Susumu Hani é o grande cineasta expedicionário do Japão. Depois de, nos anos 50, ter trabalhado como documentarista e realizado uma série de curtas-metragens sobre a infância, e de, no início dos anos 60, ter assinado brilhantes obras independentes de ficção que mereceram a distribuição da Art Theatre Guild, quebrou a longa tradição interna do cinema nipónico – à excepção das obras destinadas aos grandes festivais europeus, o cinema japonês era produzido no Japão, por japoneses e para japoneses – e partiu, numa missão rouchiana ou proto-herzoguiana, para filmar o mundo com a sua câmara.
A aventura levou Susumu Hani a três continentes: à América do Sul, com Andesu no hanayome (1966), à Europa, com Yôsei no uta (1972), e a África, com Bwana Toshi no uta (1967) e Afurika monogatari (1980). Porém, ao contrário de Rouch ou Herzog, ilustres poliglotas para quem a comunicação linguística é obstáculo de pouca monta, Hani dificilmente se exprimia em idiomas europeus, tendo realizado as suas longas-metragens com recurso a um ou vários intérpretes que mediavam os diálogos. Por outro lado, no caso dos três primeiros projectos, Hani partiu sempre com poucos actores e com argumentos ainda em fase embrionária, esperando encontrar nos locais que visitava intérpretes para as suas ideias de narrativa.
Afurika monogatari é uma extraordinária e complexa compilação de imagens da natureza, acompanhando, sem palavras, o surgimento das principais séries de televisão sobre a vida selvagem
Numa entrevista concedida a Joan Mellen nos anos 70, Hani explica o processo de “casting” para Bwana Toshi no uta: “When I arrived in Nairobi, I tried to find out whether there was an amateur acting group. I finally discovered one or two groups, but they were composed solely of whites and East Indians. There was one black African who was thinking of creating an amateur acting group in Nairobi. I met him and talked with him. His ideas were most interesting but he gave us no concrete help because his plans were only in the talking stage. […] When I was staying in Nairobi I met one African who could drive a car. At first I hired him as a driver. He was a very nice man and also had a winning personality, a nice facial quality, and was very clever. He played the role of the teacher in the film. […] As we were traveling, we picked up several other people. […] Finally we got permission from the tribal leader and made the film. The interesting thing is that none of the Africans had ever seen a movie except for the driver. They could not grasp what a movie was.”. Hani repetiu a receita em todos os outros filmes até Afurika monogatari, que co-realizou com Simon Trevor, um director de fotografia especializado em documentários de vida selvagem.
Como se enquadra, então, esta última obra na série de peças estrangeiras de Hani? Todas as circunstâncias de produção apontam para um desvio da estratégia inicial: Afurika monogatari é um filme produzido pela Sanrio (a empresa responsável pelo franchise da Hello Kitty), com um público-alvo infantil, um argumento delineado previamente e baseado numa história original de Shûji Terayama, um rosto familiar do público cinéfilo, James Stewart, e outro das revistas de moda e do universo da hidroginástica, Eleonora Vallone. Conta apenas com dois actores africanos não-profissionais e foi todo ele dobrado para japonês para a apresentação nacional. Se Afurika monogatari tivesse sido realizado dez anos antes, facilmente poderíamos tentar inseri-lo numa cronologia de filmes hippies, relacionando-o com as duas primeiras (e ingénuas) longas-metragens de Barbet Schroeder (More, 1969, e La Vallée, 1972), semelhantes no tema e abordagem plástica, ou com os gritos ecologistas de Silent Running (O Cosmonauta Perdido, 1972) ou Soylent Green (À Beira do Fim, 1973). No entanto, esta obra de Hani, pelo seu carácter tardio e pela bizarra conjugação de vicissitudes que presidiram à sua construção, é um dos objectos cinemáticos mais inclassificáveis da segunda metade do século XX, resistindo a qualquer rotulação ou, na verdade, a qualquer avaliação regida pelos parâmetros canónicos do bom gosto. Comecemos, assim, por enumerar as esdrúxulas singularidades de Afurika monogatari:
1. O argumento. A trama ambientalista da longa-metragem resume-se a um encontro entre quatro figuras: um ancião de chapéu colonial, James Stewart, a sua neta selvagem Maya, intepretada por uma desconhecida actriz sino-americana de nome Kathleen McOsker (creditada apenas como Kathy), um piloto aventureiro amnésico que destrói o avião num desastre na floresta, Philip Sayer, e a elegante mulher que vem salvá-lo, Eleonora Vallone. A narração de Hani assume imediatamente uma lógica maniqueísta, onde o trio inicial se situa numa ponta – a dos amantes da natureza e dos animais – e a mulher na outra – a dos capitalistas malfeitores e desumanos. Como num macabro conto infantil, a mulher baleia o marido aviador quando se apercebe das perturbações de memória que o impedirão de abandonar a savana e regressar à vida civilizada da cidade. A ferida, no entanto, é curada pelos poderes mágicos do chefe da tribo e a paz – a paz luxuriante de The Blue Lagoon (A Lagoa Azul, 1980), realizado no mesmo ano – regressa à Natureza.
2. James Stewart. Aqui as histórias de produção facilitam a análise: o veterano da Pensilvânia, já reformado dos ecrãs, estava a passar férias no Quénia quando se cruzou com a equipa de Hani. O realizador japonês convenceu Stewart a participar no filme, não lhe tendo explicado, todavia, que ele teria um papel fundamental, estando presente em praticamente todas as cenas protagonizadas por seres humanos. O velho Howard Kemp de The Naked Spur (Esporas de Aço, 1953), de férias em África e, nitidamente, de férias no filme, não fazia ideia do que se estava a passar, tendo, posteriormente, confessado numa entrevista: “[I] never did understand what it was all about […] I did it on a whim.”. A inépcia e exogeneidade do actor americano manifestam-se nalgumas das cenas mais alienígenas do filme, como aquelas em que a sua personagem, conhecida apenas como “The Old Man”, acaricia, abraça e alimenta animais da mais variada ordem, incluindo um chimpanzé, uma ave de rapina e um rinoceronte chamado Sarah, e mantém o seguinte diálogo com a neta:
“- Grandfather, the zebras and the gazelles are having babies again.
– Oh, that means you’ll have a lot more friends now.
– Yes, I have so many animal friends now.”
3. A dobragem. O filme foi dobrado em japonês para o circuito nacional, tendo circulado, no mercado interno, exclusivamente nessa versão. De seguida, uma variante internacional com menos 25 minutos recuperou o áudio original em inglês e fez carreira nos Estados Unidos, no mercado do VHS, com o título The Green Horizon. A única versão actualmente disponível é uma síntese das duas, sendo que apresenta os 120 minutos originais, mas com 25 minutos da dobragem japonesa. O resultado sublinha a esquizofrenia do projecto: em certos monólogos da personagem de Eleonora Vallone, por exemplo, o discurso alterna entre o inglês e o japonês.
Haverá, então, alguma salvação neste desastrado Afurika monogatari para além de um tímido anticolonialismo e uma mendicante poesia ecologista? Podendo ser visto, efectivamente, como uma mera curiosidade fílmica, enquanto espécime do cinema kitsch dos anos 80 ou das exóticas aventuras de realizadores japoneses no estrangeiro, o filme do Hani e Trevor é, inegavelmente, uma extraordinária e complexa compilação de imagens da natureza, acompanhando, sem palavras, o surgimento das principais séries de televisão sobre a vida selvagem e antecipando até a mítica Natural World da BBC (1983-presente). Não assumindo a força dos bestiários de outros autores nipónicos, como o de Shôhei Imamura em Nippon konchûki (A Mulher Insecto, 1963, que Hani considerava, aliás, uma peça notável, “pleinement naturaliste”) e Kamigami no fukaki yokubô (O Profundo Desejo dos Deuses, 1968), e sendo frequentemente amolecida por um acompanhamento musical de pobreza constrangedora, a abordagem de Hani e de Trevor é exaustiva e inspirada, conseguindo obter, através de uma filmagem paciente e rigorosa (e eventualmente já levada a cabo, em parte, para o programa Dobutsu Kazoku, que Hani realizara para a NHK), algumas imagens de admirável robustez: uma caçada de leões, o nascimento e primeiros passos de uma gazela e de uma zebra, o afogamento de uma manada de búfalos durante uma cheia, a morte de um mangusto. Na verdade, a intensidade da “interpretação” dos animais é muito superior à dos actores humanos. Se, por momentos, esquecêssemos Darwin e acreditássemos na infalibilidade dos processos criativos revolucionários colocados em prática por Hani nos seus filmes japoneses dos anos 60 e 70, poderíamos facilmente acreditar que o cineasta da Nova Vaga Japonesa os tinha também aplicado em Afurika monogatari. Em Gozenchu no jikanwari (1972), Hani tinha distribuído câmaras de super 8 aos seus actores e filmado os momentos de captação das imagens que, posteriormente, seriam integradas na montagem da longa-metragem. Terá Hani filmado as cenas humanas e entregue câmaras de super 8 aos chimpanzés para criar as sequências zoológicas? Será esta a explicação da heterogeneidade desta obra e o motivo do seu falhanço derradeiro? Num ponto, terá Hani razão: a Natureza é superior ao Homem. Pelo menos neste filme.