HARVARD NA GULBENKIAN 12: OLIVEIRA OU O TEATRO DA INOCÊNCIA

De uma colaboração entre o Fundação Calouste Gulbenkian e o Harvard Film Archive nasceu o programa HARVARD NA GULBENKIAN. Aqui assinalamos o encerrar de um ciclo que se prolongou em Lisboa entre Novembro de 2013 e Março de 2015, com curadoria de Haden Guest e Joaquim Sapinho e produzido por Pedro Fernandes Duarte e Rui Alexandre Santos. O primeiro propósito era dialogar: um ciclo com 12 programas de filmes portugueses propôs reuniões improváveis com filmes estrangeiros, e uma série de conversas que envolveu jovens e estabelecidos críticos, programadores e cineastas de todo o mundo demonstrou como, se é verdade que a história do cinema português é, até tão tarde, a história de um cinema muito fechado sobre si (e, até hoje, feito com meios tão comparativamente escassos que às vezes é quase da ordem do milagre que certas coisas tenham acontecido), há uma vitalidade contida em certos títulos menos vistos a ser redescoberta em relação directa com outros cinemas.
Casou-se Ben Rivers e Bela Tarr e a Reis & Cordeiro em (1) ENTROPIA E UTOPIA. (2) PARA PAULO ROCHA, convidou Victor Gaviria, Billy Woodberry e Nelson Pereira dos Santos. (3) A MEMÓRIA ACREDITA ANTES DE O SABER SE LEMBRAR, foi de Susana Sousa Dias, Patricio Guzmán e Soon-Mi Yoo. (4) DESEJO SEM LINGUAGEM juntou Manuela Viegas a Lucrecia Martel. Em (5) CINEMA NUM TOM MENOR contou-se com Manuel Mozos, Martín Rejtman e Denis Côté. Em (6) DEPOIS DE VANDA, viu-se Albert Serra, Nicolás Pereda e Tomita Katsuya. (7) RETRATO/PAISAGEM uniu Joaquim Pinto & Nuno Leonel a Agnés Varda. (8) E O MUNDO SE FEZ CARNE comparou João César Monteiro a Catherine Breillat e Bruce LaBruce. (9) UMA LUZ DIFERENTE uniu Joaquim Sapinho a Nathaniel Dorsky e a Robert Bresson. (10) O LOUVOR DAS SOMBRAS convidou João Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata, Tsai Ming-Liang e Claire Denis. (11) TOPOGRAFIAS CINEMATOGRÁFICAS foi para ver Vítor Gonçalves e José Luís Guerín. E por último, em (12) OLIVEIRA, OU O TEATRO DA INOCÊNCIA, juntou-se Manoel de Oliveira a Robert Beavers, Aki Kaurismaki e Matías Piñero.
A par dos filmes e das discussões que os enquadravam, o cinema continuava nos bastidores: fora dos mármores do museu, o tom descontraía e as conversas seguiam-se entre comes e bebes – por ali o costume que já aqui se narrou. Coube-me estar presente a estas mesas, sob o suposto chapéu de narradora – mas a atenção rapidamente se esqueceu do projecto e, entre o torrencial estímulo das muitas palavras, estes cotovelos não abandonaram a conversa em direcção ao bloco de notas – por isso, qualquer erro nesta narração será da memória enublada. (Ficou a certeza de que o cinema aproxima e, porque é da natureza de qualquer apaixonado dedicar ostensivamente à sua paixão, a união chega pela palavra dita, escrita, gritada, e para lá das diferentes posturas, o cinema, fosse ele qual fosse, era tão essencial para cada um dos presentes, que era por isso que ali partilhávamos aquela refeição.)
Tão certeiro pensador quanto artista, Kandinsky deixou escrito que ‘‘o pintor alimenta-se de impressões exteriores (vida exterior) e transforma-as na sua alma (vida interior)’’. Esta frase recordou-me como, à história da pintura, equivale uma travessia na representação das refeições como um elemento vital de retrato humano – seja qual for a situação do sujeito retratado. Decidi então, face à indisponibilidade em aceder aos documentos fotográficos deste edição, seguir o espírito comparatista que deu o tom ao projecto Harvard na Gulbenkian e, desemoldurando os nomes evocados por este programa de estudos, à 12º volta nomeado de ‘‘Oliveira, ou o Teatro da Inocência’’, entre o cinema, a pintura e as impressões da experiência “”gastro-fílmica“”, escavar no museu uma janela em direcção à exterioridade do mundo.
23-1-2015: A última sexta-feira, sob o signo de Manoel de Oliveira
- Um gato lançado contra o ‘‘teatro da inocência”
“Rosas que desabrochais, / Como os primeiros amores, Aos suaves resplendores / Matinais” (Machado de Assis); Detalhes de Vale Abrãao, de Manoel de Oliveira (1993) / Hodges Soileau / Poppy fields de Monet (1840-1926)
A sexta-feira inaugurou: era a primeira vez que Leonor Silveira falava em público sobre Vale Abrãao, um dos títulos iniciáticos sua colaboração com Manoel de Oliveira e que dentro de si se fez num trauma de que demorou vários anos e várias colaborações a libertar-se. Os longos meses de rodagem encerraram-na na rigidez do método oliveiriano: o rigor que foi exigido à então pouco experiente actriz, na fúria dos seus vinte e poucos anos, deu-lhe aso a uma confessa vontade de fugir. Leonor Silveira tinha a impaciência da sua idade mas carregava essa gravitas antiga, esse halo magno, essa rara totalidade de parecer transversal às eras – era da beleza sem tempo dos arquétipos, perante quem não se sabe que vintes ou trintas ou quarentas. Assim, soube contornar a inexperiência para encontrar o peso de esposa, de amante e de mãe para a personagem, e ainda de dar visibilidade à asfixia de ser a “alma em baloiço” em que se desenhará como a mais libertina das protagonistas de Oliveira.)
Como os acidentes que aconteciam debaixo das varandas de Ema ‘‘Bovarinha’’, cuja incandescente aparência-aparição cegava os carros para fora do seu rumo, Oliveira constantemente a colocou à janela – a do seu cinema – e também foi esta a única janela que a actriz quis para si, uma vez que praticamente só entrou em filmes de Oliveira. Hoje, Leonor Silveira traduz esta relação indissociável numa equação simples:
‘‘- Eu sou a sua musa e ele é o meu mestre.’’
Falara ao telefone com o seu mestre uns minutos antes, participando-lhe que ia falar pela primeira vez sobre Vale Abraão (1993). ‘‘Tens a certeza?’’ – ouviu do outro lado – e Leonor garantiu que sim, procurando enobrecer a experiência, já longe dos traumas, com uma homenagem total.
Se nos une um amor partilhado pelas narrativas do cinema, é próprio do cinéfilo sofrer dessa avidez aguda pelos detalhes laterais, incurável fome de reconstituir a própria memória do filme, encaixando a história do que aconteceu atrás da câmara com a história que o ecrã mostrou. Trata-se, no fundo, de desenhar o cinema como o complexo fenómeno humano que em suma este é, assente numa multi-tonal teia de relações humanas, tão espontâneas e imperfeitas como em qualquer outro lugar. Esta face oculta do cinema que depende directamente da generosidade dos testemunhos – que, tantas vezes, ampliam os filmes com esclarecedores contextos. E Leonor Silveira foi generosa: entre as circunstâncias desveladas, ouvimos detalhadamente acerca do mais emblemático plano de Vale Abrãao (1993) que afinal seria também o mais improvisado dos planos de Oliveira – aquele em que Ema atira o gato contra a câmara e, inesperadamente, tudo se agita. E, na energia de um momento em que Ema tem um gesto repulsivo, sacode-se toda a forma do filme e a sua personagem ganha uma outra amplitude, consequente e concreta – ostensivamente, a “sua beleza constitui uma exorbitância, e, como tal, um perigo”, e é este perigo, uma proximidade da morte, o que nos é subitamente descrito, contra a imobilidade plácida dos traços.

Esta saída de Oliveira dos seus hábitos de fixidez formal, explicava Leonor, equivale à hora em que o realizador se enfureceu com a sua protagonista: este plano improvisado foi a resposta impaciente do cineasta a um particularmente difícil dia de filmagens e, após esta gravação, Manoel de Oliveira abandonaria o set e a equipa, furioso, para não mais filmar nesse dia. O comportamento difícil de Leonor Silveira, enunciava a própria, vinha de uma zanga sua com o realizador do início das rodagens: perdera os seus cabelos loiros, que tiveram de ser pintados de preto para servir as descrições da personagem e vira a sua prestação como Ema em adolescente a ser substituída por uma actriz de aspecto mais jovem (Cecile Sanz de Alba).
De longe, reflectimos hoje como esta tensão condiz, como um decalque, com o espírito dessa Bovary dos Vales do Douro que, em vão, ensaia liberdades num cenário restrito. Os seus gestos seriam sempre inúteis porque a sua causa era maior do que ela mesma – era um assunto do destino, e da morte como passo sustido de uma índole em ponto de abismo:
“Ema bate-se contra a rede de pequenas e formidáveis misérias que se apertam em volta dela. Heroína provinciana das insatisfações típicas do ser humano, Ema conserva, ao morrer, a independência de espírito que fez a Margarida Navarra escrever nas suas Prisões: «Porque de [Deus] me tivesse dado carta branca / Para atravessar esta prancha mortal, / Eu não teria ousado pedir tantos bens / Quanto ele me deu, que todos tenho dele; / E dos seus dons e bens eu fiz mau uso.» Ema usou de carta branca para atravessar a vida. É um crime? Uma loucura? Um ritual da tristeza? É, acima de tudo, um sentimento atávico que as mulheres cultivam e que está longe de servir a concupiscência. É o sentido de pertencer a um mundo melhor e para ele avançar mesmo à custa dos mais cruéis mal-entendidos.” Agustina Bessa-Luís em Vale Abrãao
- O Douro de Oliveira
João Bénard da Costa começava assim a folha de sala dedicada a Vale Abrãao : ‘‘No princípio de Fanny Owen (o romance que esteve na base do filme Francisca de 1981 ), Agustina Bessa-Luís escreveu: “O rio Douro não teve cantores. Teve-os o Mondego e o Tejo também. (…) O rio Douro ficou banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz pouco própria para animar os gorgeios dos bernardins, que são sempre lamurientos e que à beira de água lavam os pés e os pecados”. No entanto, esse “rio majestoso como não há outro”, esse rio que “entra em Portugal à má cara” (continuo a recitar Agustina), encharcou as melhores páginas da literatura portuguesa. Camilo, Pascoaes, Agustina. À excepção de alguns “romances históricos” (Sebastião José, Florbela, A Quinta Essência, etc), todo o mundo dela é fechado pelo Douro e os homens e mulheres de Agustina nunca tiveram outra categoria como origem, referência ou destino. O Douro é, também, o rio do nosso cinema: Douro – Faina Fluvial (1931), Aniki-Bóbó (1942), Francisca (1981), Vale Abraão (1993), ou o filme de Paulo Rocha precisamente chamado O Rio do Ouro (1998). E este cinco filmes são tão fechados por ele como os romances de Agustina.’’
Os olhos azuis com o vestido azul ‘‘para dar sorte’’ acertam com o rio – a sua ‘‘sorte’’ derradeira. Dúvidas não restam de que o Douro é um dos personagens principais de Vale Abrãao (1993): a água renova a vida da ‘‘Bovarinha’’ – gasta entre uma margem e a outra numa insatisfação errante. Na repetição dos símbolos e trajectos, a arquitectura de uma vertigem: do mesmo azul trajou para casar e para morrer. O rio vive-lhe nos olhos como a morte – e aquela imagem-signo é a de um belo animal em contenção, um felino de quatro olhos azuis feito de Ema e do seu gato ao colo, que silenciosamente basta para convocar esse mistério que trespassa a sua figura. Ema é uma criatura indefinida, simultaneamente mulher, homem e animal, que se rebela contra um mundo castrador, onde há olhos exteriores a examinar a sua conduta desde sempre.

Pelos vários paralelismos com a suprema obra de Flaubert, caber-nos-á investigar o bovarismo de Vale Abrãao? Mas então, porque é que Agustina decidiu pôr a própria Ema a dizer que não é nenhuma Bovary, ao saber da sua alcunha de ‘‘Bovarinha’’? Flaubert concede Madame Bovary a todas as mulheres como um espelho: ‘‘Ma pauvre Bovary sans doute, souffre et pleure dans vingt villages de France à la fois, à cette heure même’’, para reflectir acerca das expectativas sociais e entraves ao desenvolvimento que recaem sobre o feminino, para lá do tempo histórico (e talvez seja por isso que Ritinha, a sua velha criada muda, é quem melhor entende Ema). Mas então o que há de “Bovarinha” na criação desta Ema? Precisaríamos de extensas páginas para uma análise que João Bénard da Costa poeticamente resumiu: ‘‘Agustina e Oliveira dizem que chamavam assim a essa manquejante criatura que na morte e nas bodas se vestiu de azul e no dia do casamento fez cair a aliança ao chão’’.
De facto, em Vale Abrãao (1993) estudar-se na decadência dos costumes e das relações sociais entre antigas famílias, hipócritas e decadentes, que povoam o norte. Estas idiossincrasias, que Oliveira conhece por contexto, atravessam sempre um cinema que acontece algures no seio da burguesia aristocrática, mais conservadora de condutas e de patrimónios, onde os apelidos carregam as expectativas da linhagem automática e o peso da posse que não é senão consequência da sucessão histórica a que se chama herança. Todos os nomes são blocos de tempo e Oliveira sabe-o: os nomes são também as histórias que lhes são atribuídas, sejam os apelidos de família ou o direito a figurar nas páginas da História – e Oliveira sucessivamente reconstruirá a narrativa portuguesa das ‘‘origens’’, em direcção a uma família mais funda que, por nacionalidade, todos compartilhamos (ou não).

- Os maneirismos do Mestre
“Todo o barroquismo é intelectual, e Bernard Shaw declarou que todo o labor intelectual é humorístico”. Esta sentença vem de Jorge Luís Borges, com sarcasmo auto-analítico – mas bem poderia ser sobre Oliveira que, como um bom pós-victoriano, soube fazer dos mais codificados modos e comportamentos, os primeiros objectos de análise satírica. A história do humor britânico, pelo século XIX tão fértil em boletins, caricaturas e pasquins de todo o género, desmonta com a ironia por base: espelhos em que a aristocracia intelectual se desconstrói com auto-depreciação. Manoel de Oliveira nunca perdeu o bom-humor – nem no seu cinema – mas como o melhor humor britânico, este não é óbvio. Bem pelo contrário.
As recorrentes adaptações de autores oitocentistas e novecentistas como Camilo Castelo Branco (em Amor de Perdição, 1979), Eça de Queirós (em Singularidades de uma rapariga loira, 2009) ou Álvaro de Carvalhal (em Os Canibais, 1988), nem sempre puxam a narrativa à contemporaneidade e, quando efectivamente a actualizam, deixam as marcas da sua época no respeito pelo texto. Manoel de Oliveira gostava da língua portuguesa e daí surgirá também a extensa colaboração com Agustina (em Francisca (1981), Vale Abrãao (1993) , O Convento (1995), Visita ou Memórias e Confissões (1982) e Party (1996) que – neo-romântica e assumida discípula de Camilo – continua, século XX adentro, o talento de dobrar o português com a flor que poucos souberam.
Estes pontos de partida de Oliveira são acentuados pela sua construção sintética e maneirista (por exemplo, o recurso à voz exterior de um narrador em off em Vale Abrãao (1993) é evocativo da construção clássica do dispositivo trágico) e aquilo que em Manoel de Oliveira parece uma manifestação de nostalgia (de temas, técnicas, estilos…), é também uma espécie de imunidade ao tempo, que lhe foi quase literal: mais presente no mundo e mais sábio de vida do qualquer um de nós, ensina-nos a ser contemporâneos com a amplitude de uma visão larga da história, e do lugar do cinema na história da arte.
• Em cada nome um mundo

Como qualquer abordagem historiográfica é um trabalho com cadáveres – onde, nem que apenas tenuamente, seremos sempre distantes da matéria que dissecamos, solidificada pelo seu passado – quaisquer iniciativas de antologia, retrospectiva e homenagem participam inescapavelmente desse mesmo fôlego fúnebre.
E se aqui reflectimos os maneirismos de um cinema temporalmente tão extenso como é o de Oliveira, que foi de 1931 a 2014 sem ser ‘‘igual ao seu tempo’’ que é como quem diz, sem ter medo de todos os anacronismos e de todos os retrocessos históricos, ocorre-me que a vocação museológica deste projecto esteja inteiramente reflectida no âmbito formal que o conduz: a Gulbenkian é o corolário português da conduta institucional e a única entidade privada do meio das artes que carrega um nome próprio, Calouste Gulbenkian, e com ele, um passado e um sentido concreto de continuidade. É verdade que o museu é o preâmbulo que interrompe o fluxo da vida para lhe exigir uma infindável atitude contemplativa, para dessa atitude convergente extrair e estabelecer ideais. É, pois, claro que toda a museologia é, por princípio, burguesa: e é esse o primeiro espírito a conduzir a sátira auto-reflexiva até que esta se atravesse da subtil ironia – victoriana, camiliana, oliveiriana, costiana. Também é por isso que o próprio cinema português esculpiu da realidade uma espécie de ícone, como um contraponto junto do qual a cinefilia se pode rever: Ventura, afinal, é a medida suprema da vida. Ele ajudou a erguer as paredes da Gulbenkian com a dureza real das suas mãos – quando lá vamos, lembramo-nos disso. E na história em que ele vê os tijolos antes de ver os Rubens, se ilustra com a força de uma parábola essa mesma escala de relação material (e materialista) perante a qual todo o intelectualismo deverá examinar-se. Com humor.
Saio da Gulbenkian nessa noite a pensar em Pedro Costa. A história do cinema português é uma breve história de nomes. E, como num bairro filmado por Costa, em que os nomes próprios se gritam de um filme para um outro, argumentando a vida e os laços humanos maiores do que a durée possível a qualquer filme, já conhecemos os irrepetíveis mundos contidos nos nomes de Vanda e de Ventura e de Vitalina – assim como facilmente sentimos a família que há neste pequeno meio que é o do cinema português, onde há poucos filmes (João Bénard da Costa, em Olhar o cinema português 1896-2006 de Manuel Mozos, sabia exactamente quantos eram) mas repetidas colaborações e, em redor, inevitavelmente os nomes e rostos de sempre.
(Por verbalizar fica sempre o que já sabemos todos: que este ou aquele meio artístico é, desde sempre, um palco de convívios, como em qualquer família temperado por ligações difíceis que ora abrem mesquinhos desvínculos com disputas de vizinhança, ora unem publicamente em defesa dessa grande causa que à hora da luta surge, chamada de ‘‘cinema português’’. Mas como um músico não sabe inserir-se na categoria genérica de “música portuguesa” nem um pintor saberá definir uma “pintura portuguesa”, também não saberá qualquer cineasta relacionar-se com estas gavetas genéricas que agrupam disparidades por nacionalidade. E é por isso que há que relativizar sempre que se faz do “cinema português” o enunciado de base.
Mesmo que o propósito traga traços de uma historiografia, o caminho alinhado entre nomes é sempre uma possibilidade entre infindáveis outras igualmente importantes que ficaram de fora. E continua a ser para mim um mistério que, ao longo de dois anos de um programa sobre cinema português contemporâneo, não se tenha por lá visto um título de Pedro Costa...)

- Um brinde a Manoel de Oliveira
Sendo hoje a mãe que fingiu ser em Vale Abrãao (1993), Leonor Silveira não se juntou para jantar, circunstância que todos lamentámos. Ainda assim, à mesa com Haden Guest, Joaquim Sapinho, Andréa Picard, Matías Piñeiro, Robert Beavers, Jean-Michel Frodon, Isabel Carlos, Vasco Araújo e Inês Alves, a conversa prosseguiu inevitavelmente por Manoel de Oliveira, nome sinónimo de cinema – que nunca deixará de ser um mundo infinito. Ainda estava vivo àquela hora em que os copos de todos os presentes subiram para lhe brindar.

Isabel Carlos, sentada à minha esquerda, recordava um programa de rádio onde recentemente tinha ouvido Oliveira que, entrevistado em sua casa e inquirido acerca das inspirações que lhe vinham das vistas da janela, respondera apontado para a mesma janela: ‘‘Dali não virá cinema algum’’. Perante a riqueza de uma frase tão apta a interpretações, assalta-me de imediato a cena da janela de Vale Abrãao (1993), onde a versão lolita de Ema ‘‘Bovarinha’’ se mostra ao mundo e age sobre ele, à janela, na passividade activa do seu porte estático – que encontra o seu par noutro momento emblemático da obra de Oliveira, a cativante cena do leque chinês em Singularidades de uma rapariga loira (2009). Cenas construídas como uma metáfora para o próprio cinema, onde o espectador avista presenças de uma realidade ilusória que, se de relance quase atingíveis, ainda assim se suspendem, invioláveis, longínquas, veladas. O cineasta estará então do lado da arquitectura da ilusão, a construir as janelas que abre para, como quiser, logo fechar a seguir – num projecto de sedução.
Ainda de espíritos postos no Porto, Joaquim Sapinho falava de vinhos e de vinhas e lembrava a Haden Guest que a garrafa de vinho que lhe oferecera fora produzida nessa mesma herdade que faz de morada a Ema e Carlos, em Vale Abrãao (1993) (ou seria da quinta do próprio Oliveira?). Escapou-me o nome do vinho, mas a conversa continuava a navegar pelo Douro, e todos recordavam as vinhas do ponto de vista dos barcos de recreio que fazem os passeios turísticos – e Sapinho lembrava o gosto particular de António Reis pela imersividade daquela paisagem.
Quis o acaso da disposição que Joaquim Sapinho ficasse sentado à minha frente, nessa portuguesa marisqueira que às últimas teve de improvisar uma refeição verde para o vegetarianismo que ali eu só partilhava com Andréa Picard. E, com pratos de pitéus do mar nos junto a pratos de peixinhos da horta, as conversas evocavam a personalidade marítima portuguesa.

E, porque afinal o grande tema era a reflexão do cinema português, depressa se denunciou a concreta falta de uma historiografia do cinema português com base na análise do mar como elemento modelador, intercambiável. Expliquei como o meu interesse pelo tema se relacionava com essa mutação pouco revista, onde as ‘‘histórias trágico-marítimas’’ que, particularmente com o fascismo, usam o mar para esculpir ulisseicas façanhas contra ‘‘as tormentas’’ pouco têm a ver como o mar ocupado pelo turismo e pelo lazer do cinema português contemporâneo.
Rapidamente chegou a conversa a Deste Lado da Ressurreição (2011), filme do cineasta visto noutra edição deste programa que, dizia-lhe, parecia retratar o mar numa perspectiva radicalmente diferente da dos exemplos predecessores: ali o mar surge como uma força elementar catártica, possível poder de absolvição. E, de facto, pensou-se o filme como uma colisão de avessos entre o valor-choque da mortificação, que dá a sentir a carne ao extremo, e o seu oposto, a fusão plena entre o surfista e a pureza do mar.
Sacudi rapidamente o tom expositivo – no relativo pudor que sempre há no crítico ao procurar bastar-se, justificando o seu ponto de vista defronte do próprio autor – e, nessa noite, despedi-me cedo. Que era sexta-feira e eu tinha pressa de vida para lá do cinema.

24-1-2015: Sábado, tertúlia de chamar fantasmas.
Na noite seguinte, também Lisa Parsson confessava ter-se escapado mais cedo dos 203 minutos de Vale Abrãao (1993) para ir tirar daqueles muito arcaicos retratos em chapa de prata na Silverbox. À mesa de jantar, o pesado retrato protegido por papel fino circulava cuidadosamente de mão em mão: – Pareces a Leonor Silveira! A alucinação era colectiva: era Leonor que estava à mesa sem ter estado, evocada por esse feminino fastasmagórico a que o contraste deu traços ténues – pela fotografia analógica, a animação de uma vida ausente como em Estranho Caso de Angélica (2010). Mas retrocedamos. As sessões desse sábado começavam às 15h30, e voltávamos a Oliveira.
• Kaurismaki, a verdade da encenação

Que juízo fazer do improvável primeiro casamento de A Caça (1963) de Oliveira com Ariel (1988) de Kaurismaki? Acontecem dentro de mim como dois quadros tão distintos que, se fossem pinturas, o primeiro seria um colorido filho do naturalismo novecentista de Barbizon, apaziguador no seu bucolismo nostálgico, e o segundo, herdeiro da circunstância citadina em que Edward Hopper inscreve a solidão das suas vítimas da modernidade. Vejo em A Caça (1963) uma sucessão directa do já distante Aniki-Bobó (1942) – Oliveira filma ao nível das crianças do povo com movimentos tão abertos como as liberdades descalças destes filhos do rio, que cruzam sem rumo um horizonte que não acaba. Lembra António Reis, de tão longe que aqui estamos da estudada rigidez a que nos habituou (nas novelescas intrigas que dominam a sua obra e o seu estilo). Quão distintos são estes jovens rapazes sujos da protegida rapariga de rendas e folhos, que entre as vinhas cuida de não sujar o imaculado branco do seu conjunto de comunhão, que é a adolescente Ema de Vale Abrãao (1993)?
Diria que o primeiro elemento em comum entre Oliveira e Kaurismaki é o gostarem de Chaplin. E se há cinema contemporâneo que lhe prova descendência é o deste finlandês radicado em Viana do Castelo desde os anos 80. O amor genuíno dificilmente encontra palavras cujas medidas lhe convenham. (E é por isso que, face à força dos filmes de Kaurismaki, sou francamente atingida pela vontade de me silenciar e – no presente projecto de auxiliar com pinturas a narrativa – julgo que mais rapidamente encontraria alguma proximidade à verdade se atirasse furiosamente cores vibrantes para uma tela e perante isso dissesse: eis o que sinto por Kaurismaki.)

Entre sábado e domingo, este programa incluiu dois títulos extraordinários, Mies vailla menneisyyttä (Homem sem Passado, 2002) e Ariel (1988), exemplos onde a construção controlada das realidades propõe, com um rigor cénico minimalista, um estudo geral da condição humana através da redução ao absurdo. Uma “miséria simbólica”, na expressão de Rancière, aqui descrita por uma metonímica da realidade.
São sempre interpretações contidas entre gestos lentos e vozes recatadas, onde a micro-fisionomia dos actores é protagonista de uma encenação depurada. As formas são simples como são simples as histórias, e a narrativa sucede-se em episódios que conduzem a tragicomédia até ao happy end. Afinal, os filmes são literalmente coloridos e, para lá dos paradoxos, o fundo é de esperança. Como descrever convenientemente um tão único ‘‘humor negro’’ que faz riso da má sorte, esticando-se até às derradeiras circunstâncias?
O que Kaurismaki filma é a dignidade apesar de tudo, a elevação de um homem marginal que não é um miserável – a estrutura do seu mundo não faz uso das leis da sociedade, porque estas não o contemplam, antes encontrando, moral e politicamente, uma ordem interna à sua medida de lugar. Recordo Miracolo a Milano (Milagre em Milão, 1951) de Vittorio de Sica, outro micro-cosmos esquemático que se apresenta expressivamente como símbolo de um todo auto-suficiente, onde a base da organização do mundo é a confiança entre os homens, que dá à palavra valor de lei. A justiça nas próprias mãos é literal: apertam-se em cumprimento ou desembainham murros por vingança – como num western. Kaurismaki assume as suas influências: ‘‘O cinema real é o que se mantém fora do sexo e da violência. Foi assim que fizeram Buñuel e Renoir, sou da velha escola.’’
Se estas teses de anarquia deixaram herança em cinemas alicerçados na lei do homem, em Portugal há particularmente dois nomes que gritaram a realidade mais real junto dos esquecidos da sociedade: Pedro Costa e Manuel Mozos. (Infelizmente, motivos pessoais impediram Aki Kaurismaki de estar presente para protagonizar um debate ou para jantar – deve ter faro adivinhador e soube escapar-se da tempestade de perguntas que lhe destinava.)
• Robert Beavers, lição de montagem
‘‘Mudanças ilimitadas no ritmo, a súbita interjeição da aliteração, a metáfora, ou símbolo, ou qualquer desconstinuidade introduzida na estrutura do filme, torna possível captar a atenção do espectador, à medida que o cineasta gradualmente convence o espectador não só a ver e a ouvir, como a participar no que está a ser criado no ecrã, tanto a nível narrativo como introspectivo.” Markopoulos, em “Towards a New Narrative Film Form”

Porque o cinema de Robert Beavers é uma relativamente recente descoberta do público português, foi de suprema importância que o Harvard na Gulbenkian desse a continuidade devida ao programa RISCOS de Augusto Seabra na mais recente edição do Doc Lisboa, com o adicional cuidado de, face ao curto intervalo de tempo entre os eventos, o complementar com títulos distintos. Nessa tarde de sábado, vimos Ruskin (1975/1997) seguido de From the notebook of…(1971/1998) e The Hedge Theatre (1986?90/2002). As parelhas de datas que acompanham os títulos (anos em que os filmes foram rodados anos em que os filmes foram remontados) são particularmente reveladoras da razão pela qual só “”recentemente”” se começou a ouvir falar de um tão indispensável cineasta experimental que trabalha desde os anos 60.
Porque vimos a Robert Beavers material filmado com uns meros 17 anos, quando em 1966 começou a sua carreira com o filme Spiracle pudemos conhecer a profunda originalidade em que funda o seu processo desde a hora zero. Sem formação em cinema, sai de Nova Iorque com estudos inacabados em artes plásticas, para viver na Europa com o seu companheiro americano de ascendência grega Gregory Markopoulos, cineasta experimental cuja obra não foi vista durante mais de 30 anos. Profundamente interessado no cinema como máquina de produção de sinestesias, Markopoulos – figura influente do panorama avant-garde nova-iorquino – experimenta com Robert Beavers diversas técnicas de dupla exposição, velocidades variáveis, divisão da imagem em ecrãs múltiplos, tinturas, sistemas de refracção, controlo dos processos de emulsão e de revelação, entre outros recursos que se reinventam com uma minúcia frame-a-frame.
Markopoulos já nos abandonou mas, tal como Manoel de Oliveira, deixou preparada a derradeira obra póstuma: ENIAIOS, um ‘‘filme especulativo’’ (que ocupou os últimos 15 anos da sua vida num processo de remontagem do seu corpus de trabalho) com 80 horas e de âmbito site-specific, que nunca chegou a ver como idealizou – projectado ao ar livre no lugar de Temenos (em Arcadia, Grécia), terra-natal do seu pai. Este objecto único que atravessa os horizontes do cinema expandido e da land art, é composto por 22 ‘‘ordens’’ que são iniciadas ao pôr do sol. (Para a conservação das obras de Markopoulos, Beavers criou a fundação homónima The Temenos, palavra grega que significa terra sagrada e sítio onde nada nasce e nada morre – responsável pelas quatro primeiras edições que aconteceram entre 2009 e 2012). Se à luz pessimista de um dia, nos ocorrer duvidar da capacidade das imagens do cinema de serem intrínsecas ao mundo e não apenas uma representação deste, que nos lembremos deste Eniaios como exemplo absoluto de dissolução do cinema na própria paisagem, naturalizando-o, obliterando-o ao máximo da sua génese técnica. Tornado mundano no mais amplo sentido do termo, este cinema que vive no e do mundo, estado diametralmente oposto ao do cinema no museu. E também aqui há uma lição de montagem.
Gregory Markopoulos reflectiu extensivamente os seus processos através da escrita, sistematizando o estilo ‘‘híbrido’’ do seu cinema, tão alicerçado num abstraccionismo como numa narrativa funcional da composição : procurava ‘‘frases fílmicas’’ que se entre-relacionassem em busca de um todo harmónico. Não é Markopolous o homenageado por Harvard na Gulbenkian, mas a narrativa que enquadra a relação da sua obra com a de Beavers é indispensável para percebermos a medida da sua influência sobre os filmes deste. Particularmente, nas divergências nascidas esta proximidade: “Tendo tacitamente repudiado o maneirismo e a mitopeia do cinema de Markopoulos, Beavers destituiu a sua arte de qualquer evocação de um mito da experiência originária e da maioria das referências a emoções extra-cinemáticas.” ( P. Adams Sitney, em FilmComment) Mais próximo de um princípio de abstracção, Beavers dá os passos seguintes a Walther Ruttmann ou Hans Richter.

From the Notebook of…(1971/1998) foi filmado em Florença a partir dos cadernos de um jovem Leonardo da Vinci. E, procurando com o cinema redefinir as técnicas do mestre renascentista, elementos de chiaroscuro e sfumato surgem por contraposição às dominantes influências modernistas, como o abstraccionismo geométrico (suprematismo, neo-plasticismo). E, como Leonardo, Beavers não só se dedica a ensaiar a sua arte num caderno de apontamentos como procura dar a vê-lo transformando a própria imagem num caderno, onde distingue páginas em fragmentos constituintes da mesma imagem em repreenchimento ininterrupto. Recorda-nos do conceito desenvolvido por Astruc de uma caméra-stylo (câmara-caneta), que designa ao cineasta a função de escritor de luz: efectivamente, a modelação da luz é o principal agente desta escala de ritmos. Por um lado, a construção alicerça-se numa ‘‘montagem na câmara’’, que sucessivamente abre e fecha a lente à procura de simular a íris humana, imprimindo através desta cadência pendular, uma sensação de passagem do tempo, e intuindo o todo contido nos breves instantes; por outro lado, a presença de fontes de luz é uma constante, e confirma como ‘‘os quartos que Beavers filma se tornam câmaras metafóricas’’ (como se lia no texto de apresentação da retrospectiva que a Tate lhe dedicou).
Esta câmara-olho percorre o mesmo espaço circunscrito através de ângulos distintos, demonstrando a nova narrativa encontrada nos mesmos lugares através da montagem e do jogo de escalas. Uma desconstrução analítica que evoca a história da pintura também a nível metodológico, lembrando como é próprio dos hábitos de estudo o segmentar e ampliar de vários detalhes do mesmo quadro, para melhor estudar o todo. A força única do estilo de Beavers está na sua constituição formal: lida com a matéria bruta do cinema, num depurador retrocesso até às formas primitivas da luz, cor, quadro, duração, ritmo. Se há ao mesmo tempo um processo analítico onde a câmara é duplamente olho e cérebro, esta sinfonia mecânica resulta numa experiência estética harmoniosa e de uma plasticidade envolvente.

Manuela Viegas estava presente (e o que pensaria ela de tudo aquilo?) – ouvimo-la enquanto realizadora de Glória (1999), filme resgatado num outro programa Harvard na Gulbenkian, mas são suas as mãos que costuraram muito do melhor cinema português dos anos 90 à frente de uma Steenbeck: Silvestre, O Som da Terra a Tremer, À Flor do Mar, Um Passo Outro Passo e Depois…, etc. Nas voltas do dia-a-dia, é ainda uma professora decisiva, que lança a matéria primitiva do cinema, a película, para as mãos dos jovens que todos os anos inauguram estudos na ESTC e têm desde o primeiro dia a sorte de ter aulas obrigatórias de montagem.
Partilhei a alçada direita da mesa de jantar de sábado com um jovem lá recém-licenciado cujo nome não fixei, que ostentava num sorriso simpático a altivez própria dos seus vinte e poucos anos. Intrepidamente exterior, segurava com confiança cada uma das palavras com que fixava certezas e, de uma extensa conversa sobre o ensino do cinema, a minha memória ficou presa ao momento que se abriu com essa questão retórica que alcançava o tom de desabafo : – Achas que é aqui que vamos encontrar o Cinema? Daquela voz inflamada, acabava de chegar um eco da frase de Manoel de Oliveira “”Dali não virá Cinema algum”“, evocada à mesa na noite anterior. Era o princípio de um discurso de, chamemos-lhe literalmente assim, juventude em marcha – que opõe a vitalidade de pensar o cinema através do fazer, à monotonia desmobilizante de sentar horas a fio a ouvir mesas redondas de críticos e programadores. Percebi que esta era uma súmula de geração, reinvindicativa do ímpeto de aproximar o cinema da verdade da realidade; pondo as coisas de outro modo, as condições que enquadram a exibição têm de tal forma consequências sobre o visionamento, que parece sentir-se como mais real o cinema visto nas circunstâncias quotidianas (sem molduras).
O eixo deste tão propositado ponto-de-vista relacionava-se com o anteriormente evocado problema contemporâneo da remissão da noção de programação retrospectiva ao espaço museológico, assim enquadrando a história do cinema numa lógica cerimoniosa de evento, contra a face popular dos antigos cinemas de reposição de bairro. E aqui se certifica o derradeiro apontamento conjuntamente reflectido entre os walshianos Ricardo Vieira Lisboa, Carlos Natálio e Luís Mendonça a propósito da 11ª edição deste mesmo Harvard na Gulbenkian, de que o cinema não é inofensivo – nem é inofensiva a forma como o cinema se mostra.
25-1-2015 : Domingo, fado de fim.

A derradeira noite soube a festejos – todos os elementos da organização estavam presentes à mesa para celebrar o fim deste ciclo. Rui Vieira Nery, musicólogo e director do Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas, trouxe consigo a herança do fado, e dirigindo-se generosamente à memória do seu pai, o vulto proeminente da guitarra portuguesa Raúl Nery, conversou sobre o tema, assim introduzindo o seu programa para aquela noite: alguns momentos de concerto com dois fadistas contemporâneos, que intercalaram o jantar à luz das velas. À minha frente, ficara sentado o mais jovem de todos os realizadores convocados para estes dois anos de Harvard na Gulbenkian – o argentino Matías Piñero – que visitava Portugal pela primeira vez. O seu filme Todos Mienten (2009) assinalara o final daquele último dia como um contraponto ao espírito oliveiriano que dera início ao fim-de-semana.
• Matías Piñero : involuntário arauto de geração

Se Quíntin (da CinemaScope) escreveu que Piñeiro ‘‘tem um estilo muito distinto: dez segundos bastam para reconhecer a mão do realizador’’ e Andréa Picard afirmou que ‘‘o estilo do realizador se reinventa a cada filme’’ – tendo eu visto apenas este Todos Mienten, não percebi sequer remotamente o paralelismo em que a nota introdutória o remetia até Bresson. Particularmente neste filme é-lhe, aliás, oposto: não há qualquer rigidez, formal ou narrativa em Todos Mienten. Entramos subitamente na vida de um grupo de jovens, rapazes e raparigas, isolados numa misteriosa casa, onde está em curso uma intriga sentimental. Da arquitectura da casa decalca-se um esquema cénico de visibilidade / opacidade e é do espectador o privilégio de ser testemunha ocular de um jogo de enganos que, ainda assim, só presencia até certo ponto. Como um leitor ainda confuso mas vorazmente agarrado à leitura em perseguição de pistas – na esperança de que, entre uma página e outra, tudo se acabe a situar na lógica de uma relação causal – o espectador é o agente/detective que aqui ensaia uma história possível entre a sucessão de gestos, signos e episódios fragmentados (mas Piñero sabota quaisquer confirmações e não se fecha em desenlaces).
Este é um drama abstracto que tem em comum com os mundos restritos de Kaurismaki esse foco na teatralidade como reflexo esquemático da vida. A presença de cada um dos elementos deste grupo – actores que pertencem na realidade a um grupo de teatro argentino – deixa suspeitar de uma génese maleável, em que este projecto assente em colaborações, flui em liberdade e improviso. Um filme que é um exemplo vivo da dissolução das fronteiras entre cinema narrativo e cinema experimental, como, aliás, o é este programa, que justapôs ao academismo narrativo de Oliveira, o experimentalismo de Beavers, Dorsky ou Bruce LaBruce – gestos que cumprimento.
A vitalidade deste filme é a do próprio Matías Piñero, que certeiramente gracejava acerca da sobriedade cerimoniosa que enquadrava cada um daqueles preparos que, afinal, destinavam-se a homenagear um cinema que é irredutivelmente resultado de forças opostas: nasce da vitalidade do ímpeto criativo, do incómodo, da liberdade, da juventude de espírito, da vontade de sabotar as estéticas estabelecidas e de desafiar os velhos mestres.
Com este Harvard na Gulbenkian, há a aprender a importância de promover programas temporalmente extensivos do género (em alternativa ao hábito massivo dos calendários carregados dos festivais), e a salientar o facto de ter trazido a Lisboa vozes de destaque do cinema contemporâneo (que puderam estar presentes a conversar na primeira pessoa), sem se tornar num evento “”dedicado a nomes estrangeiros””, como tantas vezes acontece nestas circunstâncias. Vimos cinema português e queremos ver muito mais.
Agradeço a: Ricardo Vieira Lisboa, Miguel Godinho, Rui Santos, Luís Mendonça, Inês Alves, Fernando Vendrell.