“É justamente uma das mais notáveis características do herói cômico apresentar-se sempre como um caso – como se o riso (e os psicólogos não se enganaram nisso) mergulhasse mais fundo na alma humana do que até mesmo a tragédia e o melodrama. Sim, há uma profundidade do riso, mas há também uma vergonha do riso. De uma e de outra o caso Lewis propõe, segundo pensamos, uma belíssima ilustração” – André S. Labarthe in Lewis no país de Carroll
“O absurdo e a graça são o verso e o reverso de uma mesma medalha, que o poeta lança na noite e que tomba novamente sobre nossas trevas” – Jacques Rivette in La mort aux trousses
Em seu primeiro filme como diretor, The Bellboy (Jerry no Grande Hotel, 1960), Lewis nos oferece o menu completo de sua trajetória, desvios de rota e atalhos inclusos: The Bellboy é um livro de imagens, paródico (o “anjo guardião” Stan Laurel) e autista, através do qual o imaginário de um personagem sem lugar neste mundo encontra voz, textura, figura: a distância que separa Stanley do universo “defronte” é monstruosa, como neste contracampo ominoso em que o mensageiro de hotel se depara com um imenso salão vazio, que ele deve industriosamente preencher com os artefatos da festa. Se Lewis é um modernista, ele o é de maneira dialética – haverá outro destino para estes espécimes tardios? -, na medida em que imprime ao espaço, dado classicista, um tratamento muito particular. O espaço em seus filmes designa em primeiro lugar esta cratera no seio da qual o alienado fantasista está encarcerado, aprisionado em uma diferença irredutível; os outros, aqueles com os quais é impossível vínculo ou conexão, habitam o contracampo “do lado”: eles essencialmente se empenham em me julgar, aglomerados e amontoados uns sobre os outros, ávidos para o próximo bote, a cartada definitiva cujo fito consiste em me excluir do espaço-tempo gregário. O seu campo e contracampo preferido é aquele que nos mostra dois espaços mutuamente exclusivos, onde o Outro observa fascinado as suas trapalhadas transgressoras (dos códigos de conduta, da causalidade, do bom senso e do senso comum). Também é um espaço centrípeto, que inevitavelmente se deixa atrair para o centro gravitacional da ação, encarnado no personagem de Lewis; é o contrário do destrutivo nos outros burlescos, que procedem de forma centrífuga: do corpo do ator a destruição se propaga para as extremidades do campo e para o fora de quadro, sobretudo Keaton. Em Lewis, o mundo é propulsionado para a arena do centro. Narcisismo e masoquismo colocam o corpo do ator/diretor no meio do furacão, o princípio e o fim das séries causais desviadas e desastrosas. À extroversão burlesca, opõe-se aqui um fenômeno de introversão e retenção: mesmo que de forma negativa, o universo e seus habitantes acabam por curvar-se diante do clown entrópico. Mas esta gravitação centrípeta acaba por sublinhar o isolamento do personagem: se tudo começa e termina nele, propaga-se e dissemina-se a partir de sua ação, é justamente na medida em que o personagem permanece situado num promontório solitário, que se opõe ao gregarismo do meio, révélateur em negativo dos mecanismos da regra vigente.
A dificuldade de estabelecer consórcios e efetivar trocas com o Outro condena-o a permanecer prisioneiro de um cadre do qual a intriga está excluída, o continuum dramático desvitalizado, expurgado o crescendo: imaginemos uma criança que, no intervalo entre o café e a aula, ensaia diante do espelho, sem fazer ideia de que a mãe orgulhosa reuniu à janela os parentes e vizinhos para vê-lo encenar-se. A gag em grande parte dos filmes de Lewis é uma cápsula impermeável à elaboração dramática, uma pirueta cuja rotação se esgota no devir de seu próprio giro; elas não narram; descrevem. As cenas não se somam, as sequências bastam a si mesmas, os filmes são mosaicos de ações descontínuas, de sintagmas “soltos”: “O período que se abre com The Delicate Delinquent (O Delinquente Delicado, 1957) manifesta em Lewis uma dupla evolução: por um lado o nascimento de um personagem, de outro o abandono progressivo da intriga em proveito da situação. (…) De agora em diante, com poucas exceções, o filme não será nada além de variações em torno de um tema: Lewis delinquente, Lewis soldado, Lewis entregador de malas, etc” (Labarthe).
O atarefado Herbert em The Ladies Man (O Homem das Mulheres, 1961), o groom do hotel Fontainebleau Stanley em The Bellboy, o assistente de direção da Paramount Morty em The Errand Boy (O Mandarete, 1961), o professor Julius e seus experimentos secretos em The Nutty Professor (As Noites Loucas do Dr. Jerryll, 1963), o novo star amestrado Stanley Belt em The Patsy (Jerry 8 3/4, 1964), a farra esquizofrênica de The Family Jewels (Jerry e os Seis Tios, 1965): a maioria dos personagens de Lewis ocupa um universo muito particular até o limiar do paralelo (paralelos, em The Family Jewels), maniacamente metódico, empenhado em executar ações “que não saem do lugar” – ou, quando saem, destroem toda a série de espaços-tempos -, não se prolongam em intriga, mas apenas reiteram, com um fervor de oficiante sadiano ou de habitante do “outro lado do espelho carrolyano” (Tavernier), a própria obnubilação: No trespassing. Lewis é a exceção radical, aquele que inflete ou quebra a linha causal, que se interpõe entre a causa e o efeito e lhe desvia a rota. As consequências deste isolamento serão geralmente desastrosos para os personagens coadjuvantes ou sobre o andamento “narrativo” do filme, já que o centro de todos os eventos situa-se nas nuvens: Lewis morre de medo de “ser-no-mundo” (Mitsein), e o seu autismo tornou-se uma arte cujos tentáculos incrustaram-se tão profundamente na carne da persona que as mediações de que se serve tornaram-se traços de caráter ou tiques de comportamento, figurando-se nestas caretas espasmódicas eivadas de horror vacui. A careta da idiotia, o mal-jeito, a distração são casulos suplementares de máscara, que o solitário acumula sobre a pele para tornar o próprio corpo absolutamente infenso à alteridade do mundo: aqui, a máscara cola na cara, o homem “é” a sua máscara, e a máscara é o grande emblema da verdade do homem. Lewis, jamais à vontade na própria pele, não pode prescindir da máscara, lenitivo existencial mas também intensificação da vontade de potência: daí a onipresença do travesti, destes Outros que se substituem com vantagem ao Ego miserabilista, pois lhe conferem os prestígios luxuosos da mais-valia de uma teatralidade exacerbada, bigger than life. O autista torna-se esquizofrênico para sobreviver ainda e melhor, dominar o seu material e todos os Outros imagináveis: a demiurgia do travestismo é para Lewis uma metáfora encarnada do trabalho de gestão manipuladora das aparências que é próprio à mise en scène cinematográfica. É a princípio um idiota, como os gregos entendiam esta expressão ao aplicá-la a Jesus Cristo: alguém que preserva suas radicais idiossincrasias – oposto no espírito grego ao homem público, atento e devoto aos negócios da pólis -, e isto a um ponto tal que só pode aparecer aos partners de cena como espécime anômala, regido por cosmos e caos que não pertencem a este mundo. Mas esta “idiotia” primeira, esta irredutível particularidade, ao proliferar e atomizar-se por intermédio das máscaras, acaba por vencer a sua passividade de “objeto” e tornar-se o sujeito dialético, duplamente afirmativo, de uma realeza superior, conquistada às custas das hesitações timoratas, da timidez da figura-mater: o idiota.
Na caracterização do personagem, este isolamento assume os ademanes de uma mise en scène corporal paranoica, ansiosa, orquestrada pela síndrome do pânico: uma plasticidade demoníaca, a serviço de um expressionismo somático. Quando Lewis percebe que o espaço intermediário que, em um mesmo movimento, o alija e salvaguarda do mundo, está irreversivelmente se estreitando (o encontro com o homem do charuto, excessivamente próximo ao rosto do herói agarofóbico, no elevador em The Errand Boy), ele parece possuído pelas agruras de um fantasma expressionista: a alternância entre o Dr. Jeckyl e o Hyde de The Nutty Professor consiste apenas na encenação, mais ou menos convencional (provavelmente, é um de seus filmes mais “clássicos”) desta linha temerária, deste inferno intersticial que preside às trocas entre o Mesmo e o Outro, predador desde sempre destinado à vitória, posto que é parte ou prolongamento de mim. O corpo do ator é agora este sismógrafo sofisticado de todos os perigos implicados neste tectônico embate com o mundo; a megalomania e o narcisismo (Lourcelles) do personagem se provam nesta neurose de contato exponencial, que a comédia física exprime com vantagem: todo aquele que atravessar o meu caminho sinaliza uma iminente invasão de meus domínios, uma desapropriação de meu território, uma infração ao meu corpus de leis, e o corpo reage com uma crise de ansiedade proporcional ao ataque atrabiliário. Regressivo ao extremo, o personagem se encontra, como a criança, sitiado em uma fortaleza cuja regra de ouro consiste em operar uma identificação entre mundo e Ego; endogenia do mundo, agora submetido à pressão de minhas paixões, ao arbítrio de meus fantasmas. Em The Ladies Man, talvez tenhamos o mapeamento mais detalhado desta zona de guerra instaurada pelo contato com o Outro: a misoginia aqui é índice refratado de uma fobia pânica mais vasta para com o exterior, o mundo “lá fora” ( representado em miniatura pela “Casa de bonecas” do filme), os percalços do caminho. Se o corpo de seus personagens é esta transparente usina somática de sintomas, é porque a relação dos mesmos com a linguagem é problemática: confusões de nomes e dificuldade na emissão, lapsos e atos falhos que se inscrevem a fogo na língua. O fofoqueiro [The Big Mouth (O Charlatão, 1967)] apresenta a situação paradigmática deste drama, agora manifesto em chave paradoxal: uma testemunha se revela incapaz de dizer onde está o tesouro das pérolas, e acaba finalmente por contaminar o Outro com este déficit (o bandido que late, o afásico); todo aquele em quem toca deve reproduzir a sua mesma impossibilidade de falar, e o título do filme é tanto mais irônico por isto. A criança é o mundo das imagens, da identificação mimética, da conjugação incondicional entre Eu e o mundo. A linguagem introduz uma separação, e a necessidade do consórcio com o Outro para retomar contato com o mundo (e configurar um si mesmo). Lewis nunca “chega lá”; ele permanece imerso na bolha uterina do sintagma somático: em Which Way to the Front? (Onde Fica a Guerra, 1970), o grande industrial Brendan Byers não tem nada a dizer senão voltar-se melancólico para nós com a chupeta na boca.
O corpo é, para este a quem a linguagem foge, a grande reserva estratégica de significação, o lugar onde o sentido enfim advém à luz: os sintomas ( as caretas, os olhos estrábicos, a língua ofegante) são seus significantes. É ao somatizar que Lewis fala da desolação experimentada por alguém que sente pavor de ser-no-mundo e ser-com; a crítica francesa, não por acaso, analisou a sua obra sob o prisma de um romanceiro freudiano tumultuoso, onde a regressão (gestos, roupas e artefatos de crianças; a histeria; a impossibilidade de falar) é a pedra fundamental.
Falamos no início deste texto do espaço como um índex de alienação entre o personagem e seu contexto. Mas o espaço, em um segundo e decisivo momento, está também a serviço da vontade de potência do encenador, e enfim realiza aquela indistinção, tipicamente infantil, entre o desejo subjetivo e o décor; tudo agora se torna possível, pois a mise en scène, que opera no (pelo) espaço, é o deus ex-machina que na última hora se apropria dos objetos e os submete implacavelmente à economia fantasista da criança-demiurgo: o contracampo mágico onde a sala aparece arrumada e a mesa posta em The Bellboy. Segundo Narboni, a estratégia de Lewis consiste em compensar suas faltas e a destruição involuntária de que é o instrumento por meio do fascinum da mise en scène, cicatriz dos “meios “ clássicos. Esta é uma tática terapêutica, por facilitar (mesmo que de forma tortuosa, diferida: calvário dos modernos) o acesso do personagem marginalizado ao domínio daquilo que o circunstancia e afeta; aqui, como na vacina, o remédio é feito de veneno, de uma exacerbação metódica de sua experiência traumática (os duplos, os cacoetes): este plus é conversão e transfiguração.
A mise en scène é o Abracadabra, o Abre-te-Sésamo, por meio do qual a megalomania de Lewis distribui as cartadas, estrutura a cena e os bastidores de seu Eu feito espetáculo, integrando o mundo como figura coadjuvante de seus prodígios taumatúrgicos: o morceau de bravoure é o selo desta subsunção sistemática do real às injunções do imaginário. O contracampo milagroso da mesa posta em The Bellboy, a abertura de grua de The Ladies Man, o plano geral do apocalipse “em cadeia” no início do mesmo filme e na captura dos ladrões de The Family Jewels, os planos telescopiados das perseguições em The Big Mouth, as meta-encenações do uso do cadre da TV em The Ladies Man e The Errand Boy. Em cenas-chaves, Lewis expõe o paradigma deste processo em que a mise en scéne sublima o Ego mortificado, elevando-o a um grau superior de percepção, alucinando os avatares da diegese convencional. O imaginário aqui readquire as potências arquetípicas dos arcanos imanentes do surrealismo: é no seio das situações mais ordinárias que ele se dá ao luxo de manifestar-se, e é a mise en scène o seu meio industrioso de transcendência . O espaço-tempo determinado pelas convenções da mise en scène configuram um mundo onde enfim o herói passa a existir plenamente, onde o Ego se afirma de forma incondicional, onde a imagem impõe sua vertiginosa soberania sobre a linguagem castradora: experiências deliciosamente regressivas de reconciliação que um dia foram possíveis na Hollywood “fábrica de sonhos”, e que tiveram no cinema de Lewis o seu exercício mais protéico.