Em vésperas de se iniciar nova revisitação da obra de Ingmar Bergman em Lisboa no Espaço Nimas e no Teatro Municipal Campo Alegre no Porto, desta vez com mais seis filmes (metade dos quais em versão digital restaurada), há uma evidência que mais evidente fica ao olhar de qualquer cinéfilo, mesmo o mais ingénuo: é que esta terceira parte bem podia ser uma trigésima, de tal infindável e inesgotável é a obra do cineasta sueco. Basta aliás pensar, masoquisticamente, nas obras incríveis que ainda ficam de fora das quais relembro apenas três: Vargtimmen (A Hora do Lobo, 1968), En Passion (Paixão, 1969) e Skammen (A Vergonha, 1968). Das seis que compõem esta terceira parte do programa há pelo menos duas obras-primas indiscutíveis (bem sei que me desmentirão) em que Bergman filmou a morte e a salvação de duas virgens: Jungfrukällan (A Fonte da Virgem, 1960) e Trollflöjten (A Flauta Mágica, 1975). A estas acrescente-se dois dos seus menores-maiores filmes, ambos sobre a morte sentimental e física de dois músicos: o “falso” solista de Till glädje (Rumo à Felicidade, 1950) e o “falso” génio de För att inte tala om alla dessa kvinnor (A Força do Sexo Fraco, 1964). Por fim, resta-nos apenas duas obras-primas: numa fina-se a máscara da crença- Nattvardsgästerna (Luz de Inverno, 1963) – e na outra, Ansiktet (O Rosto, 1958), a crença não pode com máscaras.
A partir desta meia dúzia de pérolas invente-se um percurso que começa como Bergman começou, intrigado, estarrecido, maravilhado, a olhar para um teatrinho de sombras:
1.
Na última cena de Rumo à Felicidade, o violinista Stig, que tinha sabido por telefone, nos primeiros instantes do filme, da morte da sua esposa devido à explosão de um fogão a gás numa ida de férias ao campo, volta ao ensaio da sua orquestra. Entretanto tínhamos visto via flashback os anos em que se conheceram, casaram, se separaram e se voltaram a reconciliar. Neste desfecho de redenção melodramática, uma “lição de amor” mais trágica do que quatro anos depois filmara com David e Marianne em En Lektion I Kärlek (Uma Lição de Amor, 1954), Stig aprendeu que no gérmen da profunda tristeza está a alegria e por isso toca, já enquanto músico que interiorizou a orquestra e que abandonou as pretensões de solista virtuoso, com os companheiros, o “Hino à Alegria” de Beethoven, perante o olhar do seu filho na plateia deserta. Carregue-se com o quiser este olhar – pena, frustração, dignidade – mas aqui o que me interessava salientar é esse acto de olhar da criança. Ele corresponde a uma das imagens tipo de Bergman [lembremos quase todo o Tystnaden (O Silêncio, 1963), quase todo o Fanny och Alexander (Fanny e Alexandre, 1982)] através da qual a criança que olha não é só o futuro personagem adulto do seu cinema (tão traumatizado pela fábula agreste do real), mas é também o espectador, que como ele, como nós, se deixa encantar apenas também pela fábula. Tudo isto para dizer que este olhar de fecho de um dos Bergmans iniciais rima, e de que maneira, como essoutro “olhar mágico” da sua filha, menina que assiste ao filme final desta série, A Flauta Mágica. Aliás, neste caso, a primorosa e imperceptível passagem da curvatura dos seus lábios (desde os acordes iniciais de Zu Hilfe! Zu Hilfe! com Tamino a ser perseguido pela serpente) ao declarado sorriso (com que observa a junção dos “passarinhos” Papageno e Papagena e o mais que celebrado e arrulhado Pa! Pa! Pa!) é uma das mais inacreditáveis e emotivas imagens da força do efeito emocional do clássico, da paisagem formadora da arte no crescimento humano.
Depois de tão altas palavras, ou para colocar estes seis Bergman entre dois olhares e duas crianças, resta dizer que ao olhar caucionador do filho de Stig, corresponde um outro ainda, vetusto, que lhe irá dizer que quando não dá para se ser excepcional convém desencantar a alegria da normalidade. Quem o diz é Victor Sjöström, aqui a fazer de maestro da orquestra sinfónica de Hensingborg, sete anos antes do seu papel mais relevante como actor no cinema, o professor Isak Borg, em Smulltronstället (Morangos Silvestres, 1957). Sönderby, como nós, também assiste ao falhanço da relação de Stig e Marta, e talvez funcione como contrapeso de um filme do qual se disse que a música foi mais expressiva do que o desgostoso drama (Bergman tinha saído do seu segundo divórcio quando fez o filme). Como se Bergman se desse ao luxo de ser jovem, como o continuaria a ser, de forma mais aprimorada, num filme de semelhantes desencantos – o encantador Sommaren med Monika (Mónica e o Desejo, 1953) – mas o fizesse com a reserva mental de quem sabe que ao idílico amor e idílico futuro profissional da juventude se seguiria a queda do “eu, eu, eu” e a certeza de que a música, como a vida, não é um meio mas um fim. Neste sentido, a metáfora da orquestra, que funciona como espelho da evolução de Stig (veja-se a deambulatória cena do nascimento do filho em que a câmara de Bergman percorre todo o espaço da orquestra) ou a simbologia do peluche, a prenda que deu a Marta e que é o objecto do seu amor ideal, mostram esse progressivo desapegamento da infância e do habitar o mundo como solista de vida, para um rumo de felicidade já sem lugares cativos.
2.
Pouco antes do milagre se dar – onde antes havia a morte da inocência, agora brota água limpa e pura, e, mais tarde, aí resplandecerá uma igreja de pedra toda erigida com as mãos de um pai vingador/pecador – Töre (Max von Sydow) ergue essas mesmas mãos ao céu e pergunta a Deus porque permitiu a morte da imaculada Karin (Birgitta Pettersson) e a sua terrível revolta contra os assassinos. Esta inquirição desesperada a Deus, como se este pudesse ser o travão espiritual da tragédia pós-clássica, não faz outra coisa senão antecipar em A Fonte da Virgem o desespero do padre Tomas Ericsson por essa ausência de luz vinda Dele, em Luz de Inverno. A esta antecipação da crise e trilogia da fé, junta-se a noção de um silêncio. Não só o silêncio de Deus (o mais claro) mas também o silêncio estóico da mãe quando sabe da morte da filha, ao ver o seu vestido solar, o qual havia sido tecido por 15 virgens, manchado de sangue; o silêncio forçado do violador que já antes de desonrar a menina, tinha ficado sem língua; e, por fim, o silêncio das testemunhas do crime: Ingeri, invejosa da vida da filha da sua ama, tudo vê e lança a pedra ao rio em vez de impedir a matança, e a criança, o mais novo dos três irmãos, que nada é capaz de dizer, e que vomita duas vezes, o pão e a sopa, tal a força terrível daquilo a que assistiu. E, mais uma vez, no cinema de Bergman é a criança aquele que sofre o sofrimento do espectador das imagens terríveis, aquele que tudo assiste de uma plateia terrível (vazia como em Rumo à Felicidade, distante como em A Fonte da Virgem, ou à distância de uma acção, como aqui na clareira onde a rapariga é violado a céu aberto). Repare-se na genial sequência da segunda “última ceia”, que junta à mesma mesa os pais da menina e os assassinos e a forma como o rapaz que tudo viu, é ele, que olha sucessivamente os desconhecidos comensais. Bergman estende o seu sentimento de horror pelo forma como o menino toda a gente vê, em contrapicados e expressões sérias (como se aquele jantar fosse aquilo que no fundo é, um interregno entre duas mortandades), ainda prolongado pela história terrível que um dos criados conta na obscuridade ao rapaz, a olhar assustado para o fogo, a olhar para a sua futura morte que está por horas, confundindo na sua mente, aquilo que A Fonte da Virgem confunde no mente do espectador: a morte real e a morte mítica do conto trágico. E com isto, por pouco me esquecia do terrível silêncio da fúria vingadora de Töre em que o punhal com o símbolo da morte, o fogo e o ranger da madeira são “aqueles” os únicos que falam e que participam do ritual da morte recompensadora. No seu filme anterior, O Rosto, também é o silêncio de Albert Emanuel Vogler (também Max von Sydow) que serve o mito da magia, e que, no derradeiro momento, como falso silêncio final (a encenada morte),é aquilo que permite um ajuste de contas.
Entre silêncios e rãs, corvos e águas que correm, o ambiente campestre e mágico de A Fonte da Virgem dispensa a mágica numerologia dos contos de fadas. Ou talvez não. Nada aparece aos três (se bem que é ao terceiro elogio do mudo, o primeiro de três irmãos, “traduzido” pelo irmão do meio, o das mentiras e das eloquências, que o ataque a Karin começa de facto) mas sim aos dois +1. Explico-me. Sistematicamente Bergman emparelha os universos e os eventos. São duas as raparigas, a pura e rica donzela e a bastarda grávida, já de natureza corrompida. São duas as religiões: a cristã e a pagã, com os planos iniciais da invocação do Deus Odin pelo fogo e a reza ao Cristo crucificado; São dois os momentos do filme: a morte da virgem e a vingança, marcados por dois movimentos que se opõem: a libertação e a clausura. No primeiro momento, as duas jovens viajam pela floresta, sendo que das duas só Ingeri escapa de sua clausura às mãos do feiticeiro de olho postiço. E, após a morte fatal, é o momento do fechamento: os três irmãos vêm-se fechar na casa dos seus executores e é a mulher de Töre que os fecha à chave na casa onde morrerão. Quando um dos irmãos lhe tenta vender o vestido ensanguentado da filha, ela responde-lhe que vai perguntar ao marido quanto devem pagar “por algo tão precioso” Mas ao contrário do que diz, é ela que sabe “quanto irão pagar”. Entre estas duas chacinas são ainda duas as “últimas ceias”, uma em cada parte, assim como são duas as testemunhas da morte de Karin que nada fazem por ela. Como diz o criado ao rapaz estendido na esteira de palha, o fumo negro sob o tecto fica ali com medo, encerrado em casa, mal sabendo que tem todo o espaço lá fora por conta dele. É entre este tecto e este espaço “lá fora” que A Fonte da Virgem se passa, lugares de medo e libertação, mas também lugares de confronto de duas visões religiosas onde à clausura das igrejas se opõe as clareiras e os bosques. Mas falava, e com isto encerro, do dois mais um. O “mais um” é mera boutade de quem acha, como eu, que as obras primas além do par precisam do ímpar. E estes momentos do inigualável são tantos! Só dois, para continuar a homenagear o par: o plano de Töre, possuído pela raiva e desespero a lutar contra uma árvore, derrubando-a para depois deixar ver aquele plano de purificação, já no interior, já depois de se ter fustigado com os ramos para preparar o pecado que se aproximava, em que ele todo nu, e apenas tapado por uma tina de água quente, se lava, com gestos rápidos, ante o olhar, sofredor e mãos na barriga inchada, de Ingeri, sentada à porta, iluminada por uns primeiros raios de luz de uma manhã que já não vem longe. O segundo, em plena vingança, o plano infernal, porque do ponto de vista do inferno. A câmara intercalada por chamas a ver a morte do segundo irmão (depois no punhal no pescoço do primeiro que jazerá depois no trono do dono da casa e depois do partir silencioso dos ossos da criança), com Töre a estrangular a “voz do mal” (era dali que saíam as palavras falsamente graciosas que escondiam a maldade dos actos) e Bergman a saber muito bem que este é o enquadramento igual àquele com que o “mudo” viola a sua filha. Para duas mortes, o mesmo estertor, a mesma ejaculação de ira. Termino com um orgasmo, pois é de facto como um orgasmo a melhor forma de entender o efeito de A Fonte da Virgem em qualquer cinéfilo. Olhar virgem ou não.
3.
Caso tivéssemos que proceder ao exercício um tanto cretino de dividir estes seis filmes em questão em obras mais pessimistas ou optimistas, Luz de Inverno não podia como não deixar de ser aquele que encerraria de forma mais cabal aquilo que seria esse grupo de obras menos solares. Se é verdade que a desilusão de Rumo à Felicidade e a amarga vingança de A Fonte da Virgem poderiam justificar (ainda que ilusoriamente, e que bom que assim é!) a crise de fé do padre Tomas Ericsson, factualmente o filme de 63 é o segundo tomo da conhecida trilogia da fé ou do “silêncio de Deus”, sendo o primeiro composto pela loucura e a sombra do “deus como aranha” de Säsom i en Spegel (Em Busca da Verdade, 1961) e o último pelos traumas do país-quarto de hotel enclausurado e repressivo de O Silêncio. Do primeiro ao último, de uma ilha isolada a um quarto de hotel, passando por um vilarejo de duas ou três casas e uma igreja, o décor vai-se apertando, minimalizando, encerrando em si qualquer possibilidade da entrada de luz para as dúvidas interiores assoladas por uma crise de fé provocada por um Deus que não se manifesta. Se como diz o pai de Karin ao filho no final de Em Busca da Verdade, “deus é amor”, quer a morte de Marta no final de Rumo À Felicidade, quer a morte da falecida esposa de Tomas, contribuem, por essa ausência de amor, para explicar porque razão o padre entra em profunda crise de fé (desaparecendo assim a prova da existência de Deus) e porque razão não consegue amar essa outra Märta (Ingrid Thulin), a professora de escola que tudo faz para casar consigo.
Tem-se dito que Luz de Inverno corresponde ao filme em que Bergman quis pôr um ponto final na educação luterana que o seu pai lhe havia dado, confrontando a religião, corpo a corpo, palavra a palavra, com uma cabal ausência de “provas”. “Deus não fala simplesmente porque não existe”, diz-se a dada altura. Para essa confrontação Bergman escolheu uma igreja que começa às moscas (sete pessoas assistem à missa inicial, plena de tosses, bocejos e olhares para o relógio, e só uma, Märta, ficará para a última) e um padre (Gunnar Björnstrand) que além de já não poder amar, já não pode acreditar. Além de estar fisicamente doente [tal como o padre de Ambricourt de Journal d’un curé de Campagne (Diário de um Pároco de Aldeia, 1951) de Robert Bresson, com o qual a personagem tem algumas semelhanças.] Dessa depuração faz ainda parte a ausência de música (só de ouvem os sinos no início e, atrasados, no fim) e o silêncio de Jonas (Max von Sydow), por quem a sua mulher vem interceder por causa da sua depressão. Mais uma vez essa depressão, aqui causada pelo medo que este tem do partido comunista chinês vir a acabar com o mundo lançando uma bomba atómica, surge como uma possibilidade de niilismo contra o qual Deus não será nem tido nem achado. Se de certa forma o mundo naquele lugar fantasmático já acabou mesmo sem bombas e se a ausência de consolo do padre a Jonas lhe provocará irremediavelmente a morte (na verdade, é o padre que se confessa e não o contrário) há uma réstia de luz que permanece, irredutível, em Luz de Inverno. Contra a ausência de público, contra a ausência de amor entre Tomas e Märta, contra a ausência de Deus, a missa final acontece. Desoladamente, continuam um para o outro: o não amante para aquela que ainda ama e o não crente para a crença.
4.
Comecemos este ponto como acabámos o anterior, com o silêncio de Deus e de Jonas. Sabe-se. Luz de Inverno é cinco anos anterior a O Rosto, ou, como no título em inglês, O Mágico, e portanto continuar este naquele é inverter a história. Contudo, à parte das cronologias, Jonas é Albert Emanuel Vogler, o mágico detentor do “magnetismo animal”, líder de um grupo de artistas nómadas acusados de fraude e blasfémia por essa Europa fora e que chegam à mansão do Consul Egerman (Erland Josephson) para provar a verdadeira ilusão da sua arte (com o paradoxo incluído). Max Von Sydow, protagoniza os dois papéis e, em ambos, o silêncio surge como refúgio. Se é certo que o silêncio de Jonas está muito mais próximo da angústia silenciosa de Elisabet Vogler (Liv Ullman) em Persona (A Máscara, 1966), com Albert Vogler, o silêncio (juntamente com o postiço da sua maquilhagem, cabelos, roupas, fazendo dele uma figura “buster keatiana”, ao mesmo tempo que assustadoramente misteriosa e gótica) é algo que permite aos truques acontecerem. Desta forma, o silêncio de Deus e do artista são um, à volta do qual os milagres e truques acontecem, podendo resvalar ao suicídio (Luz de Inverno) ou à depressão (A Máscara). Essa dicotomia entre religião e arte, por um lado, e ciência e razão, por outro, são a razão (ou a “irrazão”) de ser desta comédia que assusta ou deste filme de terror que faz sorrir. O curioso é que nesta oposição espelhada entre Vogler e um dos convidados do consul, o ministro da saúde, Dr. Vergerus, expoente da racionalidade mas também o crítico [e Bergman voltaria a criticar a crítica como aquela que procura ver o que não deve ser visto: é por isso que em För att inte tala om alla dessa kvinnor (A Força do Sexo Fraco, 1964) o biógrafo Cornelius passa o tempo todo a tentar ver o seu mestre, sem sucesso], o espectador que nós somos, ou melhor, o crítica da época (o seu a seu dono), tomou o partido do último, desconsiderando um pouco O Rosto no conjunto da obra de Bergman.
Uma das frases mais citadas, que aliás prolonga esta relação entre o silêncio, o inexplicável e a ontologia religiosa, pertence ao próprio Vergerus quando diz aos Egerman que se aceitasse que existissem no mundo coisas inexplicáveis seria forçado a acreditar que Deus existe também. Bergman submete, no seu filme, a arte da charlatanice, ou a arte, ponto, a um progressivo desmascaramento: Vogler afinal não é mudo; Mr. Aman é afinal Mrs. Vogler; o fantasma não está, pelo menos inicialmente, morto; a bruxa de 200 anos não é afinal bruxa nem tem 200 anos; a levitação é feita por um sistema de roldanas; Vogler não consegue provocar visões a Vergerus. Os milagres parecem de facto não existir sendo sempre os truques e as palavras que fazem o seu trabalho. Contudo, é no confronto final entre estas duas figuras, mais propriamente quando Vogler se faz passar por morto e “aparece” no espelho a Vergerus logo após este o ter autopsiado, que Bergman profere a sua tese de que a arte está sempre um passo à frente na construção de ilusão. Por instantes Vergerus assusta-se, reequaciona por breves momentos o seu sólido edifício interior, e percebemos como a arte enquanto crença no inexplicável consegue sempre levar a sua adiante. E se estivermos, como escreveram muitos críticos a propósito do filme, a lidar com o estatuto particular do cinema, então este é visto pelo realizador como um espaço de crença no indizível, na incapacidade de explicar o que se vê no espelho. Por isso, O Rosto termina com a derrota dos cépticos (o rei quer mesmo ver uma das “diversões magnéticas” da companhia) e por isso, no último plano, após as carruagens da trupe desaparecem ao final da rua, há um candeeiro que sem motivo aparente continua a balouçar… Esse balouçar, assim como o sonhos do relógio sem ponteiros do sonho de Prof. Isak Borg em Morangos Silvestres são a casa de Ingmar Bergman. E tal como diz Vogler com desdém ao comissário da polícia, há que ter cuidado com os seus objectos (os objectos da magia, do cinema) pois eles são preciosos…
5.
Caso não tivesse ficado já explicitado no que vem para trás, há em Bergman a necessidade de experimentar um contratipo dos seus grandes dilemas por via da uma aparente ligeireza. Esta, talvez com excepção de Sommarnattens Leende (Sorrisos de uma Noite de Verão, 1955), foi sempre vista como uma demão mais pálida e superficial do seu cinema. Essa “menoridade” ganha expressão máxima nesta farsa realizada em 64, entre imagine-se O Silêncio e A Máscara, na qual o realizador leva ao extremo esse jogo do ridículo com o décor labiríntico da Villa Tremolo, morada do grande músico Félix, a servir de intercâmbio entre o grande artista e o pequeno crítico e entre as grandes estátuas presentes em quase todas as divisões e as pequenas mulheres, “all these women”, harém privado da artista. Ambrose Bierce no seu “Dicionário do Diabo”, um verdadeiro manual de sobrevivência irónica desconstrucionista para os nossos tempos, define na sua entrada para “biografia” como um “tributo literário que um pequeno homem presta a um grande homem.” Em A Força do Sexo Fraco o pequeno homem é Cornelius (Jarl Culle), crítico que quer a todo o custo fazer com que Felix toque uma peça composta por si e (ao contrário de Vergerus que não acredita na possibilidade de uma arte indecifrável) decifrar o génio por detrás da obra, chegando ao “inmost and utterly personal”, capítulo final da sua biografia roubada (como inatingível) à última da hora.
Embora como se advirta no início em intertítulo “todas as semelhanças entre este filme e o assim chamado mundo real têm de ser um mal entendido”, há uma profunda dissemelhança entre aquilo que se julgaria ser o mais íntimo e pessoal Bergman e a estrutura deste vaguear vagamente cómico. Com números slapstick entre portas e estátuas, entre correrias a fazer lembrar o primeiro Woody Allen ou a loucura de Benny Hill, entre zumbidos e penas de escrever anormalmente grandes, e ainda uma dimensão metacinematográfica (a mais genial: ” in view of the censorship risk, sexual act is depicted as follows” numa dança sépia entre Cornelius e uma das pombinhas, ou melhor, a abelhinha (bumblebee) de Felix), Bergman procura desfazer a categoria em que o haviam colocado, explicando mesmo aos mais distraídos que “génio é aquele capaz de fazer os críticos mudar de opinião”. Se falava de mulheres e estátuas para fazer vir à tona a água mais turva e oposta de Visknigar och Rop (Lágrimas e Suspiros, 1973) é porque o profundo e o superficial talvez não se oponham de forma tão cabal. Assim, em A Força do Sexo Fraco, a fraqueza (das mulheres, do tom de farsa) é força capaz de nos explicar como por exemplo a divisão de juventude que Stig faz entre sucesso profissional e as relações amorosas em Rumo à Felicidade é ilusória. Ou que, para me reportar a Felix, o grande artista, o grande homem, é o homem sem rosto, o homem tal qual reflectido no “magnetismo animal” produzido no rosto das suas mulheres. Mulheres à beira de um ataque de nervos, firmemente entroncadas como labirinto de estátuas pintadas (lembro que este é o primeiro filme a cores de Bergman) da Villa Tremola, labirinto o qual Cornelius percorre para chegar a qualquer coisa de profundo. Profundo portanto o suficiente para explicar toda esta artificialidade que ninguém terá percebido e que hoje obriga a uma tarefa quase vã de recuperação deste menor-maior filme.
6.
Se tenho vindo a falar ao longo de alguns destes filmes de uma recorrência das ideias da arte como artifício inexplicável que não cede ao escrutínio de um olhar imóvel, e da tentativa de o agilizar pela magia da crença ou da criação, ou ainda, dessa mobilidade sugerida pela antítese entre o olhar dos que já vivem e erram e o das crianças-espectadores que os olham deliciadas, todo este caudal, finalmente, não podia senão vir a desaguar em A Flauta Mágica. Mas vamos por partes. Parte do mistério e da grandeza da adaptação de Bergman, aquilo que caminha à frente da sua interpretação e que o transforma num dos melhores, senão o melhor filme-ópera feita até hoje, é o facto de em momento algum se abdicar quer do estático, quer do movimento. Assim, estamos sempre entre a ópera, o teatro e o cinema. Desde os celebrados momentos iniciais com a montagem do rosto dos diferentes espectadores (a convocar diferentes geografias fisionómicas e emocionais) que percebemos que o “espelho da audiência” não é mero insert de uma documentação oficial de um espectáculo. Desta forma, o cinema não serve a reprodução operática, antes convoca os espectadores físicos para uma mobilidade que partirá de um suposto palco imóvel mas a ele não se aterá. A sua presença, mais do que ser uma marca das artes de palco, engloba juntamente os bastidores do teatro de Drottningholm, o cinema a dar o aparato teatral. Desta forma, entre o mero registo da representação teatral/operático da obra de Mozart, o cinema afasta para dar as entranhas do que rodeia a performance (num tempo entre a banda desenhada, Persifal e Tamino, como Bergman mostra no intervalo entre actos), mas também aproxima para conceber pela mise-en-scène, por exemplo, nos fade to gold (na realidade, to sun) entre cenas ou no medalhão com vida pelo qual Tamino vê pela primeira vez Pamina, uma entrada na dimensão sem quarta parede da obra. Algo que só o cinema permitiria. Desta forma, A Flauta Mágica está algures na conciliação entre o travelling de aproximação da “representação da representação” do início de Benilde ou a Virgem Mãe (1975) de Manoel de Oliveira, por exemplo, e o espectáculo de teatro tornado cinemático do final de The Band Wagon (A Roda da Fortuna, 1953) de Vicente Minnelli.
Esta mobilidade do olhar de Bergman, semelhante ao efeito encantatório da flauta mágica de Tamino que traz a luz às trevas, consegue manter o efeito teatral de um suposto registo de performance de uma “ópera filmada” (suposto, pois o cineasta, como o poeta, é um fingidor), ao mesmo tempo que o expande por via da encenação da fábula em profundidade, penetrando por toda a parte como a música da peça é suposto fazer. Se em O Rosto a visibilidade do truque conduz a magia para o campo da charlatanice, os truques de A Flauta Mágica – como são os adereços de um teatro do século XVIII com a sua maquinaria a produzir os efeitos dos relâmpagos, as ondas, ou os adereços propositadamente “infantilizados” como o balão dos querubins – surge como prova de fé (a tal prova que falta a Tomas para acreditar em Deus) num tipo de espectáculo que o cinema quer preservar. A invisibilidade da magia do cinema surge então noutra parte, na articulação de escalas, nos movimentos de realce do conto de fadas. Ao minar a seriedade da “alta cultura”, Bergman dá, como em A Força do Sexo Fraco, um falso efeito de artificialidade que chega onde sempre ele quer chegar: à produção de um efeito de magia totalizadora na qual a noite e a sua rainha surgem derrotados, na qual Mosostatos canta e dança a contragosto, e onde, finalmente, no amor verdadeiro, “we shall find the origin of wisdom”. Como sempre, Deus, isto é, a crença em, é dada pelo amor. Inesgotável saco sem fundo de truques o de A Flauta Mágica, verdadeira obra prima de um também inesgotável cineasta.
Prepare-se pois o espectador então para mais um pedaço desta magia, do lado de cá, como a menina do público, surpreendida, que, sem dar por isso, começa a sorrir.
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