(…) quem se coloca num pedestal não pode, nunca, estar na posição ideal para mostrar a verdade.
Chegou a altura de emendar o erro fundamental que se cometeu em relação à minha pessoa: não sou um cineasta.
Roberto Rossellini, A sociedade do espectáculo (1977)
O que fazer quando estamos no topo de uma montanha, no topo de um pedestal de pedra e fumos, abismado e paralisado com tanta beleza? A resposta é uma: descer para poder subir ainda mais. Foi o que Rossellini fez, dois anos depois de Stromboli, terra di dio (Stromboli, 1950), com a sua expansão à escala de um continente, com Europa ’51 (1952). Se Germania, anno zero (Alemanha, Ano Zero, 1948) era um diagnóstico, entre o morbidez e o humanismo, que procurava ver como viviam (sobreviviam) os derrotados da Segunda Grande Guerra, agora a tentativa era de uma auscultação mais genérica dos efeitos do conflito em toda uma Europa devastada por fome, balas e buldozers. E mais uma vez estamos perante esse poderoso link invisível entre o indivíduo e a sociedade, que fazia com que o espectador não soubesse bem se se olhava ao espelho, se via cinema.
Ricos e Pobres e Santos
Se em Germania, era a morte de Edmund o acontecimento latente que Rossellini acabou por mostrar como culminar de uma sociedade que tinha batido no fundo, – como escreveu Jean Douchet: “é o peso da História que conduz ao suicídio simbólico da criança”-, em Europa ’51, é uma vez mais a morte de uma criança (desta feita não provinda directamente do desespero pós-guerra mas de uma “falsa harmonia” que brota de um silencioso embate ideológico em plena guerra fria) que faz essa passagem do drama singular à revelação de uma angústia mais ampla. A morte de Michel gera o sentimento de culpa na mãe Irene (Ingrid Bergman) pela displicência com que o tratou, migrando esta para nós, via uma certa impotência para redimir uma realidade social que vem a descobrir. Ainda Douchet, num texto titulado A Febril Inquietação do Instante, explica como “as crianças são reveladoras mas isso não é mise en scène“. Embora apeteça guardar a citação para um desses filmes que colocam a criança no meio do frame e cruzam os braços à espera que a magia aconteça, em Germania o suicídio é antecedido de uma longa sequência de deambulação-brincadeira solitária pelos destroços de Berlim. Nela Rossellini expõe precisamente o detalhe da mise en scène, sendo que é o salto de Edmund que revela o desespero do que está para trás e o impossibilidade do que está para a frente. Um fim de filme que não é apenas palavra breve.
A revelação que a morte da criança em Europa ’51 traz é para os olhos de uma mãe. Burguesa, vai descer (verbo muito importante, como vem sendo claro nesta minha tese de gravidades) até a um mundo de pobreza que até então desconhecia [como a descida do soldado norte-americano às cavernas de Margelina em Paisà (Libertação, 1946)]. Ainda antes de ir à “descida”, gostava de ver o segundo filme da trilogia Bergman através de Germania (ou ver a Europa pelos olhos da derrotada Alemanha). Neste, a câmara de Rossellini escreve a morte de Edmund com a tinta de uma elipse e de um plano picado. Naquele, com as ilusões de uma metafísica deixadas para traz, o rapaz lança-se das escadas (sem que nunca possamos ver essa queda) enquanto os pais e convidados falam sobre métodos de educação. E é a empregada que entra na sala de jantar, gritando aflita, dizendo que Michel está ferido. Mais uma vez a tragédia não está ante os nossos olhos mas depois Rossellini já cá está em baixo na base das escadas, fazendo uma panorâmica ao longo do espiralado vão de escada (esse era um símbolo recorrente para os filmes sobre loucura e psicanálise da época; e de loucura fala o filme a partir daí) enquanto os pais descem aflitos para apanhar o menino, caído. Ao invés de filmar a tragédia de cima para baixo, Rossellini filma agora de baixo para cima e são as personagens que descem. Têm de descer.
Assim como desce Irene para poder subir: da loucura à santidade. Vamos então à descida aos “infernos da pobreza”. Não faltavam vozes que chamassem burguês a Rossellini quando montou com os produtores Carlo Ponti e Dino de Laurentis um filme em torno da sua star (longe da choque e exasperação rural de Stromboli), sobretudo quando a pôs numa casa de bem (da cadelinha, casacos de peles e jaguar à porta) e numa “habitação” narrativa melodramática, que procurava a identificação com o rico que se “santificava” ao ver como vivia o pobre. Contudo, o que interessava a Rossellini – que ao filmar a sua mulher como santa prenunciava o fim da sua relação [é La Paura (O Medo, 1954); e aqui o marido que interna a mulher] – era matar dois coelhos com um só golpe. Um, o sobrevoar o desespero pós-guerra dos subúrbios de Roma – com as prostitutas a cuspir sangue, os filhos aos magotes debaixo das saias da mãe, os movimentos entorpecedores das fábricas habitadas por operários – e concluir que aquilo só podia ser coisa de loucos. Dois, pensar que a loucura e a santidade se equivalem quando alguém não segue o movimento da corrente de água do sistema. Em casa de imorais, o moral é louco ou o moral é rei.
A primeira reacção de Irene ante este pouco admirável mundo novo é seguir a via da caridade e querer compensar os pobres que vai encontrando pela incúria que lhe roubou o filho. Mas depois esse sentimento transforma-se, intransigentemente, veladamente (nós nunca sabemos o que vai naquela cabecinha) e com ele toda a sua forma de pensar: Irene desapossa-se da moldura material e intelectual que a caracterizava. Louca ou santa, Rossellini não quer decidir o que aconteceu. Por isso, a família não a chama louca mas, como não a sabe classificar, resolve remetê-la à clausura do hospício. Por isso no final, os pobres por ela ajudados, a vêem como dádiva vinda dos céus e lhe chamam Santa, coisa que está longe de sentir como apelo religioso. Cena final que, como na morte do filho, Rossellini também filma cá em baixo, em contra-picado, célebre, olhando para Ingrid Bergman lá em cima, encerrada na sua torre celestial. Europa 51′ no seu tom mais didáctico, de um neo-realismo católico, antecipando os seus filmes televisivos tem já a sua mensagem não metafórica toda exposta: Irene desceu ao mundo da pobreza e ao ver o que não sabia que existia subiu a um estado de elevação. Esta “lição” de que é preciso descer para subir faz de Europa 51′ um filme sobre a imanência das pequenas coisas contra a pura metafísica ascensional de Stromboli.
O olhar da estátua
Num dos textos que inauguram a crítica rosselliniana – Carta sobre Rossellini, de Jacques Rivette – a dada altura, já perto do fim pode ler-se: “aquando do aparecimento de Viaggio in Italia, todos os filmes envelheceram, de repente, 10 anos.” Este aceleração do tempo faz sentido pensar-se juntamente com a ideia de como a modernidade do cinema de Rossellini conflui, exemplarmente, para este filme. De regresso a Itália, mas a uma Itália já perturbada pela sombra interior dos traumas indizíveis, a meio caminho das depressões, dos tédios, da chamada angústia contemporânea que tantos filhos tardo-modernos deixou. Um terceiro filme, depois da estranheza do novo (Stromboli) e da morte do filho (ficcional em Europa 51′ e real, pela perda de Romano), para relatar uma espécie de balanço da relação com Bergman, onde ou a amor morre ou renasce imortalizado, como o casal que morreu abraçado nas ruínas de Pompeia.
Mas ainda mais se pode acrescentar a esta súmula rosselliniana. Se na primeira metade deste texto escrevi que Roma città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945) era a fuga às “igrejas” dos cinemas de estúdio, essa libertação converte-se em modus operandi do próprio cinema moderno. Aqui a libertação continua a fazer-se em vários sentidos, o que para o italiano iria culminar com o próprio desembaraçar-se do cinema num trajecto para o didactismo da ciência e da televisão. O neorealismo, ao propor seguir com interesse a vida das pessoas, propunha uma técnica que ilustrava um realismo maior. O realismo como estado de espírito em que a “linha direita é o caminho mais curto para chegar de um ponto a outro” (outra vez Rivette). Esta libertação implica antes de tudo uma linha directa entre um fazer sem o constrangimento da história ou argumento polido, fazendo de Viaggio in Italia (Viagem em Itália, 1954) e todo o cinema moderno depois dele, uma trajecto único, impassível de replicação como acontecia com o clássico.
Tal não pode implicar considerar como paradoxo a estreiteza e honestidade do “ir de um ponto a outro” como uma ideia de simplificação do conteúdo de cada viagem. O rosto incrédulo de George Sanders, as procissões civilizacionais de Ingrid Bergman são filmadas por Rossellini com uma depuração que espera os seus encontros com o espaço e com as pessoas. Essa honestidade, de não interpor nenhuma ideia entre os corpos e os espaços (para que deles pudessem crescer coisas; o tal método “linear”), não se confunde, de todo, com uma certa simplicidade do que ambos vivem. Aliás, é o oposto. É porque todos os dados estão em aberto à partida que o que acontece não pode ter tradução simples. Um exemplo: o travelling frontal dos olhos da estátua que Bergman observa no museu de Capodimonti tem uma dimensão abissal onde toda a natureza humana parece espelhar-se nesse jogo entre finitude do ser e imortalidade do tempo. O método pouco construído de Rossellini é precisamente o único, pelo facto de ser fugidio, capaz de tentar agarrar uma certa consistência de uma realidade profundamente inconsistente.
Este confronto entre o inerte e o humano é aquilo que em nós, com Bergman, viaja. A início há uma noção romântica de arte que impele Katherine a buscar aquilo que o marido não compreende no génio do poeta Charles Lewington. Essa viagens de escape traduzem, a pouco e pouco (como uma voz interior e silenciosa que nela se estivesse a formar), uma modificação que conduzirá Katherine a pensar o seu amor do lado das estátuas, dos vapores que exalam, do lado daquilo que permanece. Uma vez mais, ou aqui assim o é por excelência, as personagens viajam ao betão, ao concreto, à pequenez da materialidade para perceberem a verdadeira dimensão da espiritualidade, do que está no alto. Mas esse perceber não é dado à partida, Rossellini não vicia os dados. Em cada encontro há uma caça, um filmar da espera, uma latência do que pode vir a acontecer, um respeito, um guardar da modificação invisível das personagens.
E o que pode vir a acontecer, acontece de facto. O final de Viaggio com a reconciliação do casal surge-nos como uma revelação. Rossellini continua a filmar a procissão religiosa napolitana depois do “I love you” do George Sanders e a multidão de pessoas continua a passar. Além de um amor resolvido se “apequenar” ante a grande máquina inexorável de pessoas que continua a girar e que constrói a indiferente beleza da existência, aqueles os dois ficaram, Rossellini abandona-os, ali, como um casal cristalizado no seu amor (que se presume para sempre) na lava de pessoas que os imobiliza-imortaliza. Nesta descida ao mundo, uma vez cristalizados na multidão que passa, Rossellini faz esse inesquecível movimento de grua, largando-os, subindo para os céus. Descer para poder subir ainda mais é a súmula da viagem. Mas, no final, a pergunta que Sanders faz a Bergman e a sua resposta, a abrir o filme, não deixam de fazer sentido. Talvez ainda mais sentido do que antes: “-Where are we?; – Oh, I don’t know exactly”.
Ver tudo, sem hierarquia
Depois do processo de santificação de Ingrid Bergman [quer em Europa 51′, quer em Giovanna d’Arco al rogo (Joana d’Arc na Fogueira, 1954], e da exposição hitchcockiana do lado manipulador do cineasta-marido em relação à actriz-esposa em La Paura, Rossellini teve alguns anos sem filmar. Como é sabido, foi a convite do primeiro ministro indiano, só em 57, que decidiu vir à Índia fazer um “documentário”. Se até agora temos vindo a falar de subidas e descidas, de contrapontos feitos pela câmara em relação a esses movimentos, de imanência e transcendência, talvez não haja melhor filme do que India: Matri Bhumi (India, 1959) para ilustrar que a dada altura Rossellini terá compreendido que uma coisa é sempre também composta do seu contrário.
O filme é um ponto de viragem para o que se designa como fase final ou fase televisiva da sua carreira. Essa viragem tem sobretudo a ver com a compreensão de uma “omnirealidade” (a palavra não existe, invento-a eu), um real que tudo comporta. Ou para usar as próprias palavras de Mahabharata citadas no filme: “Porque a verdade está em tudo e mesmo em parte naquilo que não é verdadeiro.” Em India há um documentário sobre a filosofia, o viver, indianos, mas há também uma ficção, uma mágica ficção segmentada em vinhetas como Paisà (Libertação, 1946). Daqui arranca, inspirando-se nesta concepção mística de vida que é também uma forma suprema de racionalidade, uma visão onde a imanência é uma forma de transcendência, onde o caos documental é limpidez ficcional ou onde o cinema devém não cinema (devém televisão ou didactismo científico). É a este nível que podemos ler a célebre frase com que Godard imortalizou India: “o filme da Criação de Mundo”.
Criação de Mundo porque se estilhaçam aqui as fronteiras entre o pensamento racional e uma visão mítico-mágica, entre o olhar humano e o olhar animal, entre a ficção e o documentário. Sobre este último ponto pode dizer-se que já Paisà usava o desconexo dos episódios ficcionais para pincelar a realidade documental de uma Itália a lamber feridas de Guerra. Pode dizer-se ainda que parte do profundidade de Viaggio é não se saber se a narrativa do casal puxa o real napolitano ou se é o inverso. Mas em India essa relação é ainda mais fluída: a passagem de uma voz off entre os segmentos documentais à sua interiorização ficcional faz-se imperceptivelmente como se os dois fossem um. Num excelente artigo de Alain Bergala, India enquanto auto-retrato de Rossellini como cineasta e como marido, avança ele esta ideia de que nunca Rossellini se conseguiu desembaraçar da ficção de casal como forma de colocar a questão da alteridade (como ferrolho ficcional para abrir o mundo). A nuance de India é que os três primeiros episódios ficcionais (as três idades da vida de um casal, desde o encontro inicial à velhice) são colocados num contexto que desafia, civilizacionalmente, a própria noção de alteridade. Assim sendo Rossellini tanto é o cornaca como é o próprio elefante, ou porque não dizê-lo a ave no céu ou o macaco do último segmento. Bergala explica ainda (demasiado psicanaliticamente, parece-me), como a transição do episódio da velhice ao do macaco marca finalmente, na obra de Rossellini, um abandono da questão do desejo. E se se vai o desejo (escusado será dizer que movimentos também descendentes tal ideia comporta) começa o genérico amor pelo mundo, o cinema enciclopédico e didáctico que daí em diante se seguiria.
Este amor pela ciência, que coloca o cinema como instrumental veículo do conhecimento, é talvez o derradeiro movimento descendente do cinema de Rossellini. Inversamente, como o demonstra o último filme Il Messia (O Messias, 1975) nunca a ambição ascensional, para abarcar toda a criação, foi tão notória. Olhar para os céus, para a génese, não sem esquecer a materialidade das coisas (aliás o projecto inacabado era precisamente sobre Karl Marx).
Mas volte-se finalmente à ideia inicial com que comecei este percurso: o que fazer hoje do cinema, do que nos revelaram as imagens de Rossellini? Talvez essa “utilidade” esteja na sua concepção particular do sagrado. Termino citando Sandro Bernardi num texto sobre as paisagens de Rossellini: a “santidade é uma redescoberta do mundo, a sua epifania desprovida de epifania, visto que depende de vermos aquilo que está perante os nossos olhos.” Essa revelação do ver sem hierarquia é a grande missão da contemporaneidade quando confrontada com o cinema de Rossellini. E quem diz de Rossellini diz do cinema. E quem diz da contemporaneidade diz de Portugal. Portugal, mundo aberto.