Estamos em Portugal, em 1975, no meio de um país em ebulição, na ressaca de uma revolução em curso e ainda mal resolvida. As pessoas saem à rua, as multidões gritam palavras de ordem, a tensão e a indefinição polvilham o dia-a-dia. O que faz João César Monteiro, cineasta ele próprio em ebulição no meio desta multidão? O melhor que sabe fazer, isto é, pega numa câmara e parte à descoberta de histórias, de pessoas, para criar outras histórias com as imagens que descobre, para desvendar uma mensagem. Que Farei eu com Esta Espada? (1975) de João César Monteiro é uma cápsula do tempo, de um momento exacto na história portuguesa recente, um filme-espelho de um país fragmentado. No entanto, na sua agitação e urgência, acaba por capturar uma inquietude e um estado de insatisfação que se repetirá ciclicamente nos anos seguintes, que prolonga o filme no tempo. Esta é a prova de que o cinema pode também servir de arma, que quando apontada, incomoda quem fica ao seu alcance.
Há uma ameaça que paira naqueles primeiros meses de 1975 em Portugal em relação à definição do futuro do país debaixo do perigo de uma intervenção externa. Essa ameaça de ingerência externa sobre a soberania nacional é materializada nos navios da NATO atracados no Tejo, mais especificamente no caso de um porta-aviões americano, de nome Saratoga, um gigante adormecido. Este e outros navios, estacionados como reserva moral à espera de se intrometerem caso se julgasse ser necessário, eram visíveis a partir de Lisboa, ao alcance do Terreiro do Paço, local simbólico do poder e da revolução, e era necessário filmá-los. César Monteiro pega então num barco e circunda-os, filmando o porta-aviões e os submarinos com Lisboa como pano de fundo, como se à procura de um ponto fraco, enfrentando estes vultos com atitude desafiadora. César Monteiro enfrenta esta ameaça logo com o primeiro plano do filme, um canhão apontado ao tal porta-aviões americano, como um dedo do meio em riste.
Este é um filme que se cria à volta de simbolismos, e da desmistificação desses mesmos símbolos. Se o Saratoga é o símbolo da ameaça externa, esta é a resposta de César Monteiro.
Este é um filme que se cria à volta de simbolismos, e da desmistificação desses mesmos símbolos. Se o Saratoga é o símbolo da ameaça externa, esta é a resposta de César Monteiro. Mas este vai ainda mais longe, ao intercalar estas imagens dos navios com imagens do filme Nosferatu (Nosferatu, o Vampiro, 1922) de F.W. Murnau, o clássico do expressionismo alemão. César Monteiro utiliza imagens do desembarque de Nosferatu, figura que traz consigo as trevas e a escuridão onde quer que vá, para sugerir numa comparação provocadora que o mesmo acontece com a chegada das forças militares, como se o desembarque das tropas trouxesse consigo uma doença – César Monteiro chega a contrapor imagens de Nosferatu a dirigir-se para a costa e de ratos a saírem do porão, com imagens de barcos estrangeiros a atracarem no Tejo e soldados a passearem-se por Lisboa. É uma construção cinematográfica, de oposição de imagens e sequências, que assinala um conflito dentro do filme. Tal como quando recorre a depoimentos filmados, quando coloca lado-a-lado entrevistas com uma prostituta, com depoimentos de operários fabris e de cabo-verdianos explorados pela colonização portuguesa, com imagens de soldados que não fazem ideia do significado da sua missão, como se fossem afinal todos vítimas de uma forma de exploração – é também um filme de paralelos. Inerente a uma perda de soberania, pelo condicionamento da decisão do futuro de um povo, está inerente uma perda de identidade, que no fundo resume-se ao espectro do colonizador que é agora colonizado – como chega a ser afirmado directamente por um agricultor. É contra esse destino que a câmara de César Monteiro parece insurgir-se, através da espada referida no título, símbolo da insubmissão assumida.
É também nas ruas que se joga este destino, onde a agitação social que transpira por todo o lado é mais visível nas diferentes marchas de protesto, como a que César Monteiro acompanha logo no início do filme. Assistindo ao desfile dos protestantes, filma-os como testemunha enquanto gritam palavras de ordem que ecoam no filme contra a NATO, mas também como participante, quando dá destaque a uma faixa que lê “Morte ao Capitalismo / Fora o Imperalismo”. Esta convulsão social está também presente nos diferentes depoimentos que César Monteiro regista, que são peças-chave do filme, onde dá destaque a uma multitude de vozes: desde agricultores que se queixam de pobreza, aos operários que se insurgem contra as difíceis condições de trabalho, aos emigrantes das antigas colónias com relatos de miséria. Várias vezes é questionado o sucesso da revolução, e há um apelo transversal à necessidade de mudança, e acima de tudo, à liberdade de escolher. Uma entrevista a uma prostituta do Cais do Sodré sob o pretexto de ouvir histórias sobre os soldados americanos acaba antes por revelar detalhes sobre encontros infelizes com portugueses, mas acima de tudo a triste realidade destas mulheres. As próprias entrevistas a soldados que César Monteiro consegue são reveladoras da falta de noção por parte destes do que está em causa – a certo momento, alguém pergunta a um soldado americano se acredita na democracia, ao que este apenas responde “Democracia? Não Sei”. Mais tarde, numa reunião em ambiente rural, é o mais velho que fala mais alto, que mais protesta, que está mais cansado de ver sempre a mesma história. É, além das imagens, um ataque através de palavras ao conservadorismo, à miséria, ao conformismo.
O recurso a depoimentos de populares, o trabalho de sonoplastia que confere outra dimensão às imagens e a montagem energética, fazem recordar outro filme, Bom Povo Português (1980) de Rui Simões, talvez o mais importante filme português sobre esse período da história. Se o filme de Rui Simões beneficia de ter sido realizado mais tarde e portanto com uma narrativa mais alongada, que contrasta com a urgência de Que Farei eu com Esta Espada?, são obras próximas na visão que apresentam. Contra o cinema bem-comportado, que não tem opinião, apresentam um cinema militante, de intervenção, porque é preciso escolher um lado, não ter medo de incomodar. Ao longo deste filme há uma figura enigmática de uma rapariga que empunha uma espada, numa imagem que se vai repetindo, como se estivesse ali a resposta do filme, a resposta ao desafio daquele momento no tempo. A figura com a espada, que volta a aparecer no fim voltada para o mar, parece apelar à resistência, evocando a história, mas agora sob a forma de uma mulher, símbolo para um novo país. Apesar das muitas afirmações que faz e dos slogans que apresenta, é um filme de perguntas, como a do título do filme, que continua a fazer sentido. E agora?
Que Farei eu com Esta Espada? (1975) de João César Monteiro será exibido pelo Cineclube do Porto, no dia 25 de Abril, pelas 18h, na Casa das Artes no Porto.