Eu sou de meu amado, e ele me tem afeição.
Vem, ó amado meu, saiamos nós ao campo, passemos as noites nas aldeias.
Madruguemos para ir às vinhas, vejamos se florescem as vides, se se abre o agraço, se já brotam as romeiras: ali te darei meu grande amor.
Os Dudaim dão cheiro, e a nossas portas há toda sorte de excelentes frutos, novos e velhos: ó amado meu, eu os guardei para ti.
nos Cantares de Salomão da Bíblia Sagrada, Capítulo VII
É difícil escrever sobre um filme tão complexo como Once Upon a Time in America (Era Uma Vez na América, 1984), cuja ambiguidade e riqueza não se limita à dúvida sobre ser tudo um sonho de ópio mas (e mais importante) é efeito do seu grande alcance histórico (que, para apreender totalmente requereria meses de passeios entre bibliotecas e ruas em Nova Iorque; ou anos, que foi quanto demorou Leone em pesquisas, entrevistas e no desenvolvimento do filme) e da sua relação com o tempo e com a memória. Com o passado. E se esta questão do passado é capital em Leone já a partir de Per Qualche Dollaro in Più (Por Mais Alguns Dólares, 1965), o que ele faz com ela só se torna extraordinário e toma outros contornos em Giù la Testa (Aguenta-te, Canalha!, 1971), único filme da obra de Leone que me parece tão complexo como Once Upon a Time in America. Não quero com isto dizer que não haja cenas espantosas espalhadas pelos filmes anteriores, que há – e elas tornavam-se mais recorrentes a cada filme que o italiano fazia -, mas os dois últimos sempre me pareceram os que mais mistérios ocultavam. E é mesmo o filme passado no México, que muito dificilmente é um western, o meu preferido. É também dos escombros de Giù la Testa que Leone constrói America e a descrição do passado de Noodles e Max pode muito bem ser o que ficou por dizer e por explorar do passado de John Mallory na Irlanda, no seio das desilusões com o IRA, com a revolução e com quem lhe era mais próximo.
Em Giù la Testa, os flashbacks tão caros ao realizador deixam de ser um efeito e passam a ser uma construção. Era uma das coisas mal resolvidas de Once Upon a Time in the West (Aconteceu no Oeste, 1968), por exemplo. Como disse Sergio Leone a Noël Simsolo: “(…) toda a estrutura de Once Upon a Time in America é fundada no tempo. E há muitos movimentos de câmara em que nós não notamos. Porque não usei a câmara para descrever uma cidade, uma rua ou um sítio. A câmara só se move enquanto segue uma personagem. O seu movimento acompanha o movimento de um homem num espaço, o que não é nada mais senão o tempo. E é necessariamente menos espectacular porque eu uso a técnica para mostrar sentimentos e não como um meio de descobrir um mundo, uma história ou um universo, como aconteceu no caso de Once Upon a Time in the West. Aí, quando a grua sobe, é para mostrar uma cidade que foi criada. Aqui, a cidade já lá está. Não precisamos de a mostrar também.” Tenho a certeza que há um grande fosso entre os primeiros e os últimos filmes de Leone, pouco discutido, e que desconfio dever-se a estes serem filmes de personagens e aqueles filmes de ícones. Acho que é a principal razão porque agora prefiro os westerns spaguetti de Sollima e alguns de Corbucci aos de Leone. De resto, tive que ver America quatro vezes para reparar que aquele momento em que Moe atende o telefone, fecha o bar e nos é revelado que fala com Noodles, é feito num só plano, longo. O plano de West de que fala Leone, muito semelhante, e em que nos é mostrada a cidade, por exemplo, é bem mais denunciado; como quase tudo, nesse e nos filmes anteriores.
Once Upon a Time in America. Sonho de uma vida e hino ao cinema, canto de cisne de quem tanto amou os dois, é também um grande fresco sobre as turbulentas primeiras décadas do século passado, mesmo que do ponto de vista duma única personagem, o Noodles de Robert De Niro, o que passou tantos anos a ir cedo para a cama. Desses anos, que se seguem à trágica e fracturante chamada telefónica que ecoa nos fundos da mente injectada de ópio de Noodles, sabemos apenas isso, como dos quinze na prisão sabemos apenas terem sido passados a ler os Cantares de Salomão, o “Cântico de Cânticos, que é de Salomão”, e a pensar na sua Deborah e no “Noodles, I splipped” que Dominic lhe diz, antes de morrer – “just before he died”. Servisse-lhe isso de lição e talvez pudesse passar o resto dos dias ao lado dela e a tragédia o não assolasse. Porque não é de boa gente que trata o filme, é de gente que é mal-tratada, enxovalhada e, por isso, pede satisfações ao destino, colhendo os proveitos enquanto pode. Enquanto o destino não vier colher os seus também.
Quinze anos passou Noodles na prisão. Quinze anos sonhou com “ramalhetes de mirra”, “vinhas em agraço”, “sobrecéus cobertos com o amor das filhas de Jerusalém”, “outeiros de incenso”, “mãos como anéis de ouro encastoados de turquesas”, “pedaços de romã”, “paladares como o bom vinho” e um amor que “as muitas águas não poderiam apagar”, “nem os rios afogar”, promessas e sonhos que não se cumpriram e que são completamente destroçados pela recusa da Deborah de Elizabeth McGovern e por essa terrível cena no carro, que nos leva ao silêncio absoluto, ao fade para negro e ao fim da primeira parte. Quando Simsolo fala a Leone da cena de violação e de como ela é crucial, o italiano responde: “Absolutamente. No Festival de Cannes, uma idiota acusou-me de complacência com a misoginia e sadismo anti-feminino por causa desta sequência. Ela não percebeu nada. Eu disse-lhe que não era anti-feminista mas que, se todas as feministas eram como ela, me ia aplicar a fazer muito rápido um filme contra feministas. Fiquei mesmo furioso porque a acusação dela era absurda demais.
É só amargura e remorso neste filme, culpa e procura de alguma paz e de alguma redenção
“Esta cena de violação é um grito de amor! Noodles passou quinze anos na prisão. Nunca deixou de pensar nesta mulher que estava lá fora. Esteve sempre apaixonadíssimo por ela. Ao ponto de fugir com ela quando saísse em liberdade. Ao ponto de lhe dizer tudo o que era… Tudo o que fez! É um gangster profissional mas o amor dele é tão grande que não consegue esconder nada desta mulher. Levou-a a um sítio óptimo que alugou por uma fortuna… Só para que ela pudesse escolher uma mesa que gostasse. E assim eles podiam estar sozinhos e felizes…
“Amava-a tanto que se portou como um príncipe com ela. Transformou a noite num conto de fadas. Confessou todo o seu amor por ela. Disse-lhe que ela era a luz que o tinha guiado por quinze anos de aprisionamento. E depois, ela respondeu-lhe: “Só estou aqui para te dizer adeus. Amanhã parto para Hollywood.” Ela vai para lá para se tornar uma imagem de Hollywood. E para se tornar outra vez uma imagem para Noodles! Ele ouve isto em silêncio. Calmamente. Recebeu esta lição terrível sem pestanejar. E depois no carro, ela dá-lhe um beijo de consolação. Como se lhe dissesse: Pobre miúdo. Dou-te um beijo porque estás um bocado zangado comigo. Noodles não aguenta. Quer que ela se vá com uma memória que não pode esquecer. E destrói-a com a máxima violência. Ele podia tê-la tido gentilmente. Violação sem brutalidade. Ele sabe-o. Sente-o. Ela deixava-o fazê-lo. Mas ele prefere esta brutalidade para que ela se lembre para sempre. Diz para si mesmo que ela já se esqueceu de toda a beleza que ele lhe ofereceu durante a noite. Mas garantiu que ela se lembrasse da violência deste acto do momento. E esta violência é a mais desesperada de todas.
“Quando filmei esta cena, queria que Deborah fizesse um gesto afectuoso para ele. A verdade vem ao de cima neste sacrifício. Ela ama Noodles. Ela percebe tudo. Percebe acima de tudo que ninguém a vai amar tanto como Noodles a pode amar. E quando, depois, ela o rejeita por Hollywood e pela carreira dela, ele tenta pedir desculpa pelos seus excessos. Para perceber melhor esta sequência, é bom perceber a mentalidade de um gangster. Este é um homem que pensou sempre nas mulheres como objectos sexuais. Mas desta vez, apesar da violação, o que o move é respeito. É amor. É amor. E é o maior dos seus sonhos que ela despedaça quando lhe anuncia a partida. Ela era uma imagem. Vai-se tornar uma imagem neste instante de exasperação. Noodles pode-lhe conhecer a carne. Mas é tudo.”
A boa consciência que desacredita Leone, Ford, Peckinpah, Milius, Pasolini, Cimino e Eastwood merece respostas destas. Neste caso, é uma má interpretação da narrativa, numa maliciosa defesa de que não pode contar tragédias e pecados e atrocidades, mas não se omitem certas coisas por serem imorais, cruéis ou terríveis, não se fecha os olhos e diz que é um mundo lindíssimo, aquele em que vivemos. A imoralidade era fingir que é. Sobretudo quando se estão a fazer filmes sobre actos e pessoas violentas. E a violência é uma coisa tramada e com várias facetas. Once Upon a Time in America é um filme sobre gangsters, por amor de Deus. Os filmes não podem ser sonhos molhados de elites conscienciosas. Quando se fala de um filme de guerra, guerra em que se pode imaginar o desespero ser tanto que já não se luta por ideal ou por país nenhum mas pelos amigos, não se pode falar de “representações do inimigo”, porque do outro lado passa-se exactamente o mesmo. E quem faz cinema ou literatura ou pintura e tem dois palmos de testa sabe isto perfeitamente. O campo é o contra-campo.
Mas é depois dessa cena, depois de olhar para Deborah uma última vez na estação de comboio e ela fechar a cortina, que Noodles se afoga em ópio e chama por ela, gritando e não conhecendo ninguém quando o procuram os amigos. E a maior partida que o destino faz é personificada e sentenciada pelo Max de James Woods (figura omnipresente e que Noodles ama tanto como Deborah) que dele se separa por sede de poder. É só amargura e remorso neste filme, culpa e procura de alguma paz e de alguma redenção, que talvez esteja nessas recordações de olhares incautos às danças de quem nos apaixona, de se preferir comer um bolo a dá-lo em troca de outras coisas, passear com os amigos e vê-los felizes da vida a dançar pelas ruas, ler os Cantares de Salomão rodeada de frutas a quem se ama. Lembrar isto tudo e guardá-lo como se fosse um tesouro. E sorrir. Não é coisa que aconteça só aos Noodles desta vida.
“I had a friend”…
Era uma vez…
Once Upon a Time in America será exibido amanhã, dia 18, às 21h30, na Cinemateca Portuguesa.