Imagine-se este filme produzido no contexto da indústria do cinema norte-americano. Os cães, então reproduzidos e animados digitalmente, seriam em muito maior número, e a carga de praga bíblica assumiria proporções espectaculares de outra grandeza. Agora consideremos o mesmo filme nas mãos de um realizador de cinema, daqueles a valer. O filme foi feito. White Dog (O Cão Branco, 1982) de Samuel Fuller. Um único cão (ou vários a fazer de um só) foi suficiente para dar a perceber como o ódio (aplica-se quer aos animais como aos humanos) resulta de um condicionamento exercido sob a forma de violência física e psicológica. Fehér isten (Deus Branco, 2014) do húngaro Kornél Mundruczó encontra-se no meio destas duas escalas de produção, que correspondem a diferentes entendimentos do modo de fazer cinema: encher o olho com quantidade e velocidade ou antes criar matéria para reflexão. Mundruczó situa-se numa espécie de no dog’s land, justamente porque falha em relação àqueles que pretende enaltecer: os cães (pelos humanos), vítimas dos homens. Homo homini lupus (Plauto).
O realizador, que acumula funções ao nível do argumento, recorre a um facilitismo dramático que outra coisa não é que o paradoxo da economia narrativa.
A Fehér isten falta sobretudo coerência interna. A necessidade de contar aquela história basta. Os cães são filmados como pessoas (antropomorfizados é como se diz) em 90% do tempo e ao soar de uma melodia particular num trompete voltam a ser olhados (filmados) como cães. Fim de fábula. Joga também com demasiados arquétipos ficcionais para um único filme. A escravatura e o Holocausto (os cães perseguidos e mais tarde predadores são todos rafeiros). A exegese religiosa. A Lassie e o Planeta dos Macacos. O realizador, que acumula funções ao nível do argumento, recorre a um facilitismo dramático que outra coisa não é que o paradoxo da economia narrativa. Isto é pedir demasiado à suspensão da descrença do espectador. Fehér isten leva muito tempo com a história do abandono e dos maus tratos infligidos a Hagen (o cão protagonista; o “deus branco”) e despacha por imperativos de ordem vária a vingança dos animais. Entende-se a dificuldade que representa o trabalho desta segunda metade (coreografar e dirigir tanto bicho) mas é uma expectativa que o filme cria, desde logo com a sequência de abertura em que vemos a cidade deserta e a rapariga de bicicleta perseguida pela matilha em fúria, e o que se verá em seguida é um dramalhão convencional, de um esquematismo mais próprio do produto televisivo para consumo imediato.
Fehér isten passou há um ano em Cannes, onde arrecadou o prémio da secção Un Certain Regard e o Palm Dog Award, atribuído excepcionalmente e que premeia com inteira justiça o trabalho com os cães usados no filme. É aquilo que retemos: as imagens muitos belas dos cães correndo pelas ruas vazias ou quando aterrorizam pessoas pelo caminho. Incluída no genérico final está a informação de que todos os cães de Fehér isten foram adoptados. O intuito do filme é nobre, ninguém dúvida. A estratégica é que é forçada e o engenho do realizador mais apressado que a passada dos canídeos. Ou como de belos sentimentos também se fazem filmes dramaturgicamente sofríveis. Para ombrear com Charles Dickens são precisas muitas páginas de imagem-tempo.