Nuno Sena é hoje um nome que dispensa apresentações no universo do cinema português. Isso deve-se a ser, juntamente com Rui Pereira e Miguel Valverde, um dos fundadores do IndieLisboa- Festival Internacional de Cinema Independente. Tendo-se licenciado em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa, Nuno Sena foi depois assistente da Direcção do Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual (IPACA e mais tarde ICAM) e logo após dirigiu o Departamento de Exposição Permanente da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema entre 1998 e 2003. De 2004 a 2006 passou pela direcção e programação do DocLisboa, enquanto ajudava a fundar em 2004 o IndieLisboa. Desde então, Nuno Sena assumiu neste as funções de director e programador. Tem também responsabilidades na área da formação, leccionando no centro de formação profissional Restart e no Instituto Politécnico de Tomar.
Numa altura em que se fechou a 12ª edição do Festival, o Carlos Natálio foi falar com ele, numa conversa que se centrou muito na dinâmica, percursos, sucessos e insucessos da marca (pode hoje dizer-se) IndieLisboa. Com estes, claro que não se podia fugir dos problemas da exibição cinematográfica em Portugal, da construção de públicos, da definição do conceito “indie” e de muitas outras questões à volta, entre, por baixo e por cima dos filmes.
2015. IndieLisboa. 12 edições. Este ano quase 30 000 espectadores. Como correu esta edição?
Um primeiro balanço é completamente positivo, porque nós tínhamos estabelecido vários objectivos, entre os quais, o de voltar a crescer no número de espectadores. Não é uma obsessão do festival ter muito público. Acho que vivemos durante 10 anos a crescer o número de espectadores e depois a partir de 2009/2010 tivemos uma estabilização à volta dos 35 000. Mas neste momento os tempos mudaram, há uma série de dificuldades sentidas em todo o sector da exibição alternativa. Não só festivais, mas também cinema de autor que, na distribuição comercial, enfrenta uma espécie de seca prolongada que já começou há dois, três anos e não se vê sinais de começar a melhorar. Os festivais, apesar de tudo, conseguem resistir um pouco a esta crise de espectadores para o cinema de autor/independente. Portanto, o nosso objectivo em termos de público, uma vez que tínhamos quebrado um bocadinho o ano anterior, era o de estancar a sangria e, se possível, voltar a crescer. Isso aconteceu, tivemos mais 10% de público e com um esforço menor, pois tivemos menos uma sala de cinema a funcionar, menos sessões e, mesmo assim, o público aumentou. Penso que isso se deveu muito ao trabalho mais consistente de comunicação e de divulgação. Talvez tenhamos encontrado um mapa de salas mais indicado para aqueles que são os públicos do festival. A inclusão do Cinema Ideal foi importante. Em relação à Cinemateca, foi a sala que até cresceu mais, duplicou o número de espectadores. Isto deve-se, penso, em parte à melhoria geral da situação desta, com uma maioria liberdade financeira e melhor programação do que no ano passado. Penso que também fomos mais eficazes, conseguindo um retorno maior em quase tudo. O festival em termos de programação foi muito consistente. Depois de vários anos em que tínhamos mantido mais ou menos a estrutura, tinha chegado o momento de refrescar um bocadinho algumas das sessões, mantendo o essencial que são os filmes e a filosofia do festival. Queríamos tornar o figurino do festival mais alternativo, mais legível, mais simples de perceber o que é que era. Para isso tivemos também a introdução este ano de secções que são viradas para públicos de nicho, como por exemplo a Boca do Inferno.
De 2004, data da primeira edição, até 2015, se te pedisse uma sinopse desta “história”, quais seriam os pontos mais marcantes da vida do festival?
As primeiras edições, agora à distância, vejo-as como sendo um bocadinho inocentes. No início havia uma ideia um tanto megalómana de que era possível fazer um festival generalista de cinema em Portugal, que se tornasse um festival de referência quer nacional, quer internacionalmente. Sonhou-se alto. E foi um bocadinho ingénuo, porque olho para a primeira e segunda edição e vejo o caminho que fizemos a partir daí, sei que mudámos e afinámos muitos dos gostos e idiossincrasias do início. Eu tinha estado na Cinemateca Portuguesa durante cinco anos, os meus colegas Rui Pereira e Miguel Valverde também tinham estado a fazer programação de outra forma. Foi, portanto, um festival que nasceu como um festival de programadores. Penso que isso é importante face a outros projectos um bocadinho paraquedistas que nascem como festivais de cinema e não adquirem propriamente uma identidade de programação. No Indie isso existiu desde o início, mas a identidade de programação foi evoluindo. A ingenuidade vem daí, do olhar para as primeiras edições e de já não nos revermos ou não nos identificarmos complemente com o que fizemos há 12 anos. A experiência ajuda-nos a perceber, por exemplo, que se consegue fazer hoje mais e melhor do que o que se fez. Perdeu-se alguma juventude, mas ganha-se em experiência e na capacidade de saber chegar aonde queremos chegar. E chegar é aqui a esse ponto de partida, onde o IndieLisboa possa ser um festival feito em Portugal, mas que tenha uma relação importante com o resto do mundo. Quer no sentido de trazer o resto do mundo para Portugal, quer no inverso em relação ao cinema português. Aqui o nosso principal papel é projectar o cinema português para fora. Não apenas mostrá-lo mais e melhor para os produtores portugueses, mas chamar a atenção para ele internacionalmente. Isto eu acho que o Indie conseguiu praticamente desde o início.
De que forma a organização interna do festival mudou ao longo destes 12 anos e em que medida essa mudança espelha a alteração de um dado modus operandi face ao modo de organizar um festival internacionalmente?
Sim, mudou. Muito. Em 2004 não havia praticamente nenhum festival completamente profissionalizado e nós, não sendo diferentes, nascemos como um festival feito por três pessoas que o faziam em part-time. E esses outros trabalhos que cada um de nós tinha funcionavam como essa zona de segurança para a qual poderíamos recuar caso as coisas não corressem bem. Desde 2006 que começámos a levar a coisa mais a sério e desde então a máquina do IndieLisboa funciona durante 12 meses por ano. Quando o Festival acaba há pessoas que deixam de trabalhar connosco e depois há um núcleo base de 7/8 pessoas que fica já para preparar a edição seguinte. Essa continuidade dá para fazer projectos mais ambiciosos, manter uma ligação forte ao mercado português e internacional. Neste momento o IndieLisboa já não é só o que acontece em Lisboa durante 11 dias, é também um conjunto de iniciativas (por vezes menos visíveis) que alimentam o festival. São alguns eventos paralelos que, não sendo o festival, só são possíveis porque existe essa equipa a trabalhar todo o ano. Aqui cabem as mostras de cinema que temos feito, por exemplo, a Festa do Cinema Romeno no ano passado ou a retrospectiva do Sergei Loznitsa em 2011.
E também a exportação do próprio festival para fora de Lisboa…
Sim, as extensões do festival ao longo do ano. Mas ainda também as mostras de cinema português no estrangeiro. Portanto, esta máquina é o festival, mas também são estes outros eventos durante o ano sem os quais não seria possível financiar o próprio Indie.
Na 1ª edição receberam 500 filmes, em 2008, 3000, e agora? Como é que lidam com esta tamanha quantidade de submissões?
Este ano tivemos cerca de 4500 inscrições. Um número pesado que nos obriga a ter um processo de selecção muito mais duro, complicado, com mais pessoas envolvidas no comité de selecção do que em 2004 quando começámos. Em 2003 havia três pessoas a fazer a selecção, agora temos 2 equipas, uma de curtas e outra de longas, num total de 11 pessoas. Uma equipa que vê filmes ao longo do ano inteiro: filmes que recebemos mas também outros fora das inscrições que possam ser interessantes para o festival.
Como é que gerem esse processo da selecção dos filmes até à exibição final?
Digo já que não te sei dizer se neste processo se gera um filme tipo ou um “cinema IndieLisboa”. As 10 ou 11 pessoas de que te falei responderiam a isso de forma diferente. Existe é uma comunidade, uma partilha de ideias, de gostos cinematográficos, que, não sendo completamente coincidentes, conseguem conciliar-se e trabalhar em conjunto. No processo de selecção há muitos e variados critérios, que surgem desde logo a partir do primeiro dia em que o filme é visto. Cada filme é visto pelo menos por duas pessoas e passa à segunda fase de selecção se existirem pelo menos duas pessoas que o validem. Se só uma pessoa o validar pode passar ou não. Se tiverem duas pessoas que o chumbem, já não passa à fase seguinte. Portanto, para um filme que passe por estas etapas, para chegar ao fim significa que ele terá que ter qualidades que se ligam àquilo que o IndieLisboa procura, isto é, um olhar capaz de espelhar uma dada inovação cinematográfica ou capaz de trabalhar um tema de forma a obrigar a repensá-lo à luz de novas questões. Quer dizer, tem de haver, na sua natureza cinematográfica ou temática, razões para olhar para aquele filme. As razões cinematográficas são obviamente mais importantes, mas tentamos não fazer essa separação na nossa cabeça. Os filmes são discutidos na sua forma e de que maneira essa forma nos obriga a olhar para aquele conteúdo. Aquilo que nós menos gostamos de ver são filmes que confirmam aquilo que já sabemos, quer do ponto de vista formal, quer do ponto de vista temático. No fundo, a ideia do filme formatado, certinho, quer na ficção, quer no documentário, que corresponderia a um olhar pré-fabricado. Isso acontece quando começamos a ver um filme e aos cinco minutos já sabemos exactamente aquilo que estamos a ver. Agora este processo é mais verdade para alguns programadores do que para outros e dentro do festival há várias linhas de orientação de selecção. Há uma luta permanente entre conservadores e liberais. Eu gosto dos conservadores, por aquilo que eles também nos trazem, haver uma necessidade de validação.
Promover uma certa sedimentação…
Sim. Não é necessariamente o novo pelo novo, mas o novo que trabalha sobre uma tradição e que é capaz de trabalhar essa tradição superando-a ou levando-a mais longe com qualquer coisa de consistente. No fundo, é muito aquele lugar comum do quando aquele filme “te diz qualquer coisa”, quando te obriga a dialogar com essa perturbação, esse elemento de estranheza. O incómodo é sempre um bom ponto de partida ou quando não consegues resolver-te e perceber o que gostas em dado filme. Estás a ver as discussões, não é? A maior parte das discussões que temos são tão importantes como o filme: a qualidade dos argumentos, da retórica utilizada para defender determinado filme, tudo isso é muito importante. Quando um filme não é alvo de um consenso alargado, mesmo assim ele pode passar à fase seguinte se tiver por detrás uma voz suficientemente persuasiva. Ou seja, quando algum filme entra no Indie tem de ser porque alguém o defendeu até à morte. Neste sentido, não há filmes moles no Indie, o “pode ser” para nós não funciona. Quando alguém diz “pode ser” isso é meio caminho andado para o filme não entrar. Seleccionar um filme também é saber defendê-lo perante a opinião contrária.
No seio dessa luta entre conservadores e liberais, ou entre os filmes que prolongam e os que rasgam, há um conceito de indie. De que forma esta etiqueta poderá estar ligada a uma indefinição genérica do objecto em si? Esta indefinição para ti é mais força ou fraqueza?
Quando criámos o festival, a primeira discussão que tivemos foi sobre o nome que deveria ter. Dos vários nomes pensados, o de “IndieLisboa” pareceu-nos ser aquele que permitia manter o festival suficientemente aberto para se tornar no que quisesse. Por outro lado, outro nome genérico como “Festival Internacional de Cinema de Lisboa”, por exemplo, seria extremamente vago. Achámos que o termo “indie” ou “independente”, em termos de marketing, era um nome mais apelativo do que “cinema de autor” ou “cinema de ensaio”. Termos que são importantes, mas não quisemos ter um nome demasiado carregado em relação a uma determinada conotação intelectual. Aliás, já existe um estigma suficientemente grande ligado ao cinema de autor para o carregar ainda mais. O termo “indie” por outro lado também está ligado à música e talvez permitisse essa abertura e deixar-nos fazer em 2004 e depois em 2005 e daí em diante aquilo que nos apetecesse. Ou seja, tentámos não ficar fechados. Mas na verdade, para nós o termo “indie”, que tem declinações diferentes na América e na Europa, é um termo abstracto. É preferível usar as expressões “cinema original”, “aberto”, ou que não está encerrado em dadas normas ou formatos, para definir o próprio cinema independente. E esta abertura confirma-se de tal forma que ao longo destes anos o festival mudou muito mas não mudou o nome. Quando fazes um festival temático ou de género como o Doclisboa ou o Curtas de Vila do Conde tu tens já no nome do festival aquilo que ele é. Quando fazes um festival generalista tens de encontrar um nome que seja suficientemente absorvente para não ficar preso a nenhuma área muito específica.
Então nunca achaste que essa abertura pudesse em dada altura transformar-se numa indefinição que paralisasse certos apoios ou mesmo impedisse uma maior definição mediática…
Não, nunca senti isso. Senti foi que o próprio universo de cinema independente mudou com o tempo. Ao longo destes 12 anos sentiu-se uma progressiva fadiga não em relação ao cinema de festival mas em relação ao cinema dito independente. Assim, por exemplo, aquilo que há 12 anos era uma qualidade, parece-nos hoje já muito antiquado. Por exemplo, o próprio cinema americano estratificou-se um bocadinho, fossilizou-se num determinado modelo independente que por vezes não é muito interessante. Mas nós nunca nos colámos demasiado ao cinema independente americano. Portanto, a sua fossilização não a vemos como um problema nosso. Em termos estritamente académicos, chamar cinema independente ao cinema do Oliveira, do Resnais ou do Béla Tarr pode ser visto como um pequeno abuso conceptual. Mas para mim não é. Estes são cinemas independentes, porque resistem à normativização, porque permanecem idiossincráticos, pessoais…
Mas há também na questão do independente uma certa dimensão monetária.
Mas isso não afecta muito. Sabes que as questões do financiamento são muito importantes, como é evidente. Mas são importantes para que haja cinema. A partir do momento em que os objectos estão feitos não me interessa saber quanto é que um filme custa. Nunca tivemos essa distinção no festival. Nunca nenhum filme entrou no Indie por ter sido barato ou deixou de entrar por ter sido caro. Por exemplo, o Johnnie To, que foi um dos heróis independentes no festival, trabalha no interior de um sistema industrial que é o cinema de Hong Kong. Mas trabalha com uma total liberdade autoral, isto é, os filmes do Johnnie To são como os do Pedro Costa: exactamente aquilo que eles querem que seja.
Há pouco tempo, Mark Rappaport, entrevistado pelo À pala de Walsh, falava dessa maior facilidade em fazer cinema independente na Europa do que nos EUA. Essa “facilidade” remete para o interessante paradoxo do cinema português (estando longe de ser o único) que é o de ser totalmente dependente da subsidiarização para poder ser independente.
O mais importante aqui é a independência de criação, das questões da criatividade. Se é num sistema público como o nosso de total dependência económica, ou se é num sistema privado como o norte-americano, isso interessa-nos menos. Aliás, é interessante um sistema totalmente dependente do Estado, como em Portugal, ser capaz de ter um cinema do mais livre que se faz no mundo e depois nos EUA, num sistema supostamente livre, de mavericks, encontrar cinema não livre, coisas formatadas e feitas para agradar a um público também ele completamente formatado. A criatividade e a independência são equivalentes, já quanto à independência e ao financiamento, eles não são necessariamente co-relacionáveis.
Deu-se a sedimentação de algumas fórmulas do cinema independente, como aconteceu em parte com o Festival de Sundance…
Engraçado que o primeiro “herói independente” do Indie foi precisamente o festival de Sundance e se calhar hoje já não o faríamos.
Mas essa ideia da sedimentação, se pensada de forma mais genérica – ou seja, integrada no interior de um sistema económico em que vivemos, que tem tendência a puxar (e capitalizar) para o centro aquilo que nasce na periferia – de que forma o IndieLisboa se poderia, à luz desta lógica, converter num festival menos indie e mais mainstream, na medida em que as próprias fórmulas indie são hoje apropriadas por uma maioria?
É interessante isso. Tivemos durante anos crescimentos exponenciais até 2010, que foi o annus mirabilis para os festivais de cinema em Portugal (só o Indie nesse ano teve 44 mil espectadores), sendo que as razões disso ninguém sabe muito bem explicar. Talvez por ser um ano pré-crise… Mas aí perguntámo-nos: até quando podemos continuar a crescer? E aí sabíamos que ou fazíamos um festival diferente para continuar a crescer indefinidamente ou, para este modelo, havia certamente um limite de elasticidade. Mas eu não acredito que o aparecimento em Portugal de um festival de cinema de natureza mais comercial ou, como se diz, de cinema para o público (como se existisse isso de cinema que não é para o público), tivesse mais espectadores do que o que faz o IndieLisboa, o DocLisboa ou o MOTELx. Acredito que o que estes festivais fazem é um trabalho de construção de públicos que o cinema comercial não precisa de fazer. O que estes festivais te dão é a possibilidade de ver coisas que não podias ver de outra forma. Neste sentido, a diferenciação do IndieLisboa em relação a outros festivais de cinema é acreditar que existe um público muito alargado que é mais selectivo nas suas escolhas, que procura mais activamente aquilo que quer ver, que tem vontade de descobrir. Há um equilíbrio muito interessante entre aquilo que é a oferta regular cinematográfica ao longo do ano e uma oferta mais intensiva e num período concentrado de tempo, levada a cabo pelos festivais de cinema. Isto também contribui para a experiência transformadora de ser espectador de festival. Aquela coisa de tu estares a ver 2, 3 filmes por dia e começares a estabeleceres relações entre os filmes.
Achas que o Indie teve mais a perder ou a ganhar com a explosão de festivais à volta?
Boa questão, mas não sei se tenho resposta para ela. Quando começámos, em 2004, havia três ou quatro festivais de cinema em Lisboa e neste momento esta oferta multiplicou-se por três, sensivelmente. Hoje temos 10/11 eventos claramente sustentados num público relativamente numeroso e fiel. Aumentou o desafio que é programar um festival quando tens um mercado muito mais concorrencial em que por vezes estes festivais até disputam os mesmos filmes entre si de forma muito directa. Mas não sei se disputam os espectadores entre si… O calendário de festivais permite que esse público se vá desdobrando pelos vários eventos. Mas também não estou certo que esta disponibilidade do público possa ser tão elástica que possa acompanhar este aumento de oferta cinematográfica. Até porque ela é cumulativa com a exibição regular, com a Cinemateca Portuguesa e mesmo com outras ofertas, por exemplo, o acesso aos filmes via Internet. Há paradoxos interessantes aqui: há cada vez menos público em sala, mas cada vez mais gente a ver filmes. Até 2012/2013 foi possível aos festivais resistir a esta erosão de público, mas a partir daí passaram a sentir o mesmo que as salas de cinema. Mas também é um fenómeno português. O mercado português é um mercado extremamente frágil e ainda mais para o cinema independente. Noutros países, como Inglaterra, França, a crise da exibição cinematográfica não é tão grave. Por isso é que também é possível nestes países ter festivais que continuam a crescer em termos de público. Não sei explicar exactamente o caso dessa seca em Portugal… talvez tenha a ver com outros elementos mais conjecturais, ligados à crise, à economia, mas também a uma baixa demográfica portuguesa, uma emigração elevada em segmentos etários que são (ou seriam) público de festivais de cinema. Mas o estudo destas causas/efeitos na verdade está por fazer.
Qual a dimensão ideal de um festival?
Enquanto o IndieLisboa foi crescendo em termos de público, e isso aconteceu até 2010, este crescimento foi acompanhado de maior oferta de filmes e de salas. Tu não deves fazer um festival maior do que aquilo que é desejado ou que é o teu potencial real de público. Quando o Indie deixou de crescer, interpretámos isso como mensagem clara de que há aqui um ponto a partir do qual o público já não vai acompanhar o festival. Porque de outra forma não faz sentido, é preciso que o festival seja um evento vivido pelas pessoas. Pelo público, mas também pelas pessoas que o fazem, e pelos realizadores e produtores que vêm ao festival para mostrar o seu trabalho. Quando nós sentimos que determinadas sessões perdiam energia, porque o festival não tinha público para ter, por exemplo, sete, oito sessões em simultâneo, então é tempo de reflectir. Vamos dar oportunidade para que os filmes encontrem os seus espectadores e não obrigar estes a efectuar processos de escolha às vezes muito complicados.
Cria-se uma certa frustração com muita fartura…
Exactamente. As pessoas ficam sem saber o que ver, por terem tanto por onde escolher.
É o paradoxo da liberdade. Tantas possibilidades de escolha que acabas por ficar imobilizado e não escolher nada.
Sim. Por isso pareceu-nos interessante ter a capacidade de segmentar um pouco os nossos públicos. Há pessoas, por exemplo, mais interessadas em determinadas secções como o Indiemusic ou o Director’s Cut. E depois é um trabalho de construção da grelha de programação, tentando criar um encontro entre a oferta e a procura e, dentro da oferta, tentar encontrar estratégias de programação que permitam que cada filme encontre o seu máximo de potencial de público. Agora se o festival cresce e o público o acompanha, não vejo nenhum problema nisso. O importante é saber o ponto em que começas a ter filmes no festival que, quando te perguntam “este filme é essencial para o festival?”, tu respondes que não. Então se calhar esse é o ponto-limite do crescimento. Se o filme não faz falta ao festival, não faz falta ponto. Quando começas a programar para encher, esse é o ponto a partir do qual a tua exigência como programador deve ser colocada. Se um filme entra porque não é mau, então é mau sinal. Há anos em que o festival tem de ter x número de filmes mas, porque não há filmes suficientemente fortes para preencher esse número, tem de diminuir. E há anos contrários em que a qualidade da oferta justificava ter mais filmes e então fazem-se escolhas difíceis e deixam-se de fora filmes que noutras edições teriam entrado.
Qual a tua opinião sobre esta ideia, que entretanto se tornou um lugar comum, sobre o facto de que as pessoas, não indo às salas de cinema durante o ano, vão aos festivais sobretudo pela questão do evento?
Acho que é uma falsa questão. Durante muitos anos houve um discurso muito agressivo por parte de certos distribuidores em relação aos festivais por roubarem filmes às estreias comerciais. Isso é falso. Tenho a certeza de que, se retirássemos os festivais portugueses do panorama da exibição, a quebra do número de público manter-se-ia. Ou seja, o que está a acontecer não tem a ver com os festivais. Terá a ver com outros dinamismos da vida pública, outros hábitos de consumo, níveis de qualidade de vida. Noventa por cento dos filmes que passam nos festivais não iriam estrear em Portugal de qualquer forma. Dizer que um espectador que foi ao Indie ver um filme turco ou iraniano deixou de ir aos outros cinemas por essa razão é um argumento abusivo. A questão é: porque é que um público que não está motivado para ir às salas de cinema comerciais durante o ano, encontra motivação para ir a várias sessões de um festival? Aqui está a razão da actual e aparente discrepância entre um público muito significativo dos festivais de cinema e um menos significativo face a outras exibições. Estes argumentos confundem um sintoma com uma causa. Há uma certa decadência na actual exibição comercial cuja causa é difícil de identificar, de uma decadência de um certo público de cinema de autor. Dou sempre estes exemplos. Porque é que há dez anos um filme do Almodóvar ou do Lars von Trier podia ter 100 000 espectadores e hoje tem dificuldade em ter 10 000? Ou porque é que o Oliveira com um filme como A Caixa em 1994 teve 50 000 espectadores e O Gebo e a Sombra (2012) teve, não sei, dois, três, quatro mil espectadores? Durante estes dez anos surgiram festivais de cinema que são capazes de atrair 20, 25, 35, 44 mil espectadores no espaço de uma semana e meia. Não sei a razão. Agora, culpar os festivais disso parece-me abusivo e errado. A questão do social, do evento, prende-se à ideia da experiência do festival, de participar numa coisa que tem uma lógica comunitária forte, uma lógica de identificação.
Longe do anonimato das salas comuns.
Há outras pessoas a ver certos filmes contigo. Podes identificar-te com o projecto de programação e querer participar dele activamente e não de forma acrítica. O público do Indie, como o de outros festivais, é um público muito participativo, mas também muito crítico. É desse publico mais selectivo que vêm algumas das críticas mais fundadas em termos de certas escolhas de programação, falhas de organização. Penso que são estas relações que fazem do público um público menos anónimo do que noutros contextos. O que faz com que se calhar os festivais sejam mais imunes a este decréscimo de espectadores. Os festivais, pela sua própria natureza, encontraram estes meios e não estou com isso a culpar a exibição do cinema comercial, pois esta não pode ser uma festa todos os dias. Agora, porque é que isto em Londres, em Paris, não é um problema e em Lisboa é? Não sei responder.
A que é que dás mais importância num festival de cinema: à concentração dos eventos ou a que os locais façam todos sentido do ponto de vista do contexto?
A atmosfera de um festival constrói-se de várias coisas, mas uma das mais importantes é a da concentração. A ideia de poder fazer um festival só numa sala tem uma série de vantagens: do ponto de vista da organização e para conseguir manter o público do festival ao alcance do braço. Desta forma, as pessoas sentem-se menos divididas, não estão a pensar que estão aqui mas podiam estar acolá. A disponibilidade, a curiosidade das pessoas quando se faz um festival mais concentrado é maior. Por exemplo, o êxito enorme do MOTELx tem muito a ver com esta capacidade de concentração. Quando os festivais não cabem só numa sala, como nos aconteceu a partir de 2009, temos de conseguir multiplicar essa energia por mais do que um espaço. É preciso que se chegue a estas salas, como por exemplo Culturgest ou São Jorge, e se saiba que o festival está a decorrer mesmo que não se entre nas sessões. Claro que para nós seria muito importante ter uma só infra-estrutura que tivesse 4,5,6 ecrãs onde todo o festival pudesse decorrer. Por outro lado, a dispersão por outras salas em Lisboa pode ter a vantagem de o festival tentar encontrar outros públicos. Por exemplo, quando o Indie conquistou o eixo da Av. Roma e fazia sessões no Fórum Lisboa ou no Londres (ou mesmo no ano seguinte, no Cinema Alvalade), apercebi-me que havia ali muito público que não viria ao Indie se este não estivesse a acontecer naqueles locais específicos. E que acaba por ver um filme que de outra forma não veria e se calhar no final da sessão até vai fazer perguntas ao realizador… Nós não sabemos muito bem quem é o nosso público e não queremos saber, pois isso fecharia a hipótese de novas pessoas encontrarem estes filmes.
Importa aí esse equilíbrio entre ser-se suficientemente fechado para as pessoas sentirem que fazem todas parte daquela comunidade, daquele microclima, mas ser-se também suficientemente aberto para acolher outros públicos potenciais.
Eu acho que o equilíbrio é exactamente esse. Conseguir todos os anos conservar esse público que já veio ao festival, um público fiel, mas cuja confiança deve ser renovada anualmente, e depois tentar sempre chegar a público novo. Todos os anos este corresponde a 25 – 30 % do público total, uma parcela de espectadores que nunca tinha vindo ao Indie. Isso é a melhor garantia de renovação. Porque se calhar o público fiel até pode vir menos se este novo público for sendo conquistado. E a verdade é que o público do festival também foi envelhecendo connosco. Quem tinha 20 anos em 2004, agora tem trinta e pouco, por exemplo. E a própria intensidade com que se vive o festival muda. Aos vinte tens uma disponibilidade que mais tarde, com trabalho e família, não tens. Na renovação do público, a secção IndieJúnior também teve um pequeno papel, pois ele corresponde ao viveiro de um futuro público do festival. E isso hoje já se sente. Há um público que tem agora vinte anos e que já conhece o Indie há dez anos porque vinha ao IndieJúnior e hoje já quer filmes para adultos e não para crianças.
(fim da parte I)
O nosso agradecimento à Mafalda Melo, autora do retrato que abre esta entrevista. Fotografia exclusiva À pala de Walsh.