Faleceu, há cerca de um mês, Vicente Aranda, realizador que, de algum modo, está, para Espanha, nos antípodas do modo como Manoel de Oliveira sempre esteve para Portugal (juntava-os a circunstância de serem naturais das segundas e muy orgulhosas cidades dos seus países, Barcelona e Porto). Se Oliveira brilhava no circuito internacional enquanto passava por um perfeito desconhecido (mais do que isso: desprezado e enxovalhado) no seu país (com a excepção, que só confirma a regra, dos cinéfilos e dos ligados ao métier), Aranda, não tendo muitos momentos de destaque no estrangeiro [o maior será mesmo este Amantes (1991)], era um realizador acarinhado no seu país, sobretudo a partir dos anos 90 (Amantes foi mesmo galardoado com os Goya de melhor filme e melhor realizador). Em todo o caso, para um realizador que sempre lidou com as questões do desejo e do sexo (e, convém dizê-lo pela sua mediática atualidade, com a mudança de sexo, em Cambio de Sexo, filme de, sublinhe-se, 1977!), facilmente se compreende que, em Espanha, país “mal resolvido” com o Franquismo (como, em certa medida, Portugal com o salazarismo), muitos tenham sido os juízos de censura a que a sua obra sempre esteve sujeita pelas lentes dos moralistas, incomodados com a possibilidade (imagine-se) de um órgão genital poder aparecer num filme, como acontece – até muito ingenuamente – em Amantes. Agora imagine-se a indignação com um orgasmo masculino co-estimulado por um muito inusitado lenço…
Se bem que não nos desagrade o tratamento artístico (no cinema ou noutras expressões) do “sexo pelo sexo” (mais ou menos graficamente), Amantes, melodrama erótico-noir ambientado na Espanha dos anos cinquenta, tem a particularidade de se preocupar com o “texto” e o “contexto”. Queremos dizer que o desejo e o sexo (o texto, a superestrutura) são, nas mãos de Aranda, o leitmotiv para tratar todo um mundo moral, político, social muito específico (este o contexto, a infraestrutura), a saber, o da Espanha franquista-fascista, país sombrio, hipócrita e claustrofóbico, tal qual Portugal, tal qual a Itália de Mussolini, sua influência-mãe. Esse mundo é perfeitamente caracterizado, com notável poder de síntese, nas primeiras cenas de Amantes, nas quais decorre uma missa sob “escolta” militar (literal e metaforicamente: os militares estão atrás dos crentes). Religião e Força, Igreja e Exército, portanto, em perfeita aliança: essa, afinal, a fórmula política ditatorial com que Franco impôs a sua mão de ferro, inclusivamente metendo a monarquia “na gaveta”.
Mas é simultaneamente nessas primeiras cenas, esplendidamente filmadas, que, sob o peso do medo e do fechamento, uma aberta, uma luz chamada desejo irrompe de forma perfeitamente irresistível, outra forma de dizer que nenhuma força é capaz de controlar o que de mais profundo, instintivo ou animal existe dentro dos homens, nesta inevitabilidade só podendo ver algo de errado os mesmos moralistas que se afadigaram a denegrir a obra de Aranda pelos motivos aludidos nas linhas iniciais. É, então, em plena oratória do padre que Paco (Jorge Sanz, a fazer lembrar Alain Delon), pressentindo o olhar insistente de Trini (a qual, devendo assistir à missa que decorre à sua frente, se encontra a olhar para detrás de si), e tendo que manter o seu próprio olhar fixo em frente (até por se encontrar em acto solene do exército), acabará por não resistir, fazendo coincidir o seu olhar com o de Trini (Maribel Verdú, habitué da filmografia de Aranda), jovem que, durante todo o filme, lhe dedicará um amor total e sufocante. Numa “jogada” tão simples quanto esta, tão formulaica quanto elegante, Aranda “destrói”, com a desatenção à missa (de Trini) e o desrespeito ao formalismo militar (de Paco), os dois grandes símbolos/instituições do franquismo já mencionados (a Igreja Católica e o Exército), ambos responsáveis pelo obscurantismo militante que havia de durar até quase aos anos 80. Contra o Hosana (termo hebreu que significa “Salve-nos, por favor”) que o padre repetidamente pronuncia durante a missa, Aranda oferece a salvação – não pelo sacrifício ou pelo esmagamento transcendental, antes pela liberdade (de espírito, do corpo) e pelo prazer. Há muito de orwelliano aqui a ecoar: em 1984, o sexo e o orgasmo são uma “praga” que o Grande Irmão tenta eliminar a todo o custo, justamente pelo facto de o prazer ser, em si mesmo, o princípio primeiro e último de toda a subversão de um determinado status quo, o princípio de toda a revolução. “Quando os dias são maus [e sabemos que males estão aqui implícitos], é preciso fazer uma loucura”, sintetiza, muito argutamente, Luisa na primeira noite em que se deita com Paco. Revolução e sexo (as loucuras) lado a lado, pois então, contra a monotonia cinzenta do dia-a-dia (a do regime e a da vida sexualmente inexistente de Paco).
Tal como em Ai no korîda, o amor auto-destrutivo, feito dependência sentimental e, sobretudo, física, está sempre paredes meias com a morte
Paco e Trini são o casal de namorados de poucos recursos, ele de volta à “vida civil” depois de cumprido o serviço militar, ela empregada doméstica de uma abastada família patriarcal chefiada também por um militar. Jovens e humildes, estão empenhados em casar e ser felizes – ou seja, em ter o dinheiro dos patrões de Trini, modo de o filme ilustrar uma Espanha classista, no qual o trabalho “árduo e humilde” pode fazer os pobres sonhar com uma vida melhor (como, logo ali ao lado, o salazarismo inculcava nas mentalidades do povo). Para isso, Paco irá para Madrid em busca de oportunidades, forma de Aranda dar a mostrar as dificuldades de um país na ressaca do pós-guerra. O problema é que as “oportunidades” que se lhe oferecem são de outra jaez, e a grande oportunidade surge precisamente quando Paco se despede do primeiro e único trabalho, bem mais prazerosa que a fábrica ou a padaria em que nunca chega a trabalhar, mentindo a Trini, que o julga muito empenhado. Já se pressente que, neste contraponto entre interior e exterior, aldeia e cidade, o convervadorismo (e a castidade militante de Trini) cede lugar a qualquer coisa (o liberalismo, a libertinagem) ou a alguém. Esse alguém é Luisa (personagem que valeu a Victoria Abril, musa de Aranda mas também de Almodóvar, o Urso de Prata para melhor actriz na Berlinale de 1991), mulher mais velha e experiente que arrenda um quarto a Paco… e não só: também prazer, sexo, paixão, tudo coisas que Trini lhe nega. Aquilo que uma dá e outra não dá – e, mesmo quando Trini o dá (aconselhada pela sua patroa, numa alfinetada à discreta hipocrisia da burguesia), não o faz com os mesmos resultados (estupendamente confrangedora a cena em que, muito angustiada, muito subserviente, diz a Paco que pode “aprender” a fazer “melhor”) –, essa equação matemática de mais e menos, é o que desligará Paco de Trini, primeiro a título meramente carnal, mas depois, mesmo, espiritual ou sentimental. O desligamento, agora de Paco e Luisa, é, a certa altura, do mundo inteiro, momento em que os amantes (não apenas no sentido pejorativo que tradicionalmente está associado ao termo, mas, também, simplesmente no de “pessoas que se amam”) se entregam exclusivamente ao prazer, nesse crescente e obsessivo isolamento – a certa altura, pelo meio de tanta alcova, um dos amantes pergunta ao outro se não deviam… comer qualquer coisa – ressoando os amantes de Ai no korîda (O Império dos Sentidos, 1976). E se amantes são (também) “os que se amam”, então, eles não são, neste filme, apenas Paco e Luisa, mas, igualmente, e apesar de tudo, Paco e Trini.
Tal como em Ai no korîda (apenas um exemplo, talvez o mais icónico, de uma linhagem japonesa iniciada nos anos 60 com a Nuberu Bagu), o amor auto-destrutivo, feito dependência sentimental e, sobretudo, física, está sempre paredes meias com a morte, neste caso, não auto mas hetero-sacrificial, a qual exige a “expulsão” do elemento a mais de uma ménage que só Paco quis que fosse… a trois. Curiosamente, porém, as coisas inverter-se-ão, e de uma “morte encomendada” (hetero-sacrificial) passaremos a uma “morte assistida” (auto-sacrificial), trabalhada naquela que é, porventura, a mais poderosa cena do filme, não por acaso filmada em frente a uma igreja, provocação “herética” que mancha a neve (da cor da pureza de Trini) de sangue, espécie de menstruação última e símbolo de entrada num novo mundo (no “céu” que não existe, no “céu” postulado por essa I/igreja que os confronta), como aquele em que, biologicamente (mas também miticamente), entram as mulheres aquando do primeiro “sangramento”. Apesar de Trini já se ter “dado” a Paco anteriormente, sabemos que não o foi pacificamente; por isso, o vermelho que agora é derramado na neve é o da única (e, neste sentido, primeira) verdadeira penetração – a fatal – de Paco. Neste momento, sim, Trini perdeu a “virgindade”, i.e., a ingenuidade de acreditar que o amor e as pessoas podem ser “puras” num mundo que, do ponto de vista da religião, e por causa da religião, é um lugar de “pecadores”.
Mas – retomando uma ideia acima já enunciada – o “texto” que é a morte constitui-se, ainda, como instrumento de aproximação – uma vez mais – à Espanha franquista, um país cheio de “esqueletos no armário”: o do marido de Luisa, sim, mas, afinal, o de todo um regime, sobretudo quando, como se sabe, o desaparecimento e assassinato de milhares de espanhóis às mãos do regime continuar a ser uma questão nacional, sendo diversos os apelos, inclusive da ONU e da UE, à realização de uma investigação oficial por parte do Estado espanhol. A este respeito, o facto de Paco passar a usar os fatos do marido de Luisa, sem que isso lhe desperte qualquer achaque moral, é também uma forma de Aranda questionar (além de ilustrar uma artificialíssima “ascensão social”), num registo muito fassbinderiano, a hipocrisia de todo um povo, pronto a mudar de regime “como quem muda de camisa” sem daí tirar as devidas consequências, como se, travestindo-se de uma coisa diferente, se pudessem apagar os factos do passado.
O desaparecimento de Aranda transmite, como tantas vezes acontece (infelizmente, mas é mesmo assim), essa sensação de se “começar pelo fim”, isto é, de se iniciar a descoberta de uma obra pelas piores razões possíveis. Antes isso que nada e, portanto, que Amantes, baseado num crime de “faca e alguidar” ocorrido nos anos 40 (Espanha, como se sabe, é um país de tão brandos costumes como Portugal…), seja uma porta de entrada é o nosso desejo, com a vantagem de este condensar as grandes traves-mestras do cinema do espanhol: o erotismo, a paixão, a violência. Boa oportunidade, assim como assim, para mergulhar na filmografia de autor de um país (Espanha) demasiadas vezes confundida com a obra de Pedro Almodóvar (sem com isto querermos menorizá-la).