Chama-se Educação Europeia. (…) educação europeia são as bombas, os massacres, os reféns fuzilados, os homens obrigados a viver em buracos, como animais… Mas eu aceitei o desafio. Podem dizer à vontade que a liberdade, a dignidade, a honra de ser homem, enfim, tudo isso, não passam de um conto de fadas, pelo qual as pessoas morrem. A verdade é que há momentos na história, momentos como aquele que vivemos, em que tudo o que impede o homem de desesperar, tudo o que lhe permite acreditar e continuar a viver, precisa de um esconderijo, de um refúgio. Por vezes, esse refúgio é apenas uma canção, um poema, uma música, um livro. Eu queria que o meu livro fosse um desses refúgios; que, ao abri-lo, depois da guerra, quando tudo tiver acabado, os homens reencontrassem o seu bem intacto, que soubessem que puderam a obrigar-nos a viver como animais, mas que não conseguiram obrigar-nos a desesperar.
Dobranski, em Romain Gary, Educação Europeia (Sextante Editora, 2014, p. 62)
Marlen Khutsiev, Aleksei German, Elem Klimov, Grigoriy Chukhray. Estes são apenas alguns dos nomes do cinema moderno soviético que, pese embora pertencentes a diferentes gerações, partilham o facto de se verem ofuscados pelos de Kalatozov, Sergei Parajanov ou, obviamente e acima de todos, Tarkovsky, nessa medida exigindo, hoje, um esforço de redescoberta profundo das suas cinematografias. De German, por exemplo, além das linhas que nós próprios escrevemos a propósito de Proverka na dorogakh (Trial on the Road, 1971), chegou-nos, mais recentemente, o excelente contributo de Carlos Natálio. Mas é preciso mais, e a presença, na última edição do LEFFEST, de Khutsiev foi um importante passo nessa direcção. Dizemos “redescoberta” no seu sentido mais estrito, com isto querendo significar que não se pugna, aqui, como tantas vezes acontece (o que não é necessariamente mau), por qualquer exercício revisionista cinéfilo, do tipo de pôr o passado em perspectiva e, desse modo, encontrar qualidades que o visionamento co-contemporâneo dos filmes nem sempre permite. Não, dizemos “redescoberta” porque o génio destas cinematografias está aí, em bruto, não sendo necessária qualquer releitura histórico-crítica, pois que a tarefa está, nesta perspectiva, bem mais facilitada, tal é o valor da matéria à disposição.
É justamente exemplo do que se acaba de dizer a obra-prima Ballada o soldate (A Balada do Soldado, 1959), filme “de guerra” (as aspas justificar-se-ão mais adiante) e o segundo na filmografia de Grigoriy Chukhray, premiado em Cannes (Prémio Especial do Júri, em 1960), nos EUA (em San Francisco e nomeado para Óscar de melhor argumento original) e mesmo na própria URSS (ao que parece, Khrushchev era um forte admirador do cineasta). Chukhray foi, ele mesmo, note-se, um veterano condecorado da 2.ª Guerra Mundial, elemento nada casual num filme cuja narrativa tem, precisamente, na condecoração de guerra do jovem Alyosha Skyortsov (Vladimir Ivashov), motivada pelo abatimento a tiro de dois tanques nazis, o seu espoletar. É como se, no momento da condecoração, a boca de Alyosha – em quem temos a tentação de ver o pequeno Ivan de Tarkovsky [Ivanovo detstvo (A Infância de Ivan, 1962)] que não morreu… – verbalizasse o pensamento de Chukhray (escusado sublinhar, dito isto, o autorismo do cinema de Chukhray): em vez da condecoração, posso ir a casa visitar a minha mãe e consertar o telhado?
A licença que lhe é atribuída será uma licença também para nós, espectadores, entrarmos na Rússia e no seu povo em plena 2.ª Guerra Mundial – não na Rossiya-Matushka (“Mãe-Rússia”) do discurso oficial da propaganda, grandiosa e gloriosa, mas num país que, como todos em situações extremas de guerra, vive nas maiores privações, as quais, por sua vez, são fonte dos mais espinhosos dilemas morais. No caminho de volta para a sua aldeia e para a sua mãe, autêntico e emocionado “regresso ao ventre” (mais do que às “raízes”), Alyosha terá que ultrapassar os mais diversos obstáculos e adversidades, designadamente, a necessidade de, no percurso, se ter que servir de todos os meios de transporte e mais alguns (carro, comboio, a pé, inclusive de jangada). Circunstância que faz de Ballada o soldate um poderoso mas inesperado road movie e, sobretudo, um filme sempre “em movimento”, ideia que condiz bem com a energia e a determinação de um jovem bom e prestável como é Alyosha. E é nessa qualidade de road movie que as aspas a que nos referimos inicialmente se justificam, visto que a demanda de Alyosha, em direcção a sua mãe, o afasta – a si e ao filme – do palco da guerra propriamente dita (apenas visível nas primeiras e impressionantes cenas em que este é perseguido pelos tanques, com um fabuloso e arrojado plano “virado do avesso”), como que nos querendo dar a ver, à medida que penetramos na Rússia “profunda” (geográfica e socialmente), a “outra guerra”, derivada da primeira e com “baixas” tão ou mais profundas. Falamos das aventuras e desventuras que qualquer guerra, enquanto desistência da racionalidade em que paradigmaticamente se constitui, gera: o soldado corrupto que chantageia o seu semelhante em troca de uma lata de carne; o soldado estropiado sem uma perna que não quer voltar para a mulher, por se sentir um fardo inútil; os amores que resistem ou não resistem à distância e ao tempo; o pai doente a dar as últimas que pergunta pelo filho em combate; as famílias ucranianas que fogem para os Montes Urais (a mãe de Chukhray era ucraniana). Pelo meio de tudo isto, o complexo mosaico de mentiras e meias-verdades que os homens constroem por forma a suster o desespero, puro instinto de sobrevivência. É o caso daquele mesmo pai que, ouvindo a mentira – da boca de Alyosha – de que o seu filho está muito bem e é um exemplo para todos os soldados, pede, por sua vez, ao núncio que minta ao seu filho dizendo-lhe que o pai está igualmente óptimo de saúde e que o aguarda, assim como a sua mulher (apesar de saber que esta o trai com outro homem). Colocando, sob a forma da mentira, as palavras do discurso oficial da propaganda na boca do jovem Alyosha, Chukhray aplica um subliminar, mas poderoso, soco no estômago das autoridades e de todo um manto discursivo perfeitamente alienado da realidade.
Ballada o soldate: poema visual que condensa um cinema, tal como o de Aleksei German, vincadamente personalista, por oposição aos grandes projectos ideológicos transpersonalistas que marcaram o século XX, com as consequências que se conhecem.
Pelo que ficou dito, rapidamente se infere como este foi, à data, um filme incómodo para as autoridades soviéticas, desde logo por se perfilar, talqualmente Proverka na dorogakh, como um filme profundamente anti-bélico, algo que um censor confortavelmente qualificaria de anti-patriótico (se bem que os situacionistas sempre possam dizer que, na era do “degelo”, pós-estalinista, este era já um filme “aceitável” mesmo aos olhos do sistema, e a verdade é que a sua exibição e distribuição não foram condicionadas como outros filmes o foram na era estalinista). E essa leitura parte imediatamente do título, que, referindo-se à balada do soldado (e não de um soldado concreto), resume, com um vocábulo apenas, a intenção universalizante e abstractizante de Chukhray. O filme é sobre Alyosha como podia ser sobre qualquer outro soldado soviético, inglês, francês, alemão, é sobre a URSS em tempo de guerra como sobre outro país qualquer nas mesmas circunstâncias, não havendo sequer o apontar da mira a determinado exército ou a uma ideologia concreta (nem por uma vez, salvo erro, se ouve qualquer referência aos “nazismo”, ao “comunismo” ou outro). Não há espaço, pois, para a apologia do soldado soviético heroico e glorioso; ao invés, e tal como as palavras do narrador nos ficam a ressoar na cabeça por muito tempo, Alyosha era apenas o filho de uma Mãe de quem ela sabia tudo desde o dia em que ele nasceu. Poema visual (enquanto ouvimos o narrador, Chukhray filma um espantoso plano da mãe olhando o infinito) que condensa um cinema, tal como o de Aleksei German, vincadamente personalista, i.e., centrado na essencialidade da pessoa humana, do indivíduo, por oposição aos grandes projectos ideológicos transpersonalistas que marcaram o século XX, com as consequências que se conhecem. Filme político, pois então, mas “político” no que de mais natural e instintivo o termo comporta, no caso, a aversão à guerra enquanto dialéctica do absurdo cujos supostos valores maiores perseguidos se desligam absolutamente do homem comum, do homem de todos os dias. Mas político, outrossim, num sentido mais subversivo, ideia bem expressa no modo como, ainda no início do filme, o narrador informa que nos será contada uma história que ninguém sabe, que nem a sua mãe [a de Alyosha] sabe. Neste secretismo indo a denúncia da “verdadeira guerra”, a que o povo soviético – embora o filme acabe com o narrador a homenagear Alyosha como um soldado russo, assim se sublinhando a pertença étnica ou nacional, em vez da política (artificiosa e imposta pela mão de ferro de Moscovo) – não conhece por lhe ser ocultada pela corte estalinista, preocupada em evitar o derradeiro desfalque moral da população e em manter o ânimo elevado junto das tropas. Neste “levantar do véu”, Ballada o soldate, em si um filme profundamente poético (com sequências oníricas, algumas quase do domínio do surreal), acabar por ser, paradoxalmente e à sua maneira, um filme realista, não no sentido conceptual de neo-realismo (italiano), mas no peculiar sentido de pretender mostrar a verdadeira realidade da guerra, o “outro lado”, o dos dramas das pessoas comuns a quem os efeitos da guerra se fazem tangivelmente sentir na perda de um filho ou na falta de uma sopa em muitos dias. Talqualmente se ouve, de modo explícito, em Moy drug Ivan Lapshin (My Friend Lapshin, 1984) de Aleksei German, também uma declaração de amor a essas pessoas comuns perpassa, aqui implicitamente, o filme de Chukhray.
O sofrimento e o negrume da guerra não fazem, contudo, de Ballada o soldate um filme soturno ou “derrotado”, outra forma de nos referirmos ao modo como Chukhray consegue encontrar a mais fervilhante felicidade e beleza mesmo entre a desolação – como o vital esconderijo ou refúgio reclamado por Dobranski no romance de Romain Gary acima citado. Aliás, todo a personagem de Alyosha, naturalmente bom, generoso, dado aos outros, é exemplo paradigmático disso mesmo. Mas também os mais belos e fecundos sentimentos e emoções podem vir ao de cima por entre os escombros, os mortos e a fome, e é nesse passo que o amor que desabrocha entre Alyosha e Shura (Zhanna Prokhorenko) resgata alguns dos mais poéticos momentos ao filme – e dos mais poéticos que nos lembramos de ver na história do cinema, fruto da leveza no movimento da câmara e de uma fotografia admirável. Destacamos dois: o plano dos dois sem trocarem uma única palavra no comboio apinhado de gente (possível de ser visionado aqui, a partir do minuto 08:08) e em que, a certa altura (09:26), o close-up lateral sobre Shura parece retirado de um filme de animação de Miyazaki; e o maravilhoso fondu das árvores da paisagem com as imagens de Shura (12:35), a transbordar de desejo e ternura. Estes são apenas alguns exemplos da atmosfera extremamente poética que vai graciosamente pontuando um filme que, sendo “de guerra”, “faz guerra” às suas consequências dramáticas, i.e., procura resistir-lhes através da exaltação dos sentimentos mais nobres do homem (a amizade, a solidariedade, a lealdade, o amor). Um filme também político por isto, por ser um filme, nesta medida, de resistência.
Terminamos onde começámos. Pelo meio, houve tempo, demasiado curto, para um abraço entre mãe e filho, talvez o mais urgente abraço da história do cinema. Terminamos, pois, no caminho que vai dar à aldeia, no torturado rosto da mãe que sabe que o filho não volta, mas que, ainda assim, contempla, inerte, o trilho em terra batida que vai dar a muito longe dali – o trilho de uma vida que também se (des)fez em poeira muito longe dali, numa anónima trincheira. Em Boyhood (Boyhood: Momentos de Uma Vida, 2014), Patricia Arquette acabava o filme a dizer ao filho, quando este se prepara para sair de casa e ir estudar para fora, “I just thought there would be more”, tocante súmula de como a vida passa a correr e nem sempre toma os caminhos que imaginámos, para nós e para os que amamos. Em Ballada o soldate, esse lamento ecoa com maior ressonância trágica ainda, porque Alyosha, embora, como Mason, tenha partido, ao contrário deste, não regressará – e, por isso, para a sua mãe, já viúva de um marido perdido também na guerra, não haverá mesmo “mais nada” (more). Aqui, nem sequer se pode dizer que a vida tenha passado a correr; foi, simplesmente, interrompida, como a ponte que, de um momento para o outro, bombardeada por aviões, é abruptamente despedaçada ao meio. Como a rapariga que, morta nesse rebentamento, é filmada num espantoso plano de “pernas para o ar” (como o mundo em que vive…). Quem já teve oportunidade de calcorrear a Europa (talvez seja assim também no resto mundo, não o podemos dizer com a mesma segurança), saberá que, em toda a cidade europeia, um “monumento ao soldado desconhecido” persiste, tradução museológica de um continente cuja “velhice” não rima com a experiência e a sabedoria que costumamos associar aos anciões de provecta idade. Provam-no as sucessivas guerras e desuniões, prova-o a Educação Europeia de Gary, provam-no a existência e a vitalidade de um filme como Ballada o soldate.
Ballada o soldate, um dos mais belos e importantes filmes do cinema soviético, é exibido dia 12 de Maio, pelas 21h45, no Cineclube de Guimarães.