Robin Guthrie e Harold Budd. Há algo de perverso neste embelezamento, como se o horror fosse um prazer inefável. No entanto, chocar o espectador nunca parece ser o objectivo, como noutras obras que exploram temas do género (a pedofilia, o assassínio), antes induzi-lo à aceitação. A força do cinema de Araki reside nesse ponto e no entorpecimento do espectador. A nostalgia pelos anos 80, muito semelhante à de Xavier Dolan – o mesmo gosto pelo ralenti de vídeo de música, pelas cores berrantes, pela recriação minuciosa – ajuda a tornar ainda mais leve aquilo que supostamente deveria ser pesado. Em White Bird in a Blizzard, confirma-se ainda o jeito de Araki para a escolha e direcção de actores: Christopher Meloni, Eva Green e Shailene Woodley são óptimos, para além da galeria de secundários, que inclui alguns nomes surpreendentes, caso de Sheryl Lee num papel o mais afastado possível da sua Laura Palmer. (JL)
White Bird in a Blizzard (Boca do Inferno) teve apenas uma exibição, estando prevista a estreia comercial para Maio.
Aqui, em Lisboa (2015) de vários autores
Que programador não gostaria de produzir um conjunto de filmes realizados por autores que o seu festival premiara e outros com os quais o certame criara algum tipo de cumplicidade? O IndieLisboa teve possibilidade de atravessar o espelho do lado da divulgação para o da encomenda e produção de quatro curtas-metragens dirigidas por Denis Côté (Canadá), Dominga Sotomayor (Colômbia), Gabriel Abrantes (Portugal) e Marie Losier (França). Não existe qualquer unidade entre elas, mas também não era isso que se lhes exigia. Sotomayor abre a sessão de Aqui, em Lisboa com uma narrativa ambientada nas duas margens do Tejo que não dá a conhecer a sua razão de existir. Côté recolheu ideias filmadas que organiza de uma forma que sugere arbitrariedade e mais nada. Abrantes é o caso mais extremo do capricho apenas pelo capricho. Uma tontearia que merece ser votada ao esquecimento presente e futuro. Losier esteve-se nas tintas para mostrar Lisboa reconhecível, filmando uma fantasmagoria gay em cenário diurno e nocturno, bem secundada por um tema de Alan Vega. Podia integrar outra qualquer encomenda mas em comparação sobressai da pobreza dos demais exemplos. (RG)
Aqui, em Lisboa (Sessões Especiais) não voltará a ser exibido durante o IndieLisboa, mas deverá estrear-se no circuito comercial em breve.
Listen Up Philip (2014) de Alex Ross Perry
Alex Ross Perry não tinha deixado grande impressão com o anterior The Color Wheel (2011), presente na Competição Internacional do IndieLisboa 2012, pelo que não se esperava um filme tão forte como Listen Up Philip. Se faz lembrar muito o cinema de Wes Anderson e Noah Baumbach nas personagens palavrosas e neuróticas, na câmara nervosa e intensa, o de Ross Perry atinge um negrume do qual o texano jamais esteve perto e o nova-iorquino aflorou nas suas cartas de ressentimento aos pais – The Squid and the Whale (A Lula e a Baleia, 2005) e Margot at the Wedding (Margot e o Casamento, 2007) – mas de que se tem afastado ultimamente. Aliás, Alex Ross Perry é muito mais cruel do que qualquer dos outros dois cineastas e a desesperança envolve o seu filme, sem haver remissão para o escritor em ascensão de Jason Schwartzman nem para o escritor gasto de Jonathan Pryce (numa óbvia aproximação a Philip Roth). O espectador vai aguardando por um momento revelador, libertador, mas as personagens vão-se afundado nas suas próprias idiossincrasias. Não é um espectáculo bonito de se ver. Como filme, resulta bastante bem. (JL)
Listen Up Philip (Competição Internacional) não terá mais exibições.
Koza (2015) de Ivan Ostrochovsky
Ao início, Koza ameaça ser mais um daqueles espectáculos de miséria que tornam o seu objecto num simples joguete da vontade dos realizadores, um espécime a estudar na sua continuada degradação. Para mais, tendo o pugilista Peter Baláz (presente nos Jogos Olímpicos de 1996 e actualmente nas ruas da amargura) a interpretar uma versão de si mesmo, podia temer-se mais um exemplo entediante do famoso híbrido (“género” entre a ficção e o documental). Contudo, vai-se descobrindo que Koza (cabra, a alcunha de Baláz) é sobretudo uma comédia negra, da qual o realizador Ivan Ostrochovsky retira situações de ridículo e absurdo e até alguma ternura – na relação entre o pugilista e o seu “amigo”, às vezes abusivo, outras protector. Ou seja, Koza é ficção pura e dura, tendo por trás um cineasta capaz de manipular todos os elementos do seus filme com mestria, acabando por se revelar uma obra bastante agradável. (JL)
Koza (Competição Internacional) voltará a ser exibido dia 27 de Abril (hoje), às 22h00, no Cinema Ideal.
Güeros (2014) de Alonso Ruiz Palacios
As brincadeiras na montagem, na realização, nos diálogos, no som de Gueros parecem por vezes chico-espertice de Alonso Ruiz Palacios para agraciar o espectador (não estão propriamente ao serviço do filme). Este pode sentir-se mais ou menos próximo do estilo, ou talvez até assoberbado pelo bombardeamento audiovisual constante nalgumas alturas. De qualquer modo, mesmo que fique de pé atrás, é complicado não se entregar noutros momentos do filme, em que a comédia absurda resulta realmente, desculpando até os falhanços como interessantes. Apesar dessa boa vontade conquistada pelo realizador, é complicado classificar Güeros como muito mais do que simpático. Por esta amostra dos filmes na Competição Internacional, vai-se sentido uma propensão para o humor negro que, se não é necessariamente refrescante ou salvífica, impede a nefasta solenidade que se abate por tantas primeira obras a tentar ser “importantes”. (JL)
Güeros (Competição Internacional) voltará a ser exibido dia 28 de Abril (amanhã), às 18h00, no Cinema Ideal.
The Possibilities Are Endless (2014) de Edward Lovelace e James Hall
Quem esperava um documentário “normal” sobre os AVCs que iam destruindo Edwyn Collins, o escocês responsável pelos brilhantes Orange Juice, meia-dúzia de excelentes álbuns a solo e um dos maiores êxitos dos anos 90 (A Girl Like You), sairá defraudado. Admito que partirá daí o meu desgosto por The Possibilties Are Endless (a única frase que Collins conseguia dizer quando acordou do coma, um verso de Some Kinda Love dos Velvet Underground). No entanto, a decisão de representar as dificuldades de raciocínio e fala, a lenta recuperação através de imagens de bilhete postal da costa escocesa e quejandos ao som de música bonitinha e solene é de muito mau gosto e quase aniquila o filme. Salvam-se os protagonistas Collins e a mulher Grace Maxwell, que primeiro ouvimos em off e depois vão tomando (o seu) corpo. Da mesma maneira que Edwyn Collins recuperou algo do que era antes dos acidentes vasculares, o filme vai melhorando a pouco e pouco, mas a transformação nunca é completa. Culpa dos realizadores Edward Lovelace e James Hall, que tinham material substancial nas mãos. (JL)
The Possibilities Are Endless (Indiemusic) teve apenas uma exibição.
Programa Jan Soldat, parte 1
Bastaria este programa 1 (de três) da retrospectiva parcial que o IndieLisboa dedica a Jan Soldat (n. 1984) para fazer dele uma das atracções dominantes na edição deste ano. Este primeiro conjunto de filmes basta para perceber que para lá dos fétiches sexuais, aquilo que o cinema documental de Soldat filma são histórias de amor. A ternura é o enquadramento de situações que muitos de nós tomarão por desviantes, e o que nos faz empatizar para lá dos cabedais, algemas, chibatas, látex e genitais no ecrã. O que Jan Soldat filma não procura causar titilação de espécie alguma, pelo que o território do porno não é para ali chamado. Os corpos nus têm inscritas histórias individuais e nos filmes de Jan Soldat também se ouvem histórias contadas por gente de carne e osso. Histórias de amor, de companheirismo e dedicação. Apesar do elevado grau de exposição física, o cinema de Soldat caracteriza-se tanto por aquilo que se vê como pelo que ele decide não mostrar. É cinema de montagem. Justifica-se uma última chamada de atenção para o trabalho de um realizador (um faz tudo, na verdade) que a usa de forma tão pessoal. A montagem como questão moral. (RG)
Jan Soldat 1: Rein / Raus (In / Out, 2010); Wielandstrasse 20, 3.0G Links (2012); Ein Wochenende in Deutschland (A Weekend in Germany, 2012); Endlich Urlaub (Vacation Finally, 2010); Die Sechste Jahreszeit (The Sixth Season, 2014); Beziehungsweise (Respectively, 2013).