O que se passou no dia 8 de Dezembro, às 21h30, no auditório principal da Fundação Calouste Gulbenkian foi algo de memorável, que dificilmente conseguirei traduzir em poucas palavras. Um auditório composto por homens e mulheres de todas as idades e ainda acompanhado por um animado exército de crianças assistiu a um double bill com mais de 90 anos. Em primeiro lugar, foi exibido Our Hospitality (As Leis da Hospitalidade, 1923) de John G. Blystone e Buster Keaton. Em segundo lugar, quando ainda não nos tínhamos recomposto das dores de barriga provocadas pelas gargalhadas, ocupou o grande ecrã The Gold Rush (A Quimera do Ouro, 1925) de Charles Chaplin. Com a combinação destes dois filmes, ficaram evidentes não só as diferenças entre os dois génios do burlesco como, ao mesmo tempo, a sua capacidade comum de serem mais actuais e modernos que muito do cinema que se faz hoje. Keaton apelando à sensação de vertigem e de risco, sem as almofadinhas do software. Chaplin fazendo cócegas ao coração e tornando nobre esta coisa de se ser humano. Os dois puseram crianças e velhos – e nós, os “do meio” – a exclamar e a gargalhar como se ali se redescobrisse a forma pura do cinema, isto é, da experiência colectiva do cinema. Foi isso que esta e outras sessões propiciaram aos espectadores que frequentaram o ciclo P’ra rir! E pela minha parte digo que esta experiência foi o tónico que faltava para levar a cabo este dossier dedicado aos grandes clowns do cinema. Sou um chapliniano até à medula, mas Keaton é o génio da mecânica do gag – como digo, mais do hardware que do software – , tão irresistível no seu tempo quanto o é hoje. Chaplin e Keaton são dois monstros do cinema à volta dos quais qualquer ideia de comédia paga dívida.
Face a isto, pedi autorização ao programador deste ciclo, João Mário Grilo, para reproduzir neste espaço as duas folhas de sala que foram distribuídas antes da sessão começar, onde fica patente uma possibilidade de diálogo não só entre filmes, mas também dos filmes com essa experiência memorável que foi vê-los, em sala, “90 anos depois”. Ainda é possível, e está bem viva, a hospitalidade do grande cinema mudo. Agradecemos ao realizador, programador e Professor João Mário Grilo a oportunidade de transcrever as suas palavras e, com isso, de deixarmos registada no À pala de Walsh a importância dessa experiência de riso e de vida. (Luís Mendonça)

O Passado Aqui Tão Perto: “As Leis da Hospitalidade” de Buster Keaton
Como muitas vezes acontece no cinema de Keaton – que se pode olhar, deste ponto de vista, como o primeiro cineasta “antológico” -, Our Hospitality tem um olho posto no passado de uma certa identidade dramática do cinema. Neste caso, no grande cinema de Griffith, figura tutelar da fundação do cinema e, muito em particular, nos seus grandes melodramas. Em Our Hospitality, é a memória desses filmes que Keaton revisita, sobrepondo o veio corrosivo, desconstrutor e modernista da comédia, à arquitectura sentimental do melodrama familiar de inspiração vitoriana.
A história de Our Hospitality é, assim, uma história clássica de vingança familiar que opõe várias gerações de duas famílias: os Canfield e os McCay. Últimos dos McCay, Keaton é portador da sanha que contra a sua família pende por parte dos Canfield (pai e três irmãos). Ameaçado de morte, na viagem que empreende desde Nova Iorque até à cidadezinha sulista das suas origens (uma fabulosa viagem que é feita numa réplica do famoso Rocket, de Robert Stephenson, uma das primeiras locomotivas a vapor), Keaton apercebe-se que o local em que mais estará a salvo é, paradoxalmente, a própria propriedade dos Canfield, já que, contra a execução da sanha familiar, se opõem as sacrossantas “leis da hospitabilidade” sulista, que impedem que um convidado seja morto na casa de quem o convidou.
A situação é assim prometedora e impecavelmente ajustada, tanto à impassividade expressiva quanto ao embaraço físico de Buster Keaton, que se desmultiplica em entradas e saídas de cena, desarmantes e prodigiosas. Mas é em campo aberto – nessas magníficas paisagens naturais que o cineasta sempre soube filmar de longe e sempre tão bem e de modo tão vertiginoso – que esta pequena narrativa encontrará o seu desenlance, não sem que, na famosa cena de salvamento da menina Canfield (Natalie Talmadge, então mulher do próprio Keaton, e que no filme toma o apropriado nome de Virginia), Buster tenha corrido perigo de vida numa plano extraordinariamente arriscado e que ia mesmo correndo muito mal.
Iremos então rir muito em Our Hospitality, mas é imperioso reconhecer como esse riso emerge tão perfeitamente de um mundo remoto que Keaton filma com humor, mas respeitando o tempo e ritmos próprios de uma América agrária e adormecida nas suas próprias utopias moralistas. Este gesto, de impecável concordância entre o olhar do presente (o cinema) e as crenças do passado, produz a estranha impressão de o filme ter sido mesmo feito no período histórico que representa, funcionando então o comboiozinho de Stephenson como o equivalente mecânico e sincrónico da câmara que o filma. Na sua particularíssima maneira, e sem negar um fotograma da sua modernidade, Our Hospitality é uma magnífica jóia etnográfica, recheada de elementos de um perturbante realismo “teatral”, um efeito para o qual contribui a correcção das arquitecturas (uma questão sempre essencial no cinema de Keaton) e dos comportamentos dos actores – todos impecáveis na reconstituição dessas atmosferas de antanho -, mas também a própria inspiração da sanha familiar do filme, no bem verdadeiro caso histórico e sanguinário, que opôs as famílias virginianas dos Hatfield e dos McCoy, entre 1863 e 1891.

Crer Para Ver: “A Quimera do Ouro” de Charles Chaplin
De história e etnografia haverá também que falar a propósito de The Gold Rush, terceira longa-metragem de Charlie Chaplin, dois anos após o belíssimo e muito atípico A Woman of Paris: A Drama of Fate (Opinião Pública, 1923). Keaton filmara as disputas familiares do sul, em Our Hospitality, Chaplin filma o norte, mais especificamente as paisagens geladas do garimpo de ouro no Klondike (“A Corrida ao Ouro”, a que se refere o título original do filme), misturando a memória desse êxodo humano massivo com a narrativa que o fascinara de um grupo de pioneiros perdidos e bloqueados pelo gelo na Sierra Nevada, no Inverno de 1846-47, e que mortos de fome, exaustão e frio, terão mesmo recorrido ao canibalismo. É o próprio Chaplin quem comenta esse episódio na sua Autobiografia, relacionando-o, directamente, com uma das mais famosas sequências de The Gold Rush: “Na criação da comédia, é paradoxal que a tragédia estimule o espírito do ridículo, por o ridículo ser, suponho, uma atitude de desafio: temos que rir da nossa impotência frente às forças da natureza ou enlouquecer. Eu li um livro sobre o Grupo Donner, que, no caminho para a Califórnia, perdeu o rumo, ficando bloqueado pela neve nas montanhas da Sierra Nevada. De 160 pioneiros, apenas 18 sobreviveram; a maioria deles morreu de fome e frio. Alguns recorreram ao canibalismo, comendo os mortos, outros cozinharam os mocassins para aliviar a fome. Foi a partir dessa tragédia angustiante que eu concebi uma das minhas cenas mais engraçadas. No meio de uma fome terrível, fervi o meu sapato e comi-o”.
Chaplin parece ter apostado, inicialmente, numa produção que faria integralmente jus a esta pulsão realista, tendo começado por filmar em exteriores naturais, perto de Truckee, nas encostas californianas da Sierra Nevada. Abandonado esse projecto inicial, ao fim de poucos dias de aventura, optando Chaplin por filmar no seu mais controlável estúdio de Hollywood, a verdade é que subsiste, em The Gold Rush, uma grande preocupação de fidelização narrativa, visual e documental. E não me refiro apenas à impressionante sequência inicial, com a travessia do desfiladeiro por centenas de garimpeiros, material filmado nas montanhas de Truckee. Muito para além dessas questões básicas de verosimilhança cenográfica – as quais são, até, deliberadamente contrariadas em certas sequências iniciais, como a da incrível perseguição do urso, por exemplo -, esse realismo que atravessa The Gold Rush – e que tão imbrincado está com o seu humor – provém mesmo das convicções das personagens e dos actores e actrizes que, no filme, as incorporam.
A gente de Chaplin é gente que acredita, colocando-nos na posição de espectadores das suas crenças e das suas emoções. Seguramente que Chaplin pouco conheceria da verdadeira corrida ao ouro do Klondike; talvez mesmo nunca se tenha aproximado das paisagens reais, para além das imagens que viu na colecção de vistas estereoscópicas na posse de Douglas Fairbanks e que incluíam material da “corrida ao ouro” de 1897-99. Mas o que ele conhecia mesmo muito bem era o material humano que punha diante da câmara, a começar por ele próprio, claro, mas também os fiéis Mac Swain e Tom Murray, ou a belíssima Georgia Hale, que se converteria, pouco depois do filme, na segunda senhora Chaplin (e veja-se, a esse nível, a saborosa sequência final). Assim é, que The Gold Rush surge, precisamente – perversamente, diria -, como o oposto do filme que poderia ser. Em vez de um filme de epopeia e cenários grandiosos, é um filme de construção minimalista – apesar das toneladas de sal – e, sobretudo, de gestos e olhares poderosíssimos. Isto mesmo fica demonstrado, emblematicamente, nas duas sequências, porventura mais célebres, de The Gold Rush: na coreografia dos pãezinhos e no delírio visionário de Big Jim McCay que , por acreditar que Chaplin é uma galinha, o transforma aos nossos olhos na galinha que está a ver. Assim, em vez de ver para crer, como é costume dizer-se, crer para ver. Aqui reside o segredo do riso chapliniano. que é também um dos mais bem guardados segredos do cinema – apesar de perfeitamente explicitado no drama de City Lights (As Luzes da Cidade, 1931) -, em que cada um verá o que pode, na medida do que sabe e das convicções que tem.
João Mário Grilo