No cinema, o sangue funciona como um interjeição. Quem exclamou mais alto terão sido os cultores do gore, do giallo e o americano Herschell Gordon Lewis. Por outro lado, o cinema clássico exclamou menos com sangue, usando o vermelho da dor e da morte como um ponto, por vezes uma mancha pequena, na imagem. De uma maneira ou de outra, o vermelho intenso interrompe, normalmente, a ordem habitual das cores rotineiras. Ela concentra, como ponto de fuga, o drama ao fazer-se irromper na imagem, saindo do coração, do pescoço, das mãos (ter sangue nas mãos pode ser também uma questão moral). E depois há o desafio habitual do cineasta debutante: como fazer sangue e torná-lo realista? Mas muitos cineastas mostraram como o sangue “desrealiza” tudo à sua volta, a ferida que abre no corpo abre também no ecrã. Nada é absolutamente realista quando o sangue é vertido, espirrado, jorrado. Há quem desmaie só de o ver. A bem da Sopa de Planos que se segue, esperamos que não esteja aí desse lado um hematofóbico.
Num só plano, a morte do western na obra de Fritz Lang e a morte do mito Marlene. Rancho Notorious foi o terceiro e último western realizado por Lang (precisamente, dez anos depois de The Return of Frank James e Western Union) e não é uma vã assunção esta de estabelecê-lo também como o último filme que Marlene Dietrich protagonizou, pois os que ainda se seguiram já não tomaram como centro e abismo a sua imagem, sobretudo, a sua presença – sendo, ainda assim, possível fazer-se uma pequena honra a Witness for the Prosecution (Testemunha de Acusação, 1957), de Billy Wilder, um grande filme que só precisou de uma cena para “explodir”, com a derradeira interpretação da mulher mais insolentemente elegante do cinema. Mas… é de facto neste plano que se anuncia um fim perene, ao qual se volta uma vez e outra para localizar o vermelho limpo da ferida escondida numa camisa menos “limpa” (tal como a parede) do que essa cor que brota no tecido, insígnia do adeus. Se o sangue, simbolicamente, pode falar (no cinema), por sua vez este sussurra as palavras cantadas por Dietrich num dos seus serões rodeada de homens, onde o perigo de uma vingança espreita no olhar do young boy – “get away, get away young boy”. Entre este e o homem que veio cedo demais (Mel Ferrer) – “don’t send a boy to do the work of a man” – vemos Dietrich morrer, no presságio de uma canção, no interlúdio da idade de um e de outro, e na maldição de um passado que trouxe ao presente o supremo equívoco.
Inês Lourenço
Crístico Keitel, crístico plano. Desde que o achámos – e já lá vão uns bons anos – no amontoado em roda livre chamado “internet” que sempre quisemos falar deste plano. “Sangue”, disseram-nos, e logo nos assomaram à cabeça os lábios de Harvey Keitel beijando os pés ensanguentados de Jesus Cristo. Bad Lieutenant foi o primeiro filme que vimos de Ferrara e talvez ainda seja aquele que reputamos como igualmente de “primeiro” na sua filmografia. Por ele perpassam todas as grandes questões da filmografia de Ferrara, muito especialmente aquelas que o americano filmou nos seus dois últimos filmes (Welcome to New York e Pasolini). “Talk to Jesus. Pray. You do believe in God, don’t you? That Jesus Christ died for your sins…”. São as palavras que a freira dirige a Keitel, com essa particularidade de, sendo “gerais e abstractas” (como as leis… as de Deus e as dos homens), se “aplicarem”, que nem uma luva, ao “caso concreto”, i.e., a Keitel. Num filme alucinado, de um realizador alucinado, em torno de uma personagem alucinada, absolutamente nada de anormal possui a sequência de alucinação/visão que Keitel tem de Jesus Cristo, numa desesperada e derradeira tentativa de redenção por parte de um polícia amoral e selvaticamente corrupto. Keitel chora, berra, uiva: “YOU GOTTA SAY SOMETHING!”, mas Cristo continuará impávido. E, perdoando-o, verá Keitel beijar-lhe os pés, tomar o sangue que ele derramou pelos “pecados” de homens tão virtuosos e pecadores (“too fuckin’ weak”) – tão… humanos – como ele. De homens como nós. O bilhete de autocarro para fora da cidade que Keitel pagará, depois, àqueles jovens marginais pretende, por isso, ser um bilhete “para o céu”, ou, pelo menos, um empurrão para fora do inferno do submundo nova-iorquino por dois dos seus mais íntimos conhecedores: Keitel e Ferrara, nados e criados em Brooklyn e no Bronx, respectivamente.
Francisco Noronha
Primeiro filme realizado e produzido por Scorsese, The Big Shave é um pesadelo que persegue todos os homens que detestam o ritual do corte da barba (como… eu). Talvez por este filme se explique, em parte, o facto de Scorsese nesta altura usar uma farta barba. Mas, mais importante, com esta curta-metragem fica provada a capacidade dos grandes cineastas de transformarem pouquíssimos elementos, os mais imediatos que possamos encontrar, em instrumentos dramáticos poderosos – e perigosos. Aqui eles são a espuma de barbear, a gillette e o lavatório como deve estar: impecavelmente branco. É sobre o branco, do lavatório e da espuma de barbear, que o artista Scorsese vai deixar, como que em “pinceladas” largas, a sua marca. A rotina banal transforma-se em ritual de mutilação. O homem, descontraída e placidamente, usa a gillette para produzir uma perturbante performance ou body art com litros de sangue (ou xarope de milho/chocolate) que aniquilam por completo a imagem tranquilizante que a cor branca inspira. Enquanto há branco, há rotina. Quando surge – espirra! – o vermelho denso, temos “o dia estragado”. Trabalha-se aqui a ansiedade íntima e uma vontade sádica que existirá entre todos nós, homens, que vivemos o tormento, vertido neste filme com cerca de 5 minutos, de desviarmos a navalha para a jugular e em vez de sermos nós a fazer a barba, ser a barba a fazer-nos a nós. Depois de explorar todos os ângulos, isto é, depois de ter “cortado por todo o lado”, a câmara e montagem dão-nos a imagem frontal do homem e da sua lâmina que este faz percorrer longitudinalmente ao longo do pescoço. Ele executa, deste modo – e o verbo é mesmo “executar” – a rotina em pleno inferno. Sem after shave.
Luís Mendonça
Como sempre Zizek olha para The Birds e encontra uma leitura freudiana para tudo, qual chave mestra para todos os problemas semióticos do cinema. Pois bem, a sua leitura consiste em entender o ataque dos pássaros como a manifestação real da energia incestuosa entre mãe e filho, de modo a prevenir que este se envolva com louraça Tippi Hedren. Onde a natureza, e os animais nela, são instrumentos à mercê do super-ego de Rod Taylor: transportando-nos assim para dentro da sua psique, ou inversamente, demonstrando no real a força escondida dela. É uma leitura interessante, mas que teima em colocar o protagonismo do filme no homem – e onde as mulheres são necessariamente apenas símbolos (quer do Super-ego quer do Id). Uma alternativa seria pensar nele como uma continuação in extremis da solução do falso culpado e da transferência de culpa: aqui o mal tem uma origem natural (ainda que essa naturalidade possa ser contestada e essa origem dificilmente se possa localizar) e ninguém parece ser nem responsável nem alvo de persecução particular desse mesmo mal. O que se propõe aqui é talvez a hipótese de que a aleatoriedade das coisas e a impotência do Homem perante elas seja o mal definitivo, aquele que não pode ser expiado pela captura do verdadeiro culpado, um mal sem culpa – algo que só recentemente (no pós 9-11) o cinema de terror soube manifestar. E aqui chego finalmente ao incrível plano da luva pontuada de sangue que encima este parágrafo. É que a Tippi e Rod só lhes interessa os namoriscos, as pequenas provocações de amantes, o lovebird na golden cage entregue às escondidas com love/hate letter e o desejo de se ser apanhado na practical joke, tudo corre bem no mundo do engate (e podia ser uma comédia romântica), eis senão quando, vindo dos céus, cai uma gaivota esgrouviada que ataca a pobre menina (no seu cabelo acetinado, casaco de marta, colar de pérolas e luvas de camurça). Não há pois alegria, que combata o mal, nem amor, nem sequer o dinheiro dela, nem com certeza as boas (ou más) intenções de ambos. É esse choque entre a elegância da luva e a fúria do sangue que impressiona: já que sabemos qual deles vingará.
Ricardo Vieira Lisboa