Uma conversa, um artigo de jornal e a iminência de uma estreia conduziram-me à descoberta de um filme na televisão nacional e, acima de tudo, à redescoberta de uma parte da obra de um grande actor. Essa estreia foi The Humbling (A Humilhação, 2014), a interlocutora na conversa tal como quem assinou o artigo foi a nova crítica do Diário de Notícias, a walshiana Inês Lourenço. O grande actor é, como tinha de ser este mês, Al Pacino. A sua faceta menos citada, digna de redescoberta, é a que inclui Harold Becker na cadeira de realizador, normalmente esquecido a favor dos “pesos-pesados” Francis Ford Coppola, Sidney Lumet, Brian De Palma ou Michael Mann. Injustamente subvalorizado hoje em dia, Harold Becker assinou filmes de grande nível nos anos 70 e 80, tais como The Onion Field (Crime em Campo de Cebolas, 1979) ou The Boost (Ambição de Glória, 1988), dois títulos onde pontifica outro dos melhores actores da sua geração, James Woods. Num cinema que vive de uma atracção fatal pelos grandes actores e a sua intrínseca dimensão trágica, não é difícil de encontrar as razões por trás dessa associação com Al Pacino. A partir de uma descoberta da televisão portuguesa, mais concretamente de um dos seus filmes mais exibidos, encontro na empresa Pacino-Becker o tema ideal desta Civic TV.
Com Becker, Pacino fez dois filmes. O primeiro, Sea of Love (Perigosa Sedução, 1989), é a pedra angular que lhe permitirá alterar a direcção da carreira depois de uma série de fracassos, dando o balanço necessário para elevar o seu currículo durante os anos 90 com filmes como The Godfather: Part III (O Padrinho: Parte III, 1990), Carlito’s Way (Perseguido pelo Passado, 1990) e Heat (Heat – Cidade Sob Pressão, 1995). O segundo, City Hall (A Sombra da Corrupção, 1996), foi o título que apanhei a dar na televisão (canal Cinemundo, no passado dia 6 deste mês) e que me motivou o esmiuçamento do character Al Pacino e da sua relação com esse, hoje pouco reconhecido, cineasta de Nova Iorque. No seu artigo «Al Pacino ou o regresso do ator que não dorme», que saiu no passado dia 7 no DN, Inês Lourenço pega numa frase de The Humbling para definir toda uma carreira: Pacino tem sido, quase sempre, o homem que nunca dorme. Essa falta de sono produz uma névoa sobre os acontecimentos que rodeiam as personagens que interpreta. Sentimos essa confusão mental, “alucinatória”, seja nos palcos do recente filme de Barry Levinson, seja nos dias sem noite do Alasca naquela que é, até hoje, a sua última grande interpretação para o cinema, Insomnia (Insónia, 2002) de Christopher Nolan. [Não quero com isto menorizar a sua excelente interpretação em Phil Spector (2013) de David Mamet, título ainda pouco valorizado ao qual dediquei uma destas crónicas. Pese embora a rainha Helen Mirren, ainda sexy e brilhante, seja dona e senhora desse filme, Pacino tem momentos de explosão como não via há muito.]
No primeiro filme que faz com Harold Becker, Sea of Love, filme que interrompe o sono a que se remetera a sua popularidade artística nesses anos, Pacino interpreta um polícia que já vê à distância os seus “verdes anos”, que perdeu a mulher para um colega e que passa as noites a enfrascar-se sozinho em bares ou no seu apartamento de solteirão. Obcecado pelo que lhe resta, o trabalho, Pacino só vai encontrar uma “segunda oportunidade” na vida, isto é, no amor, durante uma operação undercover que visa desmascarar o autor de uma série de assassínios de homens que colocaram anúncios no jornal à procura de companhia. O que começa nos moldes tradicionais de um thriller noir em plena Nova Iorque vai-se transformar numa das histórias românticas mais desesperadas do cinema americano. Pacino apaixona-se por uma possível suspeita, interpretada por Ellen Barkin, durante um encontro de fachada que ele e o colega (grande John Goodman) montam como isco para o misterioso criminoso. A loiraça “sexy as hell”, muito mais nova do que ele, polícia em declínio nas suas forças, traz-lhe a promessa, apimentada q.b., de uma nova vida. A personagem de Pacino descreve a importância da relação de um modo significativo: com ela, consegue finalmente dormir. Há, aliás, um momento em que este polícia à beira de um precipício psicológico torna uma declaração de amor num patético, quase humilhante, “pedido de clemência” para ser amado. Ele precisa de companhia. Está nos limites de si.
Em City Hall, Pacino aparece como o homem imparável, intocável, inquestionável, mas mesmo aí ele também é o homem solitário consumido por si mesmo, sempre à beira da implosão.
De facto, há qualquer coisa em Pacino que vai para lá ou, na realidade, parece estar sempre aquém das suas personagens, sobretudo das suas melhores personagens. Desde logo, já vimos, há nele esta incapacidade de fechar os olhos e descansar, algo que se põe em evidência nas suas olheiras profundas, as mesmas que Pacino mascara com o lápis preto no início de The Humbling. Por outro lado, ou se calhar como corolário disso mesmo, Pacino tem uma especial inclinação para dar corpo a homens solitários, social e sexualmente impotentes, que não conseguem aguentar relações de longa duração ou responder, como mandam as regras, às suas responsabilidades profissionais. De onde vem então a força, mesmo a energia ou o carisma faíscante da sua presença? Vem, paradoxalmente, do fundo desse cansaço frusto pela vida. Pacino não consegue dormir, não consegue amar, não consegue foder, não consegue trabalhar (às vezes nem isso)… Resta-lhe a bebida, a solidão ou a tal oportunidade para “explodir” e rebelar-se contra si e esse intestinal mal de vivre que lhe queima o espírito – vistas as coisas por este prisma, não é assim tão surpreendente o facto de ter feito de diabo em Devil’s Advocate (O Advogado do Diabo, 1997). Quando “solta o demónio” que o habita, malgrado as suas “circunstâncias de vida”, de Pacino sai, como que regurgitado, todo um outro corpo. E esse corpo tem como medium a sua voz, qual “imagem de marca” dessa fúria que lhe vem das entranhas por não conseguir ser no mundo.
Em City Hall, segunda e última colaboração com Harold Becker, Pacino interpreta o mayor de Nova Iorque. E também aí não tem a vida facilitada, porque tem como braço direito – braço que vai ter de torcer… – um jovem (John Cusack) que não trocará a sua probidade pela admiração seguidista que parece nutrir pelo chefe. Este é um filme sobre a promiscuidade entre órgãos de soberania, tribunais e poder executivo, que tem no centro um drama edipiano entre o homem puro e o homem impuro – relação que se reedita, como uma espécie de remake do filme de Becker, no já citado Devil’s Advocate. Mas também aqui a impureza não vem como uma mensagem escrita na testa da personagem de Pacino. Ele é o mayor no filme, mas ele também é o mayor do filme. Pacino é o homem, como diz a certa altura o próprio, que “está sempre bem”, que domina cada cena com o seu “carisma” de palco, o mesmo que decai como uma pila murcha em The Humbling.
Nessa sua última colaboração com Harold Becker, Pacino aparece como o homem imparável, intocável, inquestionável, mas mesmo aí ele também é o homem solitário (não lhe conhecemos nenhuma mulher) consumido por si mesmo, sempre à beira da implosão. A mesma força destrutiva corre-lhe nas veias e, digo agora eu de improviso, é ela o principal foreshadowing da traição shakespeariana que está para vir. King Lear morreu de um coração despedaçado, não com um punhal ensanguentado nas mãos. De uma maneira ou de outra, Pacino acaba apunhalado por si mesmo tanto em The Humbling como em City Hall. O melhor Pacino é sempre o mayor todo-poderoso da sua impossibilidade; em conclusão, da sua impotência em, completa ou satisfatoriamente, ser no mundo.
Um obrigado a Luís Miguel Oliveira, que em boa hora me chamou a atenção para o cinema de Harold Becker.