Yin shi nan nu (Comer Beber Homem Mulher, 1994) é o terceiro filme de Ang Lee, e o terceiro de uma trilogia sobre a influência da figura parental e os dramas internos de famílias de Taiwan. Depois de dois filmes sobre as complicações das vidas de emigrantes taiwaneses na América, este filme incide sobre a história de um pai e das suas três filhas a viver na mesma casa, em Taiwan, e marca também o regresso de Ang Lee à ilha, depois do próprio ter emigrado para os Estados Unidos. Um filme sobre um consagrado chef que perdeu o palato, e por isso, a alegria de viver, apresenta desde logo uma mensagem amarga, mesmo que passe o resto do tempo a contradizer essa tristeza. Este é um filme onde o relevo para o detalhe vai gradualmente compondo um quadro complexo das várias facetas da vida familiar, sem esquecer o confronto geracional entre a figura do pai e as suas filhas, onde o embate é entre os valores do passado (tradicionais, ou seja, orientais) e os valores do futuro (ocidentais, neste caso). É mais uma história sobre a fragmentação da família tradicional como suporte para um código de vida, mas antes de ser elegíaco em relação a um sentimento perdido, é uma janela para novas possibilidades, para uma continuação, apesar de tudo.
A atenção ao detalhe está patente desde logo na sequência de créditos inicial, que acaba por transformar-se na primeira sequência do filme. É uma vida inteira, uma dedicação a uma forma de arte resumida em cinco minutos, através de uma montagem que é uma súmula de mestria, agora sem uso, como metáfora para uma vida. Numa sequência de planos, vemos o velho mestre cozinheiro Chu (interpretado por Sihung Lung) a confeccionar de forma elaborada diferentes pratos, cada qual mais extravagante que o anterior e de diferentes graus de dificuldade, na preparação de um jantar de família, uma tradição semanal. Todo este cuidado parece desaproveitado, dada a perda de palato de Chu, mas é uma insistência do próprio, e revelador do seu caracter. Esta tradição de Chu e as suas filhas reunirem-se ao jantar de domingo é um ritual temido por elas, já que Chu parece alheio à sua perda de capacidades, e isso é um assunto tabu – Chu, como elemento patriarcal e mais idoso da família é inatacável. Dado o silêncio durante essas refeições ser, não raras vezes, interrompido por alguém para revelar novidades que abalam as bases desta família, esta sequência do jantar é repetida ciclicamente por Ang Lee ao longo do filme, de forma a perturbar o avançar da história. Ang Lee pontua o filme com pequenos twists, pequenas surpresas que são aqui o ingrediente de agitação – é um filme ancorado na narrativa, polvilhado com momentos de virtuosismo técnico por parte de Lee.
“Comer beber, homem mulher. Comida e sexo. Necessidades humanas básicas. É impossível evitá-las”. Esta afirmação surge como mote para leitura das relações humanas do filme, como descodificador de motivações
O primeiro jantar de família é interrompido por um telefonema a pedir a presença de Chu num palacete, para resolver um problema num banquete de alguém muito importante. Chu acaba por fazer a sua magia e salvar a noite, mas esta cena é um pretexto para outra, em que no final da noite, Chu conversa com um velho amigo, onde, entre copos, trocam lamentos sobre o passar dos anos. É nesta altura que aparece o título do filme, quando Chu afirma: “Comer beber, homem mulher. Comida e sexo. Necessidades humanas básicas. É impossível evitá-las”. Esta afirmação surge como mote para leitura das relações humanas do filme, como descodificador de motivações, particularmente nas diferentes histórias de cada uma das filhas de Chu. A mais nova, Jia-Ning, ainda na escola, aparece logo no início do filme a trabalhar num restaurante de fast food, ou seja, desfazendo de forma óbvia qualquer elevação da culinária como forma de arte. Jia-Ning é a mais ingénua, mas também a mais curiosa e desapegada, o que também se revela nas suas deambulações amorosas. A filha do meio, Jia-Chien, aparenta ser a mais bem-sucedida, com o seu emprego de executiva numa grande empresa, e a sua independência e espirito moderno são também visíveis na sua vida amorosa, onde mantém uma relação com um antigo namorado, agora reduzida a uma série de encontros sexuais sem consequências. Jia-Chien, que aparece pela primeira vez no filme nua, na cama, entre imagens dos cozinhados do seu pai, é a que no início do filme está mais perto de sair de casa, com uma promoção e um apartamento à vista. Jia-Jen é a filha mais velha, uma professora convertida ao catolicismo, uma solteira que nunca recuperou de um antigo desgosto amoroso, e que agora tem poucas expectativas de encontrar alguém.
Esta história de filhas relutantes em abandonar o pai para se casarem, com medo da solidão deste, e da fragmentação da unidade familiar, evocam outras histórias semelhantes de filmes asiáticos, em particular de certos filmes de Ozu. Mas antes de destacar essa comparação redutora, será mais importante olhar para a importância da comida como ritual de família, como factor de união e desunião, algo muito presente nos primeiros filmes de Ang Lee. Em Tui shou (Pushing Hands, 1992), um pai reformado muda-se para a casa do seu filho emigrado na América, onde passa a maior parte do dia com a esposa americana do filho, sem conseguirem comunicar. Esta inadaptação do pai é sublinhada nas refeições em família, onde o pai surge isolado, preso aos seus velhos hábitos alimentares, mas se as refeições são factor de desunião com o novo mundo, surgem também como factor de aproximação quando descobre outros companheiros emigrados, e mais velhos como ele, que respeitam a importância da refeição. No filme seguinte, Xi yan (O Banquete de Casamento, 1993), um taiwanês emigrado nos Estados Unidos é forçado a esconder a sua homossexualidade dos pais, e fá-lo através de um casamento falso para os pais assistirem. Depois de uma cerimónia apressada, e de um pequeno jantar, um amigo de família oferece um banquete para celebrar o casamento de forma apropriada, e assistimos a um festim extravagante, que terá repercussões nas personagens envolvidas.
O mesmo acontece na relação das personagens com o ritual das refeições em Yin shi nan nu. Mais do que uma especificidade cultural, Ang Lee apela à universalidade do tema das relações familiares, da passagem do tempo e da aceitação da mudança, que não tem que ser algo negativo. No princípio do filme, apesar da aparente calma, há uma inquietude escondida (e mimetizada por vezes pela câmara de Lee, em movimento), um desconforto com esta falsa tranquilidade. Apenas com as várias mudanças que vão surgindo, anunciadas durante os tradicionais jantares, únicos momentos onde estão todos juntos, parecem finalmente caminharem para alguma felicidade.
Yin shi nan nu (Comer Beber Homem Mulher, 1994) de Ang Lee será exibido pelo Cineclube Ao Norte, no dia 29 de Maio, pelas 21h45, em Viana do Castelo, no Auditório dos Estaleiros.