Quando o Cine-Teatro Monumental foi demolido, em 1983, as minhas idas ao cinema limitavam-se a duas visitas por ano ao Tivoli para ver animações da Disney. Nunca conheci a grande sala do Saldanha, mas cresci a ouvir os meus avós falar de sessões de gala com filas de automóveis que iam até à Estefânia (eu não sabia muito bem onde isso era, mas imaginava que fosse muito longe) e carreiras especiais de autocarros em dias de estreia.
Lembro-me, isso sim, e muito bem, das quatro salas do Monumental inauguradas em 1993 onde, a par de outros cinemas da Medeia Filmes como o King, o Nimas e o Residence, vi tantos filmes. Eram os anos entre a Lisboa 94 e a Expo 98, quando disparou a oferta cultural em Lisboa e parecia que se encontrava sempre meia Lisboa em todas as sessões de cinema. No novo Cine-Teatro Monumental, lembro-me da arquitectura de José Egas Vieira e Manuel Graça Dias; das sessões apinhadas da meia-noite e das 2 da manhã (!) para ver o Parque Jurássico (Steven Spielberg, 1993); d’A Libertação de Prometeu programada no Festival Monumental por A.M. Seabra em 1995; das outras quatro salas no Saldanha Residence funcionando como um só cinema depois de 1998; e das filas sempre intermináveis na bilheteira centralizada e de desesperar a olhar para o número de lugares disponíveis a diminuir nos quadros electrónicos…
Como muitos dos projeccionistas que fizeram a transição do 35mm para o cinema digital, Ricardo tem a nostalgia da película e o Cinema Paraíso na ponta da língua.
Vinte anos mais tarde, o panorama é muito diferente. O Residence fechou em 2011 (para reabrir duas salas como @Cinema dois anos depois), o King em 2013 e, enquanto terminava este texto, anunciou-se o encerramento do Fonte Nova. Ao longo destes anos, alguns funcionários foram transferidos para outras salas da Medeia, mas outros ficaram sem emprego. Quando visitei o Monumental e o Nimas — ainda sem saber que seriam em breve os dois últimos cinemas Medeia em Lisboa— eles já partilhavam o mesmo gerente (Pedro Esteves, cheio de vontade de voltar a encher estas salas) e o mesmo grupo de três projeccionistas. Destes, Ricardo David, 37 anos, e Santilal Meggi, 55, eram os que estavam há mais tempo na Medeia. Falar com eles foi começar a desfiar um novelo de memórias sobre o tempo da projecção em película, sobre antigos colegas e sobre as salas que não param de fechar.
Cada turno é passado entre os dois cinemas, Rua das Picoas abaixo e acima. Hoje, acompanhamos um turno do Ricardo David e visitamos com ele o Monumental. Ricardo trabalha aqui desde Setembro de 2001. Aprendeu a projectar película com os colegas mais velhos, entre os quais Santilal Meggi e outro colega, o Sr. Diveche, que passaram por praticamente todos os cinemas da Medeia — uma história que ficará para outra altura. Como muitos dos projeccionistas que fizeram a transição do 35mm para o cinema digital, Ricardo tem a nostalgia da película e o Cinema Paraíso (Giuseppe Tornatore, 1988) na ponta da língua. Confessa que guardou muitos fotogramas partidos e ri-se quando descreve a aventura que era atravessar a Avenida da República com um filme inteiro montado numa bobine quando o Residence e o Monumental funcionavam em conjunto.
No tempo da projecção digital, o trabalho de Ricardo passa pelas habituais tarefas semanais de ingest dos filmes e, sobretudo, pela resolução quotidiana de pequenos problemas. Estamos no átrio do Nimas quando o telemóvel chama para resolver uma falha na reprodução de som numa das salas do Monumental. Nada de especial, a não ser a queixa do espectador — “deve ser a película que deu salto” — coisa impossível num cinema que deixou de projectar película há vários anos. Esta contrariedade foi fácil de resolver, mas nem sempre é assim. Como conta Ricardo, os problemas do projectores digitais são sempre invisíveis — um ficheiro corrompido ou que simplesmente deixa de funcionar; uma incompatibilidade entre versões de software — isto é, complicações que acontecem longe da vista e, mais importante, fora do alcance de uma reparação manual rápida. Já os projectores de película, pelo contrário, tinham sempre queixas mecânicas, fáceis de ver e rápidas de consertar. Quando Ricardo enumera tudo o que podia correr mal no tempo da película não está exactamente a fazer o elogio do digital; está, pelo contrário, a fazer uma lista de todos os problemas que qualquer projeccionista conseguia resolver num instante para continuar a sessão.
O Monumental tem duas cabines. A do cine-teatro e outra, comum às restantes salas e situada exactamente por baixo da primeira. É um corredor estreito e com um tecto muito baixo a confirmar a mais velha alcunha dos projeccionistas — os “marrecos”. A meio da cabine, uma escada metálica é o único acesso para o nicho do projector da sala 1. Nem imagino o que devia ser carregar uma cópia ali para baixo. Todos os projectores são digitais, vindos do Residence (um Christie2007X na sala 1, e dois NEC1200C para as salas 2 e 3). Poucos vestígios restam já do 35mm. Ricardo aponta os furos no chão onde estavam os velhos Victoria (um deles equipa agora a cabine do Nimas) e os pratos das cópias e os buracos nas paredes onde se fixavam os suportes do mecanismo de transporte de uma cópia entre projectores (interlocking). No meio da sala está uma mesa, agora sem uso, de onde se fazia o controlo remoto dos projectores de película e onde pequenos monitores vídeo repetiam a imagem de todas as salas. Ainda na parede, verdadeira peça de museu, pode ver-se o programador Crouzet de rolos perfurados que controlava os arranques automáticos dos projectores e as mudanças de janela e de objectiva.
A cabine do cine-teatro é, pelo contrário, particularmente espaçosa. Além disso, é quase toda visível da plateia de 378 lugares (a maior sala do Monumental), da qual está separada por uma grande parede de vidro. Afinal, esta cabine foi desenhada para funcionar igualmente como régie de espectáculos de teatro e de concertos. Aqui, o projector digital (um Christie CP2000X, instalado em 2007) e o projector de 35mm Victoria 5 coexistem lado a lado. Ricardo dirige-se imediatamente ao Victoria, mostrando a localização dos vários leitores de som (DTS, Dolby Digital, SDDS, etc.) e, junto aos pratos, a maneira como se mudavam os trailers e os anúncios sem mexer na cópia do filme montada a seguir. Actualmente, só algumas sessões do Lisbon & Estoril Film Festival lhe permitem, todos os anos, matar saudades da película.
Os automatismos dos projectores digitais estão a funcionar e as sessões sucedem-se nos horários pré-programados. A não ser que seja chamado para resolver alguma falha, Ricardo David passa uma parte do turno nas salas, a verificar a imagem e o som da projecção digital, mas também, claro, para ir vendo o filme. Pode assistir ao final hoje e ao princípio noutro dia, mas acaba por ver assim quase todos os filmes, aos bocados, como no tempo das sessões contínuas.
Na próxima ida ao Monumental, se alguém se levantar a meio da sessão, talvez não seja um espectador desiludido, mas sim Ricardo, o projeccionista, que já viu o filme a partir dali ou que foi acertar qualquer coisa na cabine.
Fotografias de Mariana Castro
Agradecimentos: Pedro Esteves, Ricardo David, Santilal Meggi, Manuela Mina, Ana Isabel Strindberg.