Nem de propósito estreia-se En duva satt på en gren och funderade på tillvaron (Um Pombo Pousou Num Ramo a Reflectir na Existência, 2014) de Roy Andersson exactamente quando iniciamos a publicação do nosso mais recente dossier Na Presença dos Palhaços. Estou em crer que o cinema de Andersson é um cuja fundação mais sólida se prende com o cinema cómico do início do século, onde, do clown já só resta mesmo a presença, e do gag se retirou movimento e acção. É pois um cinema de figuras sem corpo e dos gestos sem peso; no fundo um cinema slapstick de cujo sorriso respectivo já só se conservam os dentes (num copo de água junto à cama).
O que Andersson retira então do cinema silencioso de Chaplin, Keaton ou Lloyd (ou de tantos mais) é acima de tudo a estrutura e os métodos: os filmes cómicos de uma e duas bobines de mudo construíam-se sobre um gag que funcionava como elemento centrífugo de onde tudo o resto partia, sem guiões, num esquema episódico onde eram as próprias imagens que definiam as histórias que com elas se poderiam contar. [Por exemplo, The Imigrant (O Emigrante, 1917) de Chaplin fez-se em torno da sequência do café e do mendigo que não tem como pagar a refeição ao empregado bruta-montes – a que se acrescentou o romance entre emigrados que se haviam conhecido no navio trans-atlântico, obrigando a refilmagens do gag fundacional por motivos de coerência -, e o famoso número do relógio de Safety Last! (O Homem Mosca, 1923) de Lloyd foi filmado independentemente e só mais tarde uma história coerente lhe foi acrescentada de modo a tornar verosimilhante a circunstância estapafúrdia de um homem pacato que monta um arranha-céus.] Também Andersson parte para as suas rodagens (que tendem a ser muito longas e intercaladas com a realização de publicidade que financia os projectos de fundo do realizador – o caso de En duva isso não foi necessário) sem um guião definido, e também ele filma uma sucessão de gags de onde uma narrativa transparente se pode arrancar só com muito custo.
O cinema de Roy Andersson é um que se faz pela celebração funerária do que foi o nascimento do próprio cinema
Mas se a comparação lhe pode parecer forçada (já que o cinema de Andersson se caracteriza por um olhar apoquentado sobre o mundo e a humanidade, triste e até desinteressado das gentes que lhe passam defronte da câmara – coisa que não se poderá nunca dizer de Chaplin) atente ao seguinte: (1) todos os personagens envergam uma maquilhagem branca muito carregada sobre o rosto que reflecte sem custo a dos actores mudos, (2) Andersson é o primeiro a dizer que “de certo modo todos os meus filmes são sobre a humilhação” exactamente porque “odeio ver os outros a serem humilhados e odeio ser eu próprio humilhado”, mas não é a humilhação o tema de base dos filmes de Lloyd?, (3) a parelha que percorre quase todo o filme (coisa que acontece pela primeira vez na trilogia – um personagem que atravessa a maioria das sequências) foi modelado também, segundo o realizador, à imagem de Laurel e Hardy (os nossos Bucha e Estica).
Confirma-se assim a estranheza dos seus filmes; um cinema que se faz pela celebração funerária do que foi o nascimento do próprio cinema, uma procissão lenta que segue o enleio de um pequeno caixão onde repousa o aborto artístico do século XX – o realizador sueco chama-lhe “realismo estilizado”, “trivialismo” ou “super-realismo” eu diria que se trata de um caso de deslumbrante necrofilia, onde cada uma das 39 cenas de En duva traduzem o fálico prego que encerra o cinema na sua putrefacção.
Mas não só de cinema trata Roy Andersson (aliás, essa será talvez a mais efémera das suas preocupações), interessa-lhe sim a literatura, a historia e a pintura. E é exactamente nesses momentos em que lhe sinto uma alegria qualquer, uma ténue luz crepuscular. Momentos em que a imagem em movimento (lento) ganha contornos de pintura [Bruegel, o Velho é a inspiração de En duva e é de um dos seus quadros que se extraiu o título – “Bruegel especializava-se em paisagens detalhadas povoadas por camponeses e adotava frequentemente o ponto de vista do pássaro para contar uma história de sociedade e da existência humana. (…) Em Caçadores na neve, os pássaros parecem estar a pensar: ‘O que estão os humanos a fazer lá em baixo? Porque estão eles tão atarefados?”’], ou outros em que pelo recurso aos deleuzianos pointes de présent e nappes de passé se convoca o rei Carlos XII a um boteco reles ou se acede a uma altura em que, numa cervejaria, se cantava e se beijava e se bebia com gosto. São esses momentos quentes que infectam o cinema de Andersson de decadência, por funcionarem eles como contraponto com o presente. O nosso presente.