A proximidade do cinema com a histeria não depende apenas do facto de partilharem a mesma data de nascimento: 1895, ano em que o advento do cinematógrafo coincidiu com a edição de Estudos sobre a histeria de Josef Breuer e Sigmund Freud. A analogia fundamenta-se principalmente no interesse que, desde logo, patentearam no que concerne às questões relativas à autenticidade/artificialidade, exibição/ocultação do dispositivo cinematográfico ou médico, e à incredulidade/crença, simulação/dissimulação dos elementos constitutivos e dos seus mecanismos mais profundos de funcionamento e manifestação. Na verdade, a relação da histeria com o cinema é muito íntima: o filme possui a capacidade de induzir no espectador os sintomas típicos da histeria como a sugestionabilidade, a deslocação, a amnésia e a anestesia, enquanto a histeria, tal como acontece ao protagonista do cinema mudo, interpreta a sua doença através de gestos corporais e expressões invulgares que prescindem da linguagem verbal transparente e denotativa. A interpretação da histeria de Freud, de facto, prevê a conversão dos processo psíquicos reprimidos em sintomas corporais, representando o corpo da histérica como um ecrã sobre o qual se desenrolam as imagens psíquicas. O corpo histérico aparece como uma espécie de dispositivo psicocinematográfico que remete ao mesmo tempo para as imagens das histéricas de Jean-Martin Charcot e para os corpos tremulantes dos protagonistas dos primeiros anos do cinematografo.
As tecnologias de registo e representação visual, ideadas pelos fisiologos do movimento, foram desde muito cedo utilizadas também para o exame do movimento patológico causado por disfunções neurológicas. O centro principal onde foram conduzidos estudos deste género foi o laboratório de fotografia médica do hospital da Salpêtrière, instituído em 1878 pelo Dr. Charcot e dirigido por Albert Londe. Aqui a fotografia tinha a função de documentar os casos clínicos estudados, bem como a função de comprovar a vericidade das teorias de Charcot, postas sempre em duvidas pelos método pouco ortodoxos mediante o qual conduzia as suas experiências hipnóticas. Charcot defendia-se replicando de ser “simplesmente um fotógrafo”, já que afirmava o que ele via, aproximando-se epistemologicamente do pensamento de Auguste Comte, que associava o visível ao verdadeiro. Mais uma vez, a fotografia serviu de prova graças ao seu intrínseco valor indiciário e probatório ao ponto de ter encontrado a sua aplicação dominante na criminologia clinica baseada na morfologia humana. Além de ter colaborado assiduamente no trabalho monumental da Iconographie photographique de la Salpêtrière (1877-1880) de Charcot, Londe foi também um grande defensor e admirador da obra de Étienne-Jules Marey, tendo aplicado o seu método também em contexto diversos da fotografia das histéricas da Salpêtrière. Londe dedicou-se ao registo de sujeitos em movimento como acrobatas, dançarinas, trabalhadores, publicando também livros fotográficos de fisiologia artística.
Em 1883, Londe construiu um aparelho fotográfico composto por 9 objectivas mediante o qual conseguia impressionar, numa única chapa e em rápida sucessão, nove diferentes momentos de uma sequência em movimento. O seu objectivo era o de representar as diversas fases dos ataques histéricos. Com efeito, a histeria é uma doença dinâmica que não apresenta lesões externas, mas que se patenteia mediante uma série de sintomas corporais que devem ser observados durante a sua manifestação. A teoria sobre a histeria, elaborada por Charcot, previa a fragmentação da crise histérico-epileptica e a identificação de cada uma das sua fases numa postura reconhecível para a sua sucessiva reprodução mediante hipnose. Graças à hipnose, Charcot conseguia reproduzir artificialmente a doença, separar a suas fases, rearticulá-la ao seu gosto segundo as própria exigências. É claro, portanto, que a histeria, tal como o dispositivo cronofotográfico, antes, e cinematográfico, depois, implica, de uma certa forma, um problema de decomposição, montagem e reprodução, tal como a prática didáctico-terapêutica de Charcot supunha, embora inicialmente a crise histérica não fosse gravada em chapas ou nos ecrãs, mas no corpo das pacientes. Neste sentido a hipnose representava para Charcot um dispositivo médico-científico parecido com o instrumento cronofotográfico ideado por Londe. Na verdade, os estudos sobre a histeria realizados por Londe eram compostos por uma primeira fase de gravação cronofotográfica que, tal como acontecia com o método de Charcot, fragmentava a acção em fotografias, e uma segunda fase em que se reproduzia o movimento por meio de instrumentos como o zootrópio e o zoopraxinoscopio, podendo replicar as posturas constitutivas de forma análoga à hipnose praticada por Charcot. Em suma, o dispositivo cronofotográfico elaborado por Londe no laboratório da Salpêtrière funcionava como o dispositivo hipnótico e trabalhava em sinergia com ele.
As crónicas coevas descreviam o filme como uma espécie de museu cinematográfico do grotesco e do horror pela multiplicidade dos casos que apresentava aos olhos de um público fascinado e, ao mesmo tempo, perturbado por um espectáculo tão invulgar e curioso.
Em Itália, o estudo dos processos neuropatológicos por parte de alguns neurocientistas, como Camillo Negro, Osvaldo Polimanti, Vincenzo Neri e Gaetano Rummo, encontrou no instrumento cinematográfico o aparelho mais apropriado para a investigação médico-cientifica. O interesse no dispositivo cinematográfico dependia de dois factores de extrema importância: o primeiro relacionado com o objectivo didáctico-cientifico de difundir o conhecimento em âmbito académico, o segundo com finalidades diagnóstico-clínicas, dado que a medicina considerava a imagem em movimento um instrumento indispensável para potenciar o desempenho do assim chamado “olho clinico”. A tal propósito, veja-se a profícua colaboração entre o neuropsiquiatra Camillo Negro e o operador da Ambrosio Film de Turim, Roberto Omegna, os quais realizaram La neuropatologia (1908): um dos mais importantes documentos acerca do estudo da evolução das patologias neurológicas e dos métodos de cura adoptados em Itália.
O filme era composto por 24 breves episódios em que iam ser apresentados vários casos clínicos de sujeito com doenças neurológicas. As filmagens mostravam “as principais formas doentias no campo neuropatológico […], uma recolha de casos clínicos entre os quais principalmente impressionam os de hemiplegia orgânica e histérica, doença assim chamada de Parkinson (paralisia agigante), ataques epilépticos, grandes crises histéricas, várias formas de coreia e tiques, diversos tipos de andaduras patológicas, paralisias dos musculoso oculares.”1 As crónicas coevas descreviam o filme como uma espécie de museu cinematográfico do grotesco e do horror pela multiplicidade dos casos que apresentava aos olhos de um público fascinado e, ao mesmo tempo, perturbado por um espectáculo tão invulgar e curioso. Nos breves fragmentos que sobreviveram de La neuropatologia sobressaem, de qualquer modo, os mesmos jogos de poder, sedução e narração dos trabalhos do Dr. Charcot no hospital da Salpêtrìere onde o filme do Dr. Negro foi até projectado. Curiosamente, o fragmento mais conhecido que chegou a nós é o do ataque histérico de uma mulher socorrida e curada pelo Dr. Negro e um assistente dele. Todo o episódio aparece quase encenado, sensação essa sugerida pela presença da máscara da paciente que fortalece inevitavelmente a teatralidade do evento registado. No centro da cena histérica preparada com cuidado pelo Dr. Negro, hipnotizador, estudioso de histerias oculares e observador atento dos movimentos da íris, está o olhar que submete e atrai, cativa e suborna, que hipnotiza e normaliza o movimento compulsivo da histérica, olhar que através do cinema domina os olhares alheios transformado cada espectador num potencial paciente. De resto, o dispositivo cinematográfico é a principal máquina do hipnotismo de massa, um instrumento capaz de proporcionar ao espectador a singular experiência física de abandono dos processos mentais conscientes em favor de um estimulo puramente sensorial e corpóreo. Desde o seu advento, o cinema foi a inovação tecnológica da época maioritariamente capaz de dar voz ao frenesi dos tempos modernos, de pôr em cena a fenomenologia da histeria: a apraxia neuromotoria responsável pelos gestos descoordenados e automáticos que só o meio cinematográfico estava apto a registar na sua instantaneidade e imprevisibilidade.
Mas não é só o cinema que vai ao encontro do estudo da histeria. É a própria doença, com a sua corporeidade convulsa e frenética, que constituiu um modelo de representação para os actores dos cabarets e dos cafés-concert parisienses e dos futuros slapsticks e filmes cómicos, sendo estes habitados por corpos histéricos e deformes, caras de pedras, posturas anómalas e bizarras, tiques, tremores, espasmo e síncopes que, tal como acontece durante uma crise histérica, interrompem e perturbam a regularidade dos ritmos corporais. Neste sentido, Rae Beth Gordon2 sublinha a importância da histeria como motivo de inspiração para o estilo das comédias dos primeiros anos do cinema, frisando a capacidade dos espectadores de reconhecer as alusões à patologia graças à grande circulação de imagens e noções relacionadas com as histeria, sonambulismo e hipnose. Um exemplo emblemático do corpo histérico na comédia da época do mudo é representado pelo corpo de Charlie Chaplin, cujo automatismo corpóreo remete simultaneamente para a repetição inconsciente do corpo histérico e para o próprio dispositivo cinematográfico, sendo ambos os máximos exponentes dos tempos modernos. Como escreve Jean Epstein: “Chaplin criou o herói esgotado. Toda a sua representação é feita por reflexos de nervos cansados. Uma campainha ou uma buzina fazem-no pular em pé, inquieto, com a mão no coração pela tensão. Mais que um exemplo é uma sinopse da sua neurastenia fotogénica.”3
Mas o cinema e a psicologia não partilham somente a analogia estrutural dos mecanismos de funcionamento, os termos como projeção, representação, campo e imagem, bem como as patologias da visão que afectam os histéricos como as ilusões ópticas, a paralisia ocular e as alucinações, todas elas assimiláveis, de qualquer forma, aos efeitos surpreendente de trope-l’oeil que caracterizavam muitos dos filmes de atracções da autoria de Georges Méliès, capaz de imitar com extraordinária exactidão figurativa posturas e atitudes tipicamente neuropáticas. Para concluir como não deixar de mencionar, por exemplo, a parte final de French Cancan (1954) de Jean Renoir, filme que confirma, mais uma vez, a apropriação por parte do cinema dos gestos da histeria, sendo as bailarinas do Cancan com as bochechas maquilhadas, os lábios trêmulos, a garganta palpitante e cabelos despenteados, um caso exemplar da transposição para o cabaret e o cinema das convulsões das histéricas da Salpêtrière.
1 La neuropatologia nella cinematografia, “Rivista Fono-Cinematografica”, 12 março 1908, citido em A. Farassino, Frammenti neuropatologici, “Immagine: Note di storia del cinema”, ano II, n. 3, fascículo quinto (março-junho 1983), p. 1-4.
2 Rae Beth Gordon, From Charcot to Charlot: Unconscious Imitation and Spectatorship in French Cabaret and Early Cinema em Mark S. Micale (org.), The Mind of Modernism. Medicine, Psychology, and the Cultural Arts in Europe and America, 1880-1940, Stanford, Stanford University Press, 2004, p. 93-124.
3 Jean Epstein, Bonjour cinema em Valentina Pasquali (org.), L’essenza del cinema, Scritti suulla settima arte, Roma, Bianco & Nero, 2002, p. 32.