Aquilo que incomodamente se designou como “cinema de terceiro mundo” tem sido sempre alvo de uma espécie de olhar mútuo (ou campo/contra-campo) entre: muitos casos, uma sobrevalorização ocidental, herdeira de um sentimento de culpa pós-colonial e, do outro lado, a necessidade de fazer um filme-bandeira ou denúncia de uma situação ao mundo. Se é certo que o filme de Sissako está longe de preencher qualquer destes lugares extremados, podemos facilmente aproximá-lo por via de uma noção de “ocupação.” Ambas as reacções tipificadas que descrevi são-no sobretudo porque representam uma ocupação do espaço do outro: o ocidental quer ocupar o espaço do terceiro mundo ao receber uma genuína aceitação deste; inversamente, o herdeiro do cinema do terceiro mundo quer ocupar o espaço mediático daquele, chamando atenção para o seu próprio espaço.
Dito isto, Timbuktu (2014) retrata um episódio real da ocupação da cidade do Mali em 2002 por um grupo jihadista. Deste controlo resulta que os planos largos e coloridos de Sissako e a serenidade dos seus habitantes (entre os quais um pai de família que subitamente se envolve num conflito com um vizinho pela morte da sua vaca favorita de nome GPS) são invadidos, não menos serenamente, pelo dictum religioso que proíbe o futebol, a música, os cigarros, o riso e parece obrigar todos a cantar e a tocar despercebidos no meio da noite ou a fumar às escondidas. Mais do que os gritos dos oprimidos ou a violência dos opressores é importante para o realizador mauritânio mostrar o jihadismo nas suas contradições internas, na sua fragilidade argumentativa, desagregando quer a noção que pudéssemos ter de uma relação tipo vivida durante uma ocupação, e com ele, “desocupando” também o próprio filme de uma posição de evidente manifesto.
Talvez a cena mais simbólica de todo o filme seja aquela em que alguns jovens jogam futebol sem bola. Um futebol imaginário é o jogo que se joga em Timbuktu.
Desta passagem de uma típica violência a uma subtileza fazem parte o humor (como na sequência da mise en scène de um vídeo jihadista em que um jovem hesita, não olha em frente, não sabe o que dizer para explicar os motivos da sua nova militância religiosa), a ironia (como no diálogo em que se escolhe entre Messi e Zidane e uma das personagens diz que a “França nunca deu nada a ninguém e de repente ganhou um Mundial”) ou o simbolismo. Do plano inicial, com um antílope a escapar-se dos jihadistas, ao último, de uma criança que também foge dos mesmo jihadistas acompanhada pela câmara de Sissako, há um esboço de paralelismo sobre a questão do cerco. Fugir é necessário mas para onde? Não é que haja já muitos pontos de referência: morreu o GPS, ou a GPS.
Talvez a cena mais simbólica de todo o filme seja aquela em que alguns jovens jogam futebol sem bola. Um futebol imaginário, ou na sua versão cinematográfica, um retrato de um extremismo sem extremos, é o jogo que se joga em Timbuktu. E nem vinha mal em estender a metáfora, se uma vez destruídos os totems primordiais da religiosidade da cidade como acontece numa das cenas iniciais, se descartasse também dos “árbitros” da relação de cada habitante com Alá, e se ficasse apenas – como acontece com Zabou, uma das mais enigmáticas personagens do filme -, com esse terramoto sentido no corpo, interior e intransmissível.