Nas listas de melhores filmes chineses de sempre não costuma faltar Malu tianshi (Os Anjos da Rua, 1937) de Yuan Muzhi. Obra essencial do dito “cinema de esquerda” de Xangai dos anos 1930, Malu tianshi é tanto um paradigma do seu tempo como uma obra cujas preocupações ecoam no cinema chinês até aos nossos dias. A Cinemateca Portuguesa passa-o dia 29 de Maio.
Malu tianshi remonta a um dos anos mais determinantes da história do século XX chinês: 1937. Começou então abertamente a segunda guerra sino-japonesa, confirmando um conflito que já se anunciava pelo menos desde 1931. O filme de Yuan Muzhi é fruto de um período anterior à guerra, em que expressões de sentimentos anti-japoneses eram controladas e censuradas (tudo isso mudaria pouco tempo depois), mas como tantas outras obras por esse mundo fora, Malu tianshi reflecte, veladamente, sobre a situação política do momento através de uma série de sugestões mais ou menos óbvias (os títulos dos jornais afixados na parede, as imagens de destruição que acompanham uma das canções de Xiao Hong, etc.). A par dessas referências à situação política , Malu tianshi é aberta e notoriamente um filme preocupado com uma dimensão social, com os que vivem “cá em baixo”, entre os mais pobres de bens (mas não de espírito) dessa grande metrópole de exploração que era Xangai na sua época dourada.
Malu tianshi é aberta e notoriamente um filme preocupado com uma dimensão social, com os que vivem “cá em baixo”, entre os mais pobres de bens (mas não de espírito) dessa grande metrópole de exploração que era Xangai na sua época dourada.
A abertura de Malu tianshi remete mais para as sinfonias citadinas que se fizeram em cinema nos tempos gloriosos do mudo do que para o precursor dos neo-realismos do pós-guerra que alguns já viram nele. Os intermitentes néons de Xangai e outras imagens dos “tempos modernos” depressa dão lugar ao drama humano que povoa os intervalos dessas estruturas. Algumas das figuras principais são introduzidas na cena de um cortejo onde o “tradicional” convive com o “moderno”, nem sempre harmoniosamente. O tom é leve, poderia ser uma comédia superficial. Mas não é, é o drama que vence pois é de coisas sérias e tristes que trata. Contudo, essa fluidez de registo atravessa quase todo o filme: o trágico e o cómico seguindo-se um ao outro, pois este é um filme de gente que sabe rir e sabe chorar.
No centro, imagens de juventude imensa, estão Xiao Chen (Zhao Dan) e Xiao Hong (Zhou Xuan). Representam o seu amor em performances dos dois lados da rua, em cenas de comédia gestual que são ainda herdeiras do mudo (a transição no cinema chinês só se deu realmente em meados dos anos 1930). Xiao Hong é interpretada por Zhou Xuan, então uma jovem cantora que teve em Malu tianshi o seu primeiro grande papel no cinema e se tornaria depois numa enorme estrela do cinema chinês. A sua voz, acompanhada pelos acordes de Xiao Chen, é a voz da esperança inocente num futuro, um futuro que ao longo do filme se lhe nega. De certa forma um dos principais temas musicais aqui, “Tianya genü” (“The Wandering Songstress”) que é cantado, ora de forma alegre, ora de forma triste, reflecte bem a complexidade emocional do filme, e não será por acaso que ela surgirá décadas depois homenageada numa cena fulcral de Se, jie (Sedução, Conspiração, 2007) de Ang Lee.
Se Xiao Hong é uma imagem de inocência, a personagem mais intrigante pertence à “irmã mais velha”, Xiao Yun (Zhao Huishen). De olhar duro e desolado, prostitui-se nas noites de Xangai. É alvo de tudo o que é mau (até de uma rejeição de Xiao Chen, salva apenas pelo cigarro oferecido pelo amigo dele, que gosta dela), arrastando-se pelas ruas como um espectro, a eterna sombra (também ela, de certa forma, herança de certas figuras do mudo). Quando Xiao Hong foge, ela paga com vergastadas no corpo, e será dela também o sacrifício final. Xiao Hong, sugere-se, dificilmente escapará a um destino similar.
Já no seu primeiro filme atrás das câmaras, Dushi fengguan (Scenes of City Life, 1935), Yuan Muzhi se revelara um observador das dinâmicas interpessoais da vida citadina, nomeadamente dessa super-cidade que era Xangai. Em Malu tianshi essa visão da vida dos seus habitantes continua. Yuan Muzhi não olha de cima para os “pobrezinhos” mas coloca-se ao lado das personagens centrais, sem paternalismos nem pena: ri com elas, chora com elas, irrita-se como elas. Nunca delas ou por elas. O filme pode até querer consciencializar mas não endoutrinar. São, para citar o título do filme anterior do actor-realizador, “cenas da vida citadina”.
Se a maioria do filme está preocupado com os espaços “downstairs” da cidade, há pelo menos uma visita ao lado “upstairs”, quando Xiao Chen e o amigo vão procurar os serviços de um advogado. No arranha-céus do seu escritório pensam estar no paraíso mas a sua inadaptação é paga com desdém. É uma cena de contraste quase caricatural, mas cujo simbolismo será cruelmente evocado no final do filme, quando é de novo o plano de um arranha-céus que vemos, contrastando com a dura existência dos que não têm meios económicos para superar situações de crueldade ou injustiça – meios que por vezes ditam a vida e a morte de alguém.
O final, relativamente aberto, tem um tom de iniquidade sem resolução. É um final a aguardar, como se a consciencialização de que as “as coisas estão mal” fosse o primeiro passo para uma reacção que não vemos. É como um compasso de espera prestes a rebentar. E nesse ano de 1937 o escalar de tensões político-militares rebentaria mesmo, com consequências horríficas e duradouras.
Malu tianshi passa dia 29 de Maio, às 15:30, na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.