Doc no Rio é uma iniciativa conjunta do Doclisboa com a Doc Alliance Films e a Liscont. O evento terá lugar na Gare Marítima de Alcântara na próxima sexta-feira (dia 26 de Junho) até domingo (dia 28 de Junho). São três dias de cinema ao ar livre, com entrada gratuita, que gozam de uma particularidade: o evento nasce para celebrar os mais recentes valores do cinema brasileiro. Uma oportunidade para o público português iniciar um diálogo transatlântico com um cinema que, pese embora a língua em comum e a profunda empatia cultural, não tem a devida implantação no circuito de distribuição nacional. A programação é da responsabilidade da investigadora e jornalista Maria Mendes, brasileira a viver há pouco tempo em Portugal e que, em entrevista À pala de Walsh, saúda esta oportunidade de poder mostrar aos portugueses o mais fresco cinema que se tem feito no seu país.

Este primeiro Doc no Rio propõe três dias com sessões duplas que incluem uma ou duas curtas-metragens seguida de uma longa-metragem, nalguns casos primeiras obras. A diversidade de paisagens e registos será a principal proposta deste ciclo. Maria Mendes escolheu programar seis filmes “muito diferentes uns dos outros” e que são representativos de um “cinema de risco, menos óbvio, menos convencional” vindo dos vários cantos do Brasil e não somente do sudeste (Rio de Janeiro-São Paulo), tentando, com isso, “descentralizar olhares”.
Provavelmente os dois títulos que mais imediatamente transmitem estas ideias de risco e desafio às convenções serão a curta-metragem de Kleber Mendonça Filho (realizador entrevistado pelo À pala de Walsh aqui), Vinil Verde (2004), e a primeira longa-metragem de Juliana Rojas, Sinfonia da Necrópole (2014). De um lado, encontramos uma história fantástica contada nos moldes de um livro infantil, uma proposta curiosa situada algures entre Shyamalan e Chris Marker, mas onde dificilmente se adivinha os passos que Kleber iria dar para realizar a sua primeira longa, O Som ao Redor (2012). Do outro lado, o desafio não é menor, bem pelo contrário: uma cineasta que se tem especializado no terror conceptual e atmosférico – veja-se a curta que assina com Marco Dutra, Lençol Branco (2003), também em exibição neste Doc no Rio – estreia-se no formato longo com uma comédia musical que tem como cenário um cemitério e protagonista um desajeitado “aprendiz de coveiro”. Apesar da boa disposição e de algum inspirado humor negro, não creio que esta espécie de Dellamorte Dellamore (O Homem do Cemitério, 1994) realizado por Jacques Demy seja paradigmático das qualidades de Juliana Rojas enquanto realizadora. Por exemplo, essas qualidades estão bem expressas na curta-metragem O duplo (2012), um dos mais notáveis filmes de terror que vi em muito tempo, mas que infelizmente não entra neste programa. Mesmo no que diz respeito ao trabalho que tem feito em colaboração com Marco Dutra penso que se perdeu com esta mostra a oportunidade de exibir Trabalhar Cansa (2011), filme ainda inédito em Portugal que, como tive ocasião de dizer ao realizador na entrevista que lhe fiz no passado mês de Abril, apresenta uma inesperada proximidade temática e filosófica com muitas das angústias que perpassam a sociedade europeia ou mesmo, muito particularmente, a sociedade portuguesa.

Entre Vinil Verde e Sinfonia da Necrópole estarão filmes, à primeira vista, menos arriscados, mas que, no fundo, também se pautam por essa vontade de escapar ao óbvio. Esta ideia de fugir ao previsível e “torcer” os géneros aparecerá aos olhos da maioria do auditório português como uma surpresa. É a sombra do audiovisual brasileiro que paira sobre as nossas cabeças, tão bombardeadas que vão sendo pela linguagem standard das telenovelas. Reduzir o “hiato” entre o público português e o cinema brasileiro é um dos objectivos assumidos pela organização. Para o efeito, Maria Mendes programou “cinema que se está a fazer agora no Brasil e que de alguma forma busca um distanciamento das narrativas de televisão”. O objectivo foi cumprido: não se encontra no conjunto dos filmes seleccionados qualquer espécie de “toque Globo” (a expressão é minha). Um filme como Da Janela do Meu Quarto (2004) estará mesmo nos antípodas da linguagem televisiva. Curta filmada em 8mm que faz dos movimentos de duas crianças na rua, captados a partir de uma distância que medeia essa “cena” da ” janela do quarto” chamada ao título, o único elemento de narratividade na imagem.
Apesar de Maria Mendes propor, no programa, um diálogo entre este filme, a curta de Kleber Mendonça e a longa de Petra Costa, Elena (2012), a minha tentação é pô-lo ao lado daquela que é, para mim, a curta mais conseguida desta colheita e que será mostrada no último dia de Doc no Rio: Fantasmas (2010) de André Novais. Esta é a primeira obra de um realizador que já este ano estreou a sua primeira longa Ela Volta na Quinta (2015) no IndieLisboa, deixando aí, aliás, óptimas indicações. Se a janela no filme de Cao Guimarães é a janela que é a câmara e quem a opera, algo semelhante se pode dizer acerca de Fantasmas: o ponto de partida do filme não é o objecto de desejo em frente à câmara, mas quem fala em off atrás dela. Sobre as duas personagens que falam nesse espaço invisível só sabemos o que ouvimos, que é uma conversa descontraída entre jovens. O que se esconde nesta narrativa mínima, que conta com um twist imprevisto que a avoluma, é o que a câmara nos mostra em plano fixo: uma bomba de gasolina, uma estrada e carros que vêm e vão. Nada de especial. Mas porque vemos isto? E o que querem as vozes que ouvimos? Há uma resposta simples, mas nem por isso pouco surpreendente, para estas perguntas. Essa resposta contém, por sinal, o segredo do engenho de toda a curta. Sem querer adiantar muito, apetece-me dizer, citando um título clássico de Joseph L. Mankiewicz, que o fantasma (ainda) está apaixonado.
Tanto em Fantasmas como em Da Janela do Meu Quarto um dos motivos de interesse, e especulação, será a distância que dista o observador do observado, mas o filme de André Novais, assumindo mais a exploração de um determinado dispositivo cénico “de vigilância”, acaba por ir mais longe ao provocar no espaço do próprio filme (na sua gramática visual e sonora aparentemente disjunta) a dúvida sobre o lugar que nós, espectadores, ocupamos na relação com aquilo que vemos e ouvimos. Um pequeno grande feito para um filme com apenas onze minutos.

Elena e A Cidade é uma Só? (2011) são primeiras longas-metragens mais próximas de um registo documental ou intimista. No primeiro caso, descemos às memórias privadas da realizadora Petra Costa, especificamente, a sua relação com a irmã desaparecida em Nova Iorque, a actriz e bailarina Elena Andrade. O dito “desaparecimento” tem contornos simultaneamente reais e metafóricos que formam a tessitura deste filme-poema, qual carta de amor para um destinatário ausente. Ao misturar home movies com cartas pessoais gravadas em fita magnética, Elena lembra vagamente as experiências introspectivas de Jonathan Caouette, Tarnation (2003), a pungente história de Sandrine Bonnaire e a sua irmã autista registada em Elle s’appelle Sabine (2007) ou o documentário autobiográfico de Sarah Polley Stories We Tell (Histórias que Contamos, 2012). O mais comovente aqui é a forma como Petra mergulha – se afoga – na história da irmã e no seu “eu descontrolado”. Fá-lo ao ponto de se confundir com esse eu, prolongando a sua presença num muito bonito gesto de amor – “qual o meu papel neste filme?”, pergunta a certa altura a realizadora no filme como quem pergunta “qual o meu papel nesta vida?”. Esta “estória de tristeza, loucura e felicidade” é um verdadeiro arrombo emocional. Elena promete inundar de lágrimas as águas densas do Tejo.
Em A Cidade é uma Só? conta-se a história do que correu mal na deslocação de uma população favelada na periferia de Brasilia para um lugar que, vendia a ideia o poder político, oferecia condições de vida muito mais “decentes”. O filme de Adirley Queiros começa como um típico “filme de denúncia” face ao engodo que prejudicou toda uma população, mas acaba por se “desprender”, perder rumo e deixar-se envolver na vida de umas quantas personagens/testemunhas. Contudo, se a mensagem do documentário de intervenção acaba diluída numa ficção pobre afeiçoada às suas personagens, também este entrelaçamento de histórias arrancadas do real não oferece as bases sólidas para uma boa ficção. Com isto, este acaba por ser um filme sem centro, que nunca encontra a mais justa distância sobre o material, histórico, geográfico e humano, que tem à frente.
Depois deste meu voo rasante sobre a programação, convido o leitor a preparar-se para desligar o televisor e sair à rua. Aproveite o bom tempo para assistir em plena Gare Marítima de Alcântara ao cinema mais fresco vindo do Brasil. A garantia é minha: há filmes para todos os gostos, menos para quem só gosta de novelas.