Subestimem Jim Carrey por vossa conta e risco. Dentro do estilo “one man show” é o único cómico inteligente do cinema americano contemporâneo, ou, dizendo de outra maneira, o único cómico consistente do cinema americano contemporâneo. Nunca se rendeu à alarvidade pura e simples (como por exemplo Eddie Murphy, que nos anos 80 chegou a prometer alguma coisa e hoje está praticamente desaparecido em combate) e tem essa coisa rara: uma personalidade. Uma personalidade que “transborda” de filme para filme, domina-os e contamina-os [“politique des acteurs”: quem é o “autor” de Yes Man (Sim!, 2008)?], e é justamente a medida da sua consistência. Mais, é o único cómico do cinema americano contemporâneo em cujo ADN subsistem alguns genes herdados do burlesco clássico. Nos anos 90, tempo dos seus primeiros filmes, muita gente evocou Jerry Lewis, pelos motivos óbvios: o “histrionismo”, um corpo que parece feito de borracha. Hoje, muitos filmes depois, é razoavelmente evidente que Carrey transporta o rasto de mais algumas coisas: a misantropia e a propensão para a violência de Chaplin, a orfandade de Buster Keaton, o exibicionismo “nonsense” de Groucho Marx. Exagero? É tudo uma questão de medida, e provaríamos (sem grande esforço) que em Carrey existe uma medida de todas estas coisas (a que se acrescentaria apenas algo que tem muito a ver com o “zeitgeist” da viragem do século, aquela angústia “self-deprecating” do homem urbano americano, muito típica da comédia novaiorquina, de Woody Allen a Billy Crystal e à “escola” saída do Saturday Night Live).
O que lhe falta, e isto parece indiscutível, são os filmes. Falta-lhe ter um Tashlin em vez dos tarefeiros sensaborões (ainda mais tarefeiros e sensaborões do que o Sam Wood dos Marx) que normalmente são encarregues de “despachar” mais um “Carrey film” (notoriamente Tom Shadyac, que também já fez várias vezes esse papel para Eddie Murphy). Nesse aspecto, Yes Man até é um caso feliz. Peyton Reed não é nenhum génio mas é um realizador estimável (há um filme dele numa proposta de “cânone” em mil filmes incluida num livro recente de Jonathan Rosenbaum…) e filma com fluidez e elegância. A este respeito – e mencionando agora aquilo que existe em Yes Man para além de Jim Carrey – é bastante curiosa a maneira como Reed insere no filme uma espécie de “memória de Los Angeles” [à atenção de Thom Andersen e dos que viram Los Angeles Plays Itself (2003)], através das cenas em lugares como o Hollywood Bowl (e a cena do Hollywood Bowl, com aquela melancolia toda, não é nada banal) ou o Observatório Griffith, que todos os cinéfilos identificam com o climax de Rebel Without a Cause (Fúria de Viver, 1955).
Outra coisa muito importante neste filme de Jim Carrey para além de Jim Carrey é a sua partenaire, a luminosa Zooey Deschanel. Ao contrário da norma do típico “Carrey film” [neste ponto o espectador notará que ainda não fizemos referência ao Man on the Moon (Homem na Lua, 1999) de Milos Forman: pois não, porque esse é um “acidente”, não um típico “Carrey film”], que tem tendência a semear cepos à volta dele, Deschanel não só traz luz como traz uma personalidade, à sua maneira tão forte como a de Carrey, ainda que noutro estilo. Mas justamente por isso, pela personalidade igualmente forte e pelo estilo diferente, a relação entre eles funciona tão bem, e tão convincentemente se dá o processo de suavização da alucinação da personagem de Carrey (processo que é, de certa forma, a história do filme). Yes Man inventa “a garota de Jim Carrey”, e parece-nos que faz mal quem negligenciar isto.
Passamos por cima das várias coisas divertidas que há no filme (as noivas persas, as aulas de coreano, as noites Red Bull, as festas Harry Potter…) para nos determos no seu âmago. A questão do “sim” e do “não”. Quase todos os filmes de Carrey são alimentados por uma espécie de pressuposto radical: há um filme em que não consegue mentir, há outro em que qualquer desejo que lhe passe pela cabeça, por mais fugaz e extemporâneo que seja, se concretiza. Neste, torna-se incapaz de dizer “não”, por razões cuja verosimilhança importa pouco (o que importa, muito, é encontrar um pressuposto em que se baseie toda a mecânica cómica do filme). Paródia da “filosofia positiva” dos magazines dominicais e do “humanismo” desossado e ingénuo que é hoje de regra, Yes Man transforma esse estado de perpétua afirmação em que a personagem se encontra numa fonte de angústia e nervosismo – à força de tanto “sim”, o caos vai-se instalando (até o caos económico, muito apropriadamente: o trabalho da personagem é avaliar pedidos de empréstimo num banco, e a sua positiva disposição vai conduzir a um “boom” do micro-crédito…). Por isso mesmo, nada tem tanta força quanto a redescoberta do “não”. E é nesse momento, quando Carrey volta a descobrir “os poderes da nega”, que a sua personagem se torna num vulcão. A liberdade passa pelo “não”: se mais nada, Yes Man servia para lembrar isto.
Luís Miguel Oliveira
Crítico do jornal Público e programador da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. Este texto é uma versão adaptada da folha de sala da Cinemateca Portuguesa para Yes Man.