Já depois de morta a terna lagartixa de Ray Harryhausen, nos últimos momentos de 20 Million Miles to Earth (A 20 Mil Milhas da Terra, 1957), um passeante, ao ver metade do coliseu romano desfeito e lá em cima o prostrado cordeiro sacrificial diz: “Why, why is it always so costly for man to move from the present to the future?” Este desabafo que o anónimo solta para que o anónimo espectador se sinta mal (caso lhe tivesse escapado alguma coisa) pelo pecado de ter participado, voyeuristicamente, na morte da inocente criatura, tem também uma ressonância cinéfila. Ver hoje a criatura que vem de Venus, animada em stop motion por um Harryhausen em modo one man show (actualmente todas as tarefas de composição, animação, textura, etc, estão distribuídas por um batalhão de pessoas), não pode deixar de levantar essa relação entre um passado e um presente. Este, povoado pela superfície higiénica do digital e da perfeição sem rugas do CGI, olha com uma certa estranheza para estes antepassados, como criaturas vindas de um planeta distante e imperfeito onde tudo se movia às sacudidelas e se pegava em material radioactivo com as mãos. Ou então, olha como Tim Burton, com um brilhozinho nos olhos, deixando perceber de onde vem tudo o que há para olhar em The Nightmare Before Christmas (O Estranho Mundo de Jack, 1993).
Entre estas duas atitudes (a do chega para lá do bafiento e a do chega para cá da nostalgia) penso haver uma terceira que nos convém recuperar. Obviamente que todo o trabalho de Ray está mais do que recuperado e não há trintão como eu que não se lembre da ponta final da sua carreira e da batalha com a medusa em Clash of the Titans (Choque de Titãs, 1981) por exemplo. O mais recuperável está numa frase que penso ter sido dita pelo actor principal do filme, William Hopper, que refere a certa altura que havia um brilho nos olhos do réptil mas que ele não sabia explicar como tinha sido feito. Essa incapacidade de explicar, esta técnica que trabalha sobre uma noção de imperfeição é aquilo que nos deixou o imaginário de Harryhausen, e em particular este Ymir (à qual Ray não pode chamar Ymir pois era demasiado próximo do título árabe Emir). Mais do que ter decidido dar ao lagarto um torso humano para que a proximidade fosse mais evidente, são os pequenos elementos imperfeitos aqueles que se evidenciam.
Muito falada (e com razão) é a sequência em que a criatura nasce e sai do ovinho no atrelado da personagem do zoólogo. Pouco depois, quando a filha deste entra de rompante e abre a luz, Harryhausen tem o cuidado que nos mostrar como Ymir se sente perturbado com a súbita claridade e coloca uma pata à frente dos olhos. Este estranhamento, que é o estranhamento pela vinda a contragosto a um mundo que se revelará hostil, é um sinal de fragilidade que não mais o deixará ao longo do filme. Mas há mais: o respirar da criatura com a caixa das costelas que vem e vai, o som assustado (entre um elefante e um felino) que faz constantemente, perturbando-nos a tímpano, o atacar apenas quando é provocado (as ovelhas nada sofrem a pastar quietinhas no pasto, mas um cão nervoso num celeiro é despedaçado no melhor ecrã que existe, a sombra) e claro, a cauda do bicho que se move constante e sinuosamente, como uma terceira pata. Não, ainda não falarei de pénis aqui, só daqui a mais um parágrafo. Tenham paciência.
Se Ymir é o ser menos de plástico de 20 Million Miles to Earth, depois há aquela quantidade de pormenores que envelhecem o filme mas que hoje são reciclados como grãozinhos de sal camp
Todas as cenas de Ymir são os pedaços moventes de um filme que sabemos muito bem onde se encontra na história do cinema. A criatura bruta mas dócil ante uma impiedosa humanidade é filão da história de King Kong (1933) (onde trabalhou o mestre de Harryhausen, Willis O’Brien), ou mesmo da doçura de Frankenstein (1931). Depois as referências são inúmeras para a frente e para trás: a destruição de certas partes de Roma não tem como não ter ligações com o outro réptil oficial destruidor de cidades, Gojira, e mais tarde, a sensibilidade de Harryhausen teve contornos mais polidos no ET (1982) [essa coisa do olhar de que falava Hopper tornou-se mais identificável, num meio caminho ao que se pode hoje etiquetar como olhinhos de bambi] e até um filme como Alien (Alien – O 8.º Passageiro, 1979), não pode não ir buscar a nhanha dos ovinhos para essas outras criaturas menos amáveis que infernizaram o juízo à Sigourney Weaver.
Se estas influências se movem, se Ymir é o ser menos de plástico de 20 Million Miles to Earth, depois há aquela quantidade de pormenores que envelhecem o filme mas que hoje são reciclados como grãozinhos de sal camp. Os pescadores da costa italiana falam no seu inglês mais macarrónico para fingirem ser locais; os mergulhadores mergulham em cuequinhas; há estendais por cima da câmara municipal; descobre-se a razão pela qual a criatura é resistente aos tiros: não tem coração, nem pulmões (!); três ou quatro frases e olhares matadores bastam para pintar um clima entre a filha do zoólogo e o general sobrevivente da missão espacial a Vénus que trouxe o nosso amigo. Esse amor e esse terror, mostram-se desconjuntadamente, por forma a que o filme seja às mãos do realizador húngaro Nathan Jure [que ganhou um oscar pela art direction em How Green Was My Valley (O Vale Era Verde, 1941)] um mix entre um creature feature a uma versão acelerada do Roman Holiday (Férias em Roma, 1953).
E depois (finalmente) há a refastelamento dos zizekianos esfomeados da psicanálise perversa: a criatura que de Venus vem rima sonoramente (em inglês pelo menos) com penis e isso porque a criatura cresce e cresce cada vez mais. Primeiro, um pequeno e fofo Gremlin a escapar-se do ovo, que horas depois já rasga as barras da sua jaula como se fosse de papelão, e assim até atingir godzilescas proporções, you know what I mean. A lagartixa provoca o pânico dos que o vêem mas algumas personagens, sempre mulheres, proferem frases mesmo a pedir uma chicotada psicanalítica: “The size!”, “It grows bigger and bigger”, “But its claw was so strangely warm…”. Elas coram e nós (sor)rimos.
Com ou sem pseudo-erotismo entre o homem e a sua criatura, o certo é que essa passagem tortuosa do presente ao futuro tem tudo a ganhar com essa extrema eficiência de Harryhausen na criação de criaturas para espíritos livres, humanas, demasiado humanas na sua inexplicabilidade e fragilidade. Ymir é uma das suas melhores.