Muitas são as histórias do cinema: as que nos contam as aventuras dos seus heróis e as que nos recordam as falências de quem caiu no esquecimento das derrotas. Por vezes, a poeira do tempo cobre, injustamente, os mais audazes, os que mais se distanciaram dos caminhos mais seguros e rentáveis, aventurando-se por terras e mares nunca antes explorados. Por vezes, até os mais generosos e perspicazes, que viram no cinema não apenas uma diversão para analfabetos mas um meio pedagógico para a paz entre os povos, sucumbiram à cegueira de quem considera o cinema só na sua vertente comercial e espectacular. Na verdade, foi Albert Kahn (1860-1940), banqueiro e filantropo de origem alsaciana, que atribuiu à imagem fixa e em movimento um papel ambicioso e inédito na sua época: o de inventariar e conservar a memória de um mundo em vias de extinção, registando o carácter único do ser humano além das suas diversas manifestações sociais e culturais. Estes foram os principais objectivos dos Archives de la Planète, projecto utópico com uma vincada vocação enciclopédica, cuja primeira expedição oficial teve início em 1912 graças à índole visionária do seu promotor, Albert Kahn, o qual financiou todas as missões científicas até 1931, ano em que foi interrompido o trabalho de documentação e inventariação das imagens do planeta.

Os Archives de la Planète são constituídos por 72000 placas de autochromes (a maioria são imagens fotográficas a cores de 9x12cm e poucas de 13x18cm), 4000 placas estereoscópicas em preto e branco e, aproximadamente, 183000 metros de imagens em movimento em película de nitrato 35 mm, equivalente a cerca de 100 horas de projecção. O material foi realizado em 48 países diferentes por 15 operadores, recrutados e instruídos pelo geógrafo Jean Brunhes (1869-1930) e postos sob a autoridade do responsável de laboratório, o fotógrafo e químico August Léon (1857-1942). Todos os documentos iconográficos eram identificados segundo a mesma regra: com as indicações do lugar, da data e do tema das filmagens. De facto, são estes os dados com que se abre o conjunto de rodagens reunidas com o título Le Bretagne en couleurs en 1929, cujo genérico inicial se reduz somente à indicação dos topónimos em que foram efectuadas as rodagens (na região da Bretanha, no específico em Locronan e Concarneau) e ao facto que as filmagens constituem uns dos “ensaios de cinematografia a cores naturais” dos Archives de la Planète. Por cores naturais entende-se processos analógicos de reprodução cromática que usam sistemas aditivos capazes de obter uma imagem a cores mediante automatismos fotográficos sem o uso de tinturas à mão ou viragem da película em preto e branco. Neste caso específico, trata-se de um processo aditivo de tricromia chamado Keller-Dorian, procedente da técnica fotográfica do autochrome, inventada e comercializada pelos Lumière a partir de 1907 e largamente utilizada, como já constatámos anteriormente, para a realização dos documentos fotográficos dos arquivos de Albert Kahn. Este processo lenticular utilizava películas em nitrato de celulose 35 mm em preto e branco, constituindo uma breve mas importante parênteses experimental na produção cinematográfica dos Archives de la Planète. De resto, tal procedimento foi utilizado só entre 1928 e 1929 por Camille Sauvageot (1889-1961) e Roger Dumas (1891-1972), produzindo no total apenas 45 minutos de material a cores. Embora tais experiências constituam uma excepção na produção kahniana, Le Bretagne en couleurs en 1929 representa um caso emblemático no que diz respeito à utilização da cor e à sua função na restituição da realidade representada. Com efeito, as cores de Sauvageot e Dumas, longe de exibirem e exasperarem a espectaculosidade cromática e o carácter exótico próprio de muitas das películas pintadas do cinematógrafo, cuja intenção residia na vontade de atrair o espectador mediante efeitos maravilhosos e inesperados, oferecem uma maior verosimilhança às imagens cinematográficas como se estas, finalmente, conseguissem re(a)presentar fielmente o mundo assim como o ser humano o percepciona, acrescentando ao movimento as cores.
Sauvageot, ao longo da sua colaboração com Albert Kahn, conciliou, seguindo os preceitos de Brunhes, a prática fotográfica com o registo cinematográfico a fim de incrementar a compreensão e o conhecimento da humanidade acerca do mundo. Na verdade, para os Archives de la Planète foram utilizados os dispositivos tecnologicamente mais avançados da época para a criação de um verdadeiro arquivo visual, isto é, um inventário sistemático de imagens que favorecessem a catalogação e a transmissão de informações acerca do mundo, tentando documentar o planeta de modo autêntico e verídico. Por outras palavras, este projecto, utópico e enciclopédico pela abrangência da sua missão classificadora e mnemónica, considerava a imagem fotomecânica um instrumento fundamental para a recolha de documentos visuais, sobretudo, no seio da nascente geografia humana – principal alicerce teórico-filosófico do projecto kahniano –, cujo carácter científico era garantido pelo automatismo químico do processo fotográfico e cinematográfico, ao contrário da interpretação e mediação do geógrafo o qual costumava, até então, realizar à mão os esboços ou desenhos representantes da realidade observada.
Archives de la Planète são verdadeiras investigações científicas, cuja missão é a de observar e documentar a acção do ser humano e as suas repercussões sobre a Natureza
Explica-se, portanto, desta forma a utilização maciça dos autochromes, enquanto técnica fotográfica capaz de duplicar o mundo a cores, ou dos filmes, sendo estes um meio fidedigno na reprodução “[d]o ritmo da vida”. Com efeito, o automatismo da nova imagem fotoquímica, pela sua natureza indexical, garantia o carácter de documento ao ponto de ser considerada não apenas como um instrumento de ciência, mas como a própria essência do método científico enquanto meio capaz de registar um fenómeno para o observar e estudar a posteriori. O olho humano foi substituído pelo olho mecânico, vindo a resolver, ou pelo menos, tentando ultrapassar um dos maiores problemas epistemológicos da ciência do século XIX, isto é, a crise da subjectividade induzida pela pesquisa e procura da objectividade científica. Além disso, esta crença absoluta tinha tudo a ver com a convicção própria do pensamento positivista da época, segundo o qual o dispositivo museal e arquivístico, seja qual for o medium utilizado, era o único que assegurava a recolha e a documentação das actividades e das características dos diversos povos, ilustrando e classificando todo o planeta como se fosse um inventário exaustivo do conhecimento humano.
A vocação científica, o carácter analítico e a finalidade descritiva subjacentes ao projecto de Albert Kahn manifestam-se de forma evidente na maneira como as filmagens são realizadas e organizadas. Em Le Bretagne en couleurs en 1929, por exemplo, a concatenação das vistas responde a uma lógica descritiva, cuja intenção consiste na amostragem de um determinado espaço e da relação que o ser humano instaura com ele. O filme caracteriza-se por uma sucessão de vistas sem nenhuma lógica sequencial forte, embora o filme apresente uma tentativa de construção narrativa, sobretudo no que concerne à lógica do movimento, nomeadamente, na segunda parte do filme quando a câmara de filmar segue de forma coerente de um plano para o plano seguinte a direcção dos navios. A construção de Le Bretagne en couleurs en 1929 é gerida por um impulso cumulativo graças ao qual um mesmo espaço é descrito e ilustrado mediante vários enquadramentos que vão, geralmente, do plano geral ao plano de meio conjunto, segundo uma lógica explorativa ausente de qualquer intento narrativo, sendo a sua finalidade a de oferecer ao olhar informações sempre mais precisas acerca do espaço representado. A este propósito, é emblemático o início do filme em que encontramos várias vistas do centro da vila de Locronan, aproximando-nos, progressivamente, da periferia ao centro mediante enquadramentos sempre mais detalhados até chegar à panorâmica sobre a praça principal. Deste modo, o olhar traça um itinerário bem definido e marcado que, mediante a sucessão de vistas animadas sempre mais aproximadas, descrevem a paisagem, o habitat, as actividades dos homens e das mulheres, as festas e as práticas religiosas de forma bastante pormenorizada. De facto, Le Bretagne en couleurs en 1929 pode ser considerado tanto um documento geográfico acerca do meio ambiente, da vida quotidiana, da descrição dos meios de transporte – veja-se o cavalo e o automóvel no mesmo enquadramento na praça de Locronan –, quanto um documento sócio-económico sobre as actividades laborais como a da pesca do atum em Concarneau ou a romaria e o rito funerário em Locronan.
Por esta razão, é legítimo considerar as rodagens de Sauvageot e Dumas na Bretanha como um documento histórico, cujo interesse não consiste na apresentação de um acontecimento curioso ou institucionalmente relevante, tal como acontecia com a cinematografia-atração dos primeiros tempos, mas na re(a)presentação de eventos quotidianos gravados sem o auxílio de efeitos visuais ou diegéticos, focando a atenção nas acções dos seres humanos de forma rigorosa e objectiva mediante a acumulação de quadros e vistas muitas vezes desprovidos de uma lógica de montagem finalizada à narração. Com efeito, raramente os filmes dos Archives de la Planète tinham uma montagem definida e planeada a priori, ou seja, um desenvolvimento diegético coerente ou próximo, por exemplo, daquele da gramática do cinema institucional, já que a sua linguagem não era caracterizada por intenções estético-narrativas, mas principalmente por finalidades geográfico-científicas. Na verdade, o material bruto das rodagens kahnianas baseia-se no mero acto de observação da realidade tendo cuidado, sobretudo, na organização do enquadramento segundo os elementos espaciais presentes no seu interior; no contínuo retorno a motivos anteriormente mostrados, repetindo elementos para melhor visualizar e observar os espaços filmados; na realização e alternância de planos fixos e panorâmicas, cujo objectivo reside na vontade de descrever o meio ambiente e a relação do ser humano que o habita tal como acontece, por exemplo, na segunda parte do filme quando sucedem às breves panorâmicas sobre navios os quadros fixos com o cais e os homens à beira mar.
As filmagens de Sauvageot e Dumas representam um caso emblemático no arquivo kahniano, visto que apresentam os sujeitos fundamentais próprios dos interesses geográficos que o animam: a paisagem urbana e rural; as actividades campestres e marítimas nas suas dimensões quotidianas, tendo, porém, uma atitude diversa daquela dos filmes da cinematografia-atracção para os quais contavam só mostrar o pitoresco e o extraordinário de terras e povos longínquos. Em suma, as vistas e os quadros dos Arquives de la Planète nunca mostram o exotismo ou a espectaculosidade de desertos e florestas incontaminadas, já que não tencionavam exibir curiosidades procedentes de terras estranhas e ainda inexploradas, mas são verdadeiras investigações científicas, cuja missão é a de observar e documentar a acção do ser humano e as suas repercussões sobre a Natureza, combinando o desejo de ver e de dar a ver o mundo na sua totalidade, mundo este que nunca foi tão pequeno ao ponto de caber numa sala de projecção.