É fácil, muito fácil, ver em Nelly, a personagem de Nina Hoss em Phoenix (2014), a personificação da Alemanha desfigurada do pós-guerra a transfigurar-se na grande potência europeia dos nossos dias, a fénix (o título do filme refere-se menos ao cabaret assim chamado do que ao poder simbólico do pássaro mitológico) a renascer das cinzas e dos escombros da Berlim destruída e dividida pelos Aliados. Tanto que é extraordinário como Christian Petzold nunca deixa o seu filme reduzir-se a essa analogia, tão forte e óbvia.
Já se conhecia a leveza do toque do realizador alemão, por vezes confundida com vacuidade (James Gray sofre de similares problemas de interpretação): Jerichow (2008) era a versão minimalista de The Postman Always Rings Twice e Barbara (2012), um notabilíssimo exercício de subtileza, fino, rigoroso e comovente. No entanto, impressiona a forma como neste caso aguenta o peso da dita simbologia. Mais, como sobreviveria perfeitamente sem esta. Não sendo um filme de género, Phoenix insere-se na tradição do cinema do pós-guerra berlinense [Germania anno zero (Alemanha, Ano Zero, 1948), Berlin Express (O Expresso de Berlim, 1948) entre outros], na do film noir (a desconfiança, as traições, as reviravoltas), e na do thriller psicológico, na medida em que Petzold sabe guardar como poucos o mistério, não só da história mas também (ou principalmente) o do próprio filme. Nunca será de mais louvar a sofisticação narrativa do alemão, a maneira como a exposição é limitada ao essencial e a informação doseada inteligentemente. No entanto, o mais notável é o facto de o filme jamais se fixar realmente nos símbolos ou nos géneros que aflora ou até na narrativa, conservando o seu segredo para lá da imagem final, na qual a figura em primeiro plano sai de campo e o fundo permanece desfocado.
O mais notável é o filme jamais se fixar realmente nos símbolos ou nos géneros ou até na narrativa, conservando o seu segredo para lá da imagem final.
Nos filmes anteriores, a (complexa) simplicidade do cinema de Petzold poderia parecer realista. Se em tempo algum o foi, Phoenix é a primeira vez em que se apresenta gloriosamente cinematográfico (pressentindo-se uma futura acusação de academismo). Esta Berlim é de cinema, iluminada com a artificialidade dos estúdios americanos dos anos 40 (a fotografia de Hans Fromm é lindíssima); fantasmática e enigmática, é um eco da cidade verdadeira. O enredo é o de Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), ao contrário, retorcido, subvertido: Nelly é Judy e Madeleine e Carlotta Valdes e nenhuma delas é se não a espantosa e maleável Nina Hoss. E ela é outra, sempre. Tal como passa do sussurro à voz segura quando canta Speak Low de Kurt Weill (canção obcecante e leitmotiv do filme, na versão do compositor), de fantasma envolto em ligaduras transforma-se num pássaro (fénix) frágil e assustado, que mal se pode ter nuns saltos altos, e, depois, na vistosa cantora de cabaret, de vestido vermelho e sapatos de Paris.
A esta altura, já não basta considerar Nina Hoss a musa de Christian Petzold. Ela é também cineasta. Phoenix é mais uma grande obra de Petzold e Hoss.