Mark Rappaport será um desconhecido para alguns dos nossos leitores, mas a pouca visibilidade do seu trabalho tem muito pouco que ver com o impacto que este teve, por um lado, na história recente do cinema independente americano e, por outro lado, no modo de pensar e dar a pensar o cinema a partir da sua própria matéria. Foi posto à margem pela maioria, mas acabou por deixar marcas na memória daqueles “que importam”. Críticos como Roger Ebert, Jonathan Rosenbaum, Jim Hoberman e Louis Skorecki têm-no como um dos cineastas mais importantes da sua geração. E, através deles, hoje é-nos mais fácil encontrar nas arrojadas ficções deste cineasta de Nova Iorque, a viver há dez anos em Paris, as origens dos cinemas de Jim Jarmusch ou Hal Hartley. O testemunho e a prática de Mark Rappaport também nos permitem explorar a fundo as potencialidades de um formato em voga no universo da crítica e da criação ou, enfim, da crítica como criação: os ensaios audiovisuais. A sua especialidade nesta matéria são as autobiografias ficcionais que assina, em texto e em vídeo, sobre, nomeadamente, algumas das mais cintilantes stars do cinema, como Rock Hudson ou Jean Seberg.
Na conversa que os três walshianos Sabrina D. Marques, Ricardo Vieira Lisboa e Luís Mendonça tiveram com o afável e divertido Mark Rappaport, que está desde o dia 18 de Maio em Lisboa a apresentar uma Carta Branca proposta pela Cinemateca Portuguesa, procurou-se ver como a primeira parte da sua obra dedicada à ficção comunica com a segunda parte dedicada aos ensaios fílmicos. Com isso, queríamos também sobressair em Mark Rappaport a visão única e coesiva de um autor. E ainda tivemos uma revelação: amanhã (sexta-feira), na Cinemateca Portuguesa, às 18h30, haverá uma sessão surpresa com alguns dos seus mais recentes ensaios audiovisuais, um dos quais esmiuçado nesta entrevista. Não deixe de ir e com esta entrevista debaixo do braço, isto é, debaixo do olho. As fotografias são da autoria de Mariana Castro.
Luís Mendonça – Sugeria começarmos pelo ponto de partida do seu cinema, que me parece particularmente interessante, já que, embora seja um dos mais respeitados “realizadores cinéfilos”, o Mark não está, de modo algum, limitado à sua cultura cinematográfica. E isso é evidente, desde logo, nos seus primeiros filmes Casual Relations (1974) ou Mozart in Love (1975). Ópera, pintura, literatura são algumas das principais fontes onde vai beber na primeira metade da sua obra. Nela encontro uma rede complexa feita de uma miríade de referências culturais, quase no sentido da construção de um “cinema erudito”. Ao mesmo tempo, o seu cinema fala sobre pessoas normais com problemas muito mundanos. Procurava este contraste?
Eu não sei bem o que procurava. Muito do que explica as minhas imagens baseia-se no facto de eu não ter muito dinheiro. Usei imagens de background para sugerir dinheiro. E usei referências culturais para aumentar o escopo [cultural] dos filmes. Não fiz nada com uma intenção específica. Mas agora que referes, acho que faz sentido o que dizes. Sim, é para contrastar a vida quotidiana, os clichés aborrecidos do nosso dia-a-dia, com mais altas aspirações, coisas que estão fora de nós, que são verdadeiramente gloriosas. Vivemos num mundo não tão glorioso… Se temos pessoas contra um background como um mural ou algo muito bonito, isso só sublinha quão lúgubres somos ou nos tornámos. Penso que António Rodrigues [programador da Cinemateca Portuguesa] disse isso acerca de Mozart in Love. Ele disse: “a voz natural dos cantores mostra quão difícil a verdadeira arte é”. Não é, de facto, para todos…
LM – É como se pegasse em toda essa bagagem erudita e a elevasse a um estado de derisão ou auto-ironia. Mas percebi na conversa que se seguiu à exibição de Mozart in Love na Cinemateca que não recebe bem a ideia de que este filme é uma comédia ou que, na primeira fase da sua obra (anos 60 e 70), o Mark fazia comédias. Ou, no limite, comédias dramáticas.
Esse é um comentário complicado. Eu penso que não é uma comédia ou irónico no seu conteúdo. Mas… podias perguntar de novo?
LM – Bem, eu não concordo forçosamente com o que estou a perguntar.
Bem, eu também não concordo forçosamente com o que estou a responder (risos).
LM – Disse que tinha sido uma surpresa para si como as pessoas reagiram a Mozart in Love, rindo-se descontroladamente.
Foi uma situação desconfortável para mim. Eu não gozo com as árias da ópera ou estou a condescender com elas. Pelo menos, espero. Porque não foi essa a intenção.
LM – Há um aspecto visual forte nos seus primeiros filmes que é a solução de colocar as personagens contra uma parede, normalmente uma parede com uma cor garrida. Face a isto, penso no Godard pop, que sei que é uma das suas referências.
Ele é uma influência muito importante. Eu vi À bout de souffle (O Acossado, 1960) quando tinha 17 anos e foi muito importante. Se Godard não tivesse existido, eu não sei se conseguiria ter começado a fazer filmes. Ele apontou o caminho para a minha geração: “Sim, tu consegues, reúne umas pessoas, arranja uma câmara e vai fazer um filme”. Até aí o paradigma eram os filmes de Hollywood.
LM – Ele também desconstrói a linguagem clássica de Hollywood.
Sim, mas ele traz a linguagem clássica a um nível muito mais íntimo. “Tu podes fazer isso, só precisas de uma cadeira de rodas e uma câmara”. Antes disso, ninguém fazia isso. Não falo de Shadows (Sombras, 1959), que não teve um grande impacto em mim. Cassavetes nunca foi muito interessante para mim. Já o formalismo de Godard foi muito importante para mim. A pretensão a um não formalismo em Cassavetes era-me desinteressante: “é mesmo assim que a vida é, pessoas a gritar umas com as outras, cada momento num tom elevado e muito emocional”. Já levamos com isso todas as noites à mesa do jantar. Por isso, isto não me interessava. Godard era uma nova maneira de ver o mundo. Mas quando via Godard descobria também Hiroshima mon amour (Hiroshima Meu Amor, 1959), que pensei ser mesmo muito bom. Fui muito atraído pelo aspecto formal do filme. Sempre me interessei pelo formalismo, mas acho que nunca tive a linguagem para o expressar. Quando comecei a fazer filmes, penso até que não tinha literalmente a linguagem para o dizer. Mas os filmes formais sempre me interessaram mais do que filmes que apontam para todos os lados. Agora acho o contrário, claro. Por exemplo, Un conte de Noël (Um Conto de Natal, 2008) é, para mim, um filme fascinante. Penso que toda a gente que estava a fazer cinema durante a Nouvelle Vague sonhava fazer esse filme, mas não tinha a capacidade de articular convenientemente. Parece que é uma coisa, mas depois é outra, está aqui e depois vai para ali.
Ricardo Vieira Lisboa – Gostava de recuar um pouco e pegar na questão da comédia e do humor. Para mim, os seus filmes subsequentes que usam vídeo são cómicos de uma maneira interessante. Rio-me quando vejo Rock Hudson [em Rock Hudson’s Home Movies (1992)] a dizer algo que não esperava que ele dissesse. Ou Jean Seberg [em From the Journals of Jean Seaberg (1995)] a comentar a sua vida e através de actores também faz comentários cómicos.
A intenção é séria, mas eu acho que tenho um sentido de humor bastante apurado. E, bem, eu tenho graça (risos). Tenho um bom sentido de humor. E tenho uma ironia espirituosa. Isso é intencional. O que não era intencional era toda a gente a rir de Mozart in Love.
LM – A tentação maior é ver a sua obra como dividida em dois: os filmes ficcionais e os ensaios fílmicos. Para mim, seria interessante procurar esbater estas fronteiras, misturar um pouco as coisas e ver a sua obra como apenas “uma”. Falávamos em À bout de souffle e, nem de propósito, Jean Seberg é um ícone nesse filme. Por outro lado, se faz ensaios sobre cinema clássico nessa segunda metade da sua obra, na primeira metade é como se fizesse filmes clássicos mas fora do sistema de Hollywood, à la Godard.
Eu sabia que nunca poderia fazer os filmes que amava. Penso que foi através de Godard e outras pessoas que faziam filmes na época que percebi que devia usar o que estava disponível. Nunca fui também um grande contador de histórias. Nunca tive uma história que sentia que tinha de contar. Reconheço que os meus filmes [ficcionais] são comentários a filmes. Estou sempre a sair fora do filme para lembrar o espectador que é um filme que está a ver. Por exemplo, Impostors (1979) tem uma cena passada numa casa de campo e as personagens assistem a um filme na televisão, que é The Unknown (O Homem Sem Braços, 1927) de Todd Browning. Eu conto a história, mas ninguém no público quer saber que filme é aquele. Na época, não pude mostrar o filme na televisão, porque não estava disponível – agora seria mais fácil. Mas sim, eu estou ciente de que refiro sempre outra coisa. É uma maneira de enriquecer algo e sugerir que o que faço vem de um mundo que tem mais possibilidades das que tu, espectador, estás consciente.
Sabrina D. Marques – O uso recorrente de narração em voz off é um dos mais inventivos recursos do seu estilo, que o usa de forma não clássica – tem simultaneamente uma dimensão psicanalítica, confessional, de substituição dos diálogos entre as personagens, etc – em suma, é um pilar verbal organizador da narrativa e que mostra exactamente essa procura de uma visão que está fora do filme. Porque diz, então, que não está interessado em contar histórias, já que escreveu todos estes seus primeiros filmes?
Não é que eu não esteja interessado em contar histórias, eu não sou é um contador de histórias. Há escritores de ficção que adoram contar histórias. As histórias como que saltam deles. Isak Dinesen foi uma dessas escritoras ou Italo Calvino. Têm mil histórias para contar. Eles acomodam o significado do que querem dizer dentro da história. Eu nunca fui, de facto, um contador de histórias. Mas quando comecei a assistir ao início dos meus filmes, quando foram exibidos aqui na Cinemateca, apercebi-me que estava um pouco enganado quanto a isso. Eu era um cineasta muito instintivo, mesmo hoje ainda o sou. Quando monto os meus filmes, não começo por nenhuma noção pré-concebida. Reúno os clipes que quero e olho para eles, depois digo “este fica com este” e narro para o computador. Eu não escrevo antes, nunca sei para onde vou. É uma maneira espontânea, divertida, de trabalhar. Um modo muito aberto a ideias que vão surgindo mais tarde. No mais recente filme que fiz, que irei mostrar esta sexta, Max & James & Danielle (2015), que é sobre Max Ophüls e dois dos seus actores favoritos, Danielle Darrieux e James Mason, eu perguntei a mim mesmo como teria sido se ele tivesse conseguido reunir os dois num mesmo filme. Depois: eu sei que Stanley Kubrick foi influenciado por Ophüls. Este travelling parece um que Kubrick usa em The Killing (O Assalto ao Hipódromo, 1956). Transfiro The Killing para o meu computador e adiciono essa cena. Depois, há uma cena final com James Mason e a mulher que ama num filme magnífico de Ophüls que, se não viram, deviam ver: Caught (A Cilada da Ambição, 1949). Essa cena é muito semelhante ao fim de Les dames du Bois de Bologne (As Damas do Bosque de Bolonha, 1945) [de Robert Bresson]. Ao montar, ponho as duas cenas e apercebo-me que são exactamente iguais! Não sei o que significa e é muito improvável que Ophüls tenha visto o filme de Bresson, mas este foi feito cinco anos antes de Caught, por isso, talvez… Estas conexões podem ser feitas a todo o momento. Quando fazemos um filme de ficção é difícil sairmos e voltarmos a entrar com algo de novo. Godard conseguia, mas era – e é – um génio.
LM – É muito interessante encontrar algumas vezes nos seus ensaios fílmicos a questão “e se?”. Há um momento em From the Journals of Jean Seberg em que põe o rosto de Audrey Hepburn sobre Jean Seberg em Bonjour tristesse (Bom Dia, Tristeza, 1958) perguntando: “e se, de facto, Otto Preminger tivesse escolhido Audrey Hepburn para interpretar aquele papel no lugar de Jean Seberg?”. É como se fosse um jogo ou uma brincadeira.
Um ensaio que estou a fazer neste momento responde à questão “e se o Billy Wilder tivesse realizado Sunset Boulevard (O Crepúsculo dos Deuses, 1950) com os actores que queria, Mae West e Montgomery Clift?”. Que ideia terrível! Terrível! Terrível! (Risos). Ou: “e se Lana Turner não se tivesse demitido de Anatomy of a Murder (Anatomia de Um Crime, 1959)?”. Não teria sido terrível se não fosse Lee Remick? Esta coisa do “e se?” acabou por ser uma sorte para muitos cineastas que tiveram de ir por outros lados, à procura de soluções de substituição. “E se eu tomo este comboio em vez de aquele? E se a pessoa que eu conheci naquele comboio não estava no outro?”.
RVL – Quando olha para todos esses filmes com uma perspectiva dos nosso dias está também a fazer um exercício “e se?”. Está a fazer uma nova história, olhando os filmes de uma maneira revisionista.
É tudo revisionismo agora. E será assim a partir de agora. Os filmes deixaram-nos uma história fabulosa, que é uma história muito distorcida também. Talvez em 20 anos tudo o que nós dizemos hoje será revisto de novo. A perspectiva está sempre a mudar. Eu tenho o hábito de pensar que tenho as respostas certas, mas se calhar estou errado.
LM – Fala muito de actores e, de facto, o seu trabalho ensaístico gira muito à volta de grandes actores. Não está bem no enfiamento de uma “auteur theory”.
Isso já me foi referido, mas não me tinha apercebido. Mas acabamos por conhecer muita coisa dos realizadores através dos actores. Rock Hudson não teria sido possível sem Douglas Sirk ou Jean Seberg sem Otto Preminger. Não estou interessado em limitar o assunto tanto que é só para as pessoas que conhecem Max Ophüls. Não estou a fazer também “teses de doutoramento” sobre Max Ophüls. Quero que os filmes sejam vistos por todos. Torno-os, assim, mais gerais. De outro modo, torno-me muito académico e eu não quero isso.
SDM – O título do seu livro The Moviegoer Who Knew Too Much produz uma reflexão sobre a falsificação da realidade e dos lugares operados pelo artifício do cinema. No fim, se o cinema é popular e Hollywood existe porque o cinema é popular, ele é feito para alimentar a criança que existe dentro de cada espectador, que quer viver numa fantasia durante um determinado período de tempo.
Penso que sim, mas quero responder correctamente. Preciso de escrever primeiro [emprestamos uma caneta Bic e uma folha branca a Mark].
Vou tentar responder à questão, partindo do meu ensaio mais recente, Max, James et Danielle. Em 1950, Max Ophüls ia realizar um filme baseado num romance de Balzac, La Duchesse de Langeais, com James Mason e Greta Garbo, que ia suspender a reforma para participar nesse filme. Por causa de uma variedade de imbróglios financeiros, o filme acabou por não ser realizado. Para mim, este foi o melhor filme nunca feito. Nesse meu ensaio, eu digo algo parecido com isto [Mark lê o texto que escreveu na folha branca]: “Este será sem dúvida um dos mais filmes mais populares na cinemateca ainda por construir para os filmes não realizados e projectos de sonho por concretizar”. Tenho de dizer, então, sim. Neste filme digo ainda que Max Ophüls quer esteja a fazer filmes em França ou na América o sítio ideal para ele era a Viena da viragem do século, como se vê em La ronde (A Ronda, 1950) ou Madame de… (1953). Ele não nasceu lá, não foi criado lá, só conheceu Viena enquanto adulto. Ele é muito como nós, espectadores cinéfilos, porque ama algo que ou não existe ou não se pode habitar.
RVL – Tem esse fascínio por filmes que nunca se concretizaram. Mas e os filmes perdidos ou filmes que foram iniciados mas depois não chegaram a ser concluídos? Consideraria acabá-los?
Seria muito arrogante da minha parte fazê-lo. Mas tenho esse fascínio também. Durante muito tempo, projectava escrever um romance sobre a experiência de Eisenstein no México. Mas não estou disposto a estar a escrever durante três anos e depois achar que não é nada de especial. Depois perguntei-me: “e se me debruçar sobre uma série de filmes perdidos?”. É um tema que me interessa. Por outro lado, a versão do assistente Grigori Aleksandrov de ¡Que Viva Mexico! é terrível. Não conseguimos imaginar como teria sido se fosse Eisenstein a montar. Ele era um dos grandes montadores de todos os tempos. Tenho agora a curiosidade de quem assiste a um acidente de carro por este novo filme de Orson Welles [The Other Side of the Wind, último filme de Welles que ficou por concluir, cuja campanha para a sua reconstrução está em curso]. Ninguém vai conseguir montá-lo como Orson Welles. É um sonho inútil. Não sabemos o que surgirá daqui…
RVL – Para mim, o problema desses filmes é que procuram respeitar o que o autor queria. Estava à procura de alguém que dissesse “ok, ele pensou assim, mas eu não gosto. O filme é meu e eu vou acabá-lo à minha maneira”.
Bem, não podes dizer “ele pensou assim”, porque não sabemos. Só podes pensar na maneira como pensas, não na maneira como outra pessoa pensaria. Sim, seria interessante isso numa aula de montagem: “Ok, aqui está o ¡Que Viva Mexico!, tirem a banda de som, façam uma versão vossa”. Se eu der aulas de novo, faço isso.
LM – A propósito de Histoire(s) du cinéma, Godard chegou a dizer que, caso não conseguisse obter alguns dos direitos dos filmes que cita, estaria disposto a realizar algumas reencenações (reenactements) desses excertos. Estilo: Griffith e John Ford no quintal do Godard. O Mark trabalha neste momento “sem câmara”. Vê-se a voltar a trabalhar com uma?
De facto, não. É impossível prever o futuro. Adoro actores e quando eles são bons não há nada como isso, mas não tenho ideias neste momento nesse sentido. Por ora, quero fazer cinco ou seis destes ensaios.
LM – Vivemos um período de boom dos ensaios audiovisuais. Temos uma série de pessoas a fazer esse género de exercícios, novos e velhos, numa mistura interessante. Temos, por exemplo, Tag Gallagher e David Bordwell, que lêem textos sobre imagens. Mas o Mark faz uma coisa diferente. São, de facto, filmes.
Eles dizem: “aqui está um plano de fulano a andar no corredor. E nós vemos o fulano a andar no corredor”. Assisti a um que Tag Gallagher fez sobre Mogambo (1953). Ele mostra uma cena a desenrolar até ao fim. Na minha opinião, tu não podes deixar que o espectador caia no filme, porque depois ele não quererá voltar para a tua narração: “não me chateies com a tua narração! Quero continuar a assistir ao filme!”. Temos de o lembrar que é um comentário sobre filmes. Não o podemos deixar envolver demasiado nas cenas. Não é esse o propósito dos ensaios. Há um novo filme de Thom Andersen que quero muito ver. Respeito muito o seu trabalho.
RVL – Quando faz estes filmes vê-se a si mesmo como um crítico?
Bem, eu ponho as minhas opiniões. Mas não. Por exemplo, tive de voltar a ver o La grande illusion (A Grande Ilusão, 1937). E detestei, é tão lamechas, tão sentimental… É do género: “A guerra é tão má, as pessoas não deviam lutar umas contras as outras”. Por favor, a coisa é um pouco mais complicada do que isso! Mas tento não me meter. Digo “o sublime Madame de…“? Sim. Não digo o “terrível…”. No filme de Jean Seberg, todos os filmes que ela fez com o marido são terríveis e isso é claro nos excertos que mostro. Eu não sou um crítico, não gosto do “thumbs up, thumbs down”. Sobretudo quando existem buracos de lagarta que nos permitem entrar nos filmes. Interessa-me o ponto de vista da lagarta sobre a maçã.
LM – Sente-se o pai desta vaga?
Quando o Rock Hudson’s Home Movies saiu em Blu-ray tive algumas das melhores críticas da minha vida. E diziam que eu era não o pai, mas o avô dos ensaios audiovisuais e “ele inventou o supercut“. Tive de “googlar” essa palavra para saber o que significava. Supercut é como o fim de Rock Hudson’s Home Movies, vários planos dele a dizer adeus. São vários exemplos do mesmo. Terei inventado, então, essa linguagem. Hoje qualquer pessoas pode fazer isto. Existem maneiras interessantes de não tanto combater a cultura, mas de uma pessoa se tornar numa espécie de resistente a esta super-abundância non-stop de imagens. Portanto, sim, em certo sentido eu sou parte disto.
LM – E quanto aos seus filmes de ficção dos anos 70, sente-se também pai ou avô da geração de cineastas independentes dos anos 80 e 90: Jim Jarmusch, Hal Hartley, Whit Stillman ou Todd Solondz?
Não. Hal Hartley disse que os meus filmes o influenciaram muito. Também Todd Haynes me disse isso. Não sinto grande afinidade por estes gajos – porque só são gajos? (Risos) Penso que todos eles fizeram escolhas estranhas nas suas carreiras. Não creio que as aprove. Nunca foram para lá do que conseguiam fazer. Limitaram-se a fazer a mesma coisa várias vezes. Não sei porque é que cineastas em posição de poder, como John Huston, não faziam filmes melhores, mais arrojados. Por que não iam a sítios que não tinham ido antes? Há cineastas mais comerciais, como Paul Mazursky, que estão sempre a fazer o mesmo tipo de filme. É isso que é admirável em Godard. Ele faz sempre coisas refrescantes e diferentes. Podemos não nos apaixonar sempre. Mas surpreende-nos. Faz qualquer coisa nova e fresca. E não a mesma coisa a toda a hora. Um cineasta deve tornar-se mais auto-exigente. Não sei… Por exemplo, Brian De Palma. Há pessoas que admiram o seu trabalho, mas eu não percebo. Para mim, é um copista de Hollywood. Prefiro a versão de Hitchcock por Chabrol. De Palma parece que está a foder um cadáver. É assim para mim.