“Well, Mr. Weiss, I’m your guy. I work fast, and I’m a deal. I write and direct. And I’m good”. Estas palavras de Ed Wood (Johnny Depp) no homónimo filme de Tim Burton bem que poderiam ter sido proferidas por um jovem Roger Corman a meio da década de cinquenta, quando teve início a sua rápida e furiosa [tal e qual como o título de um dos seus filmes, The Fast and the Furious (1955)] ascensão ao trono de cineasta de série B, através de filmes concebidos, rodados, montados e distribuídos em tempo recorde com o mínimo dos gastos e o máximo dos lucros. Enquanto os papás ficavam em casa a maravilharem-se com a nova fantasia doméstica, Roger distribuía pelos seus filhos um variado conjunto de amazonas, extraterrestres, filmes de prisão, westerns lúridos, filmes de motas e cabedal, etc., com o povo juvenil em delírio nos drive ins das terriolas norte-americanas. Brutal e sem floreados, Corman mantinha-se à tona das matérias “quentes” da época. E ainda enriquecia, o que é ainda melhor.
Esse olhar agudo para a sua época tornar-se-ia especialmente visível em dois filmes: A Bucket of Blood (1959) e The Intruder (1962). O primeiro (com o excelente Dick Miller, um dos companheiros de estrada do Joe Dante) é uma sátira ao movimento beatnik dos dias de então, com “artistas” a refastelarem-se em poesia e em obras de “arte” que “desafiam as convenções da própria noção de arte”; portanto, tão actual há meia centena de anos como nos dias de hoje. Ia agora fazer uma piada grosseira sobre uma sanita e um pastel de nata, mas prometi a mim mesmo que este artigo seria discreto. O segundo aborda a segregação racial no sul dos Estados Unidos, algo que tinha sido proibido pelo Supremo Tribunal uns anos antes mas que, de facto, ainda continuava como uma realidade (ou ainda continua, de forma mais “subtil”) espalhada pelas arenas derrotadas na Guerra Civil.
É certo que fazer um filme abertamente anti-racista em 1962 não era a mesma coisa se o mesmo tivesse sido feito uns dez ou quinze anos antes, mas não deixava de ser uma proeza a desafiar não só toda a lógica de mercado tão cara a Roger como também um possível obstáculo à saúde física e intelectual do realizador e de toda a equipa envolvida no filme. Sem financiamento em parte alguma, Corman arranjou 80 mil dólares a troco da hipoteca da casa e tratou de levar toda a gente para uma pequena cidade do Missouri, onde trataria de filmar sem qualquer espécie de autorização, fugindo das autoridades sempre que necessário. Como se não bastasse tudo isto, a população desencadearia processos de hostilidade para com Corman e amigos, carinhosamente apelidados de “comunistas” pelo bom velho povo sulista (ou a meio caminho entre as terras de yankees e os pastos dos confederados, como é o caso do estado do Missouri), que mal via um nova-iorquino a passear nos seus campos de algodão e nas suas estradas poeirentas pensava logo que um alien moscovita ali tinha aterrado para dar cabo dos seus negócios.
Roger Corman era um cineasta mais sofisticado nas propriedades plásticas de um filme do que no seu “conteúdo”
Toda esta ambiência de aparente fragilidade era precisamente o que convinha ao realizador, ávido de não desperdiçar nem tempo nem dinheiro. Uma urgência de fazer que toma forma na “mensagem” sem adornos (mas não sem a sua pontinha de ambiguidades) que The Intruder faz questão de mostrar. Roger era (ou é, embora já não faça filmes há um quarto de século) um cineasta mais sofisticado nas propriedades plásticas de um filme do que no seu “conteúdo”, e esta sua obra é uma dança que se estabelece entre o maniqueísmo sem contemplações das relações numa sociedade e a imaginação e rigor dos travellings pelas gentes sulistas, por um preto-e-branco quase queimado pelo calor do Missouri, pelos contra-picados expressionistas em quartos minúsculos, ou por superimposições engenhosas. Tudo isto em um, dois takes; o dinheiro não era muito e a polícia estava à espreita.
Estas particularidades estão presentes na sequência-chave do filme, onde a personagem de William Shatner (só voltaria a ser tão bom aqui) fabrica um discurso de ódio, apelando aos corações ressentidos da populaça. Mas o que estabelece a verdadeira beleza desta cena é o desfasamento entre as modulações e as pausas na voz de Shatner, sempre em crescendo de indignação e manipulação das massas, e o persistente som dos grilos na noite. O ódio a atravessar a ruralidade norte-americana e a natureza descansada, indiferente, imersa nos seus deveres de “espectadora”. Para os grilos, tanto faz que esteja perto um branco a apontar o dedo para o céu e a gritar “those goddman niggas!” como um casal de namorados a trocar juras de amor um com o outro, por sms, embora estejam separados por menos de quarenta centímetros. Os insectos ali continuarão com a sua melodia.
A beleza dos grilos na noite não foi suficiente para o típico público de Corman, mais sensível a outras maravilhas do mundo. The Intruder não deixou rasto nas salas de cinema, nem quando mudou de título duas vezes, primeiro para Shame e a segunda para I Hate Your Guts!, como tentativa de tocar o primitivismo do jovem do drive in. Nada resultou, e The Intruder tornou-se no primeiro e único filme de Roger que não lhe daria dinheiro. O seu provavelmente melhor filme (que nos perdoem os fãs mais empolgados dos “filmes do Poe”) é o único que não lhe meteu mais bago no bolso. Quase parece dar razão às mais básicas distinções entre “comércio” e “arte”. Os grilos, entretanto, lá continuarão o seu ofício por St. Louis, Kansas City e Jefferson City.